História e cultura afro-brasileira dialogando com a língua inglesa numa perspectiva interdisciplinar

Elizabeth Domiciano Paes

Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Práticas de Educação Básica (CPII/RJ), especialista em Tecnologia Educacional (Ucam), graduada em Informática (Unigranrio), professora e coordenadora de Informática Educativa do CPII/RJ

Mayara Nespoli

Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Práticas de Educação Básica (CPII/RJ), especialista em Psicopedagogia (Ucam), graduada em Letras – Português/Inglês (FFP/UERJ), professora de Inglês da Seeduc/RJ e da SME/RJ

Introdução

Inserir a história e a cultura afro-brasileiras no nosso contexto educacional se faz urgente e necessário. A partir da Lei nº 10.639, de 2003, que traz a obrigatoriedade, no currículo escolar, de trabalhar os conteúdos relacionados a essa temática, e da Lei nº 11.645, de 2008, que endossa mais incisivamente esse intento, já houve avanço no que se refere à implementação significativa das leis.

O tema precisa se fazer presente não só porque é obrigatório, mas porque é emergente a discussão no espaço escolar das questões relacionadas a uma educação que valorize a cultura afro-brasileira, desconstruindo os estereótipos discriminatórios e racistas.

É nesse sentido que as leis citadas vêm contribuindo de maneira eficaz para uma educação voltada à inclusão e à cidadania. Assim, o objetivo do presente artigo é abordar as contribuições da lei a partir de um relato de experiência de uma atividade interdisciplinar inserida num projeto desenvolvido em uma escola pública estadual no município de São Gonçalo.

É preciso fazer uma breve contextualização do projeto, que teve seu início em 2012, idealizado por três professores da instituição, e inicialmente teria seu desfecho em um único dia. No entanto, o projeto cresceu e sua culminância se transformou em uma Semana da Consciência Negra. O princípio fundamental do projeto foi a utilização da autogestão como ferramenta pedagógica, que atribuiu ao aluno o papel de gestor do evento. Assim, os alunos envolvidos foram divididos em quatro equipes: monitoria, cronus, registro e ornamentação, cada uma delas com atribuições próprias, mas todas realizando um trabalho colaborativo. Buscou-se com isso contribuir para a autonomia do educando em consonância com as ideias de Paulo Freire.

A autonomia, sendo amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É nesse sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade (1996, p. 107).

Para concretizar pedagogicamente a interdisciplinaridade, cada professor foi incentivado a participar do projeto incorporando a disciplina que leciona ao projeto. Assim, em parceria com a professora de Produção Textual, foi elaborada uma proposta de atividade que contemplasse questões referentes a como lidamos com o preconceito na escola.

Os alunos sugeriram a série Todo mundo odeia o Chris e, a partir daí, conteúdos sobre gêneros textuais foram trabalhados pela colega em suas aulas. E a variante black english foi incluída no planejamento de língua inglesa. A próxima seção irá tratar da elaboração e do desenvolvimento da atividade intitulada “Todo mundo odeia o preconceito”.

Articulando as leis à língua inglesa: relato de experiência

O desafio era motivar os alunos a participar do projeto da Semana da Consciência Negra por meio de uma atividade que causasse envolvimento, fazendo com que as leis fossem abordadas de maneira natural e significativa. O primeiro passo foi selecionar uma turma; devido à sua maturidade, foi escolhida a turma 905. Vale observar que os alunos eram do turno da tarde, que já é bastante estigmatizado na escola por causa dos alunos indisciplinados, o que acarreta sentimento de inferioridade nesses alunos.

Assim, o objetivo geral era desenvolver uma atividade interdisciplinar que inserisse a língua inglesa de maneira significativa e que contemplasse as leis citadas, que visam inserir a temática história e cultura afro-brasileira no contexto escolar. Podemos ainda relacionar os objetivos específicos da proposta de atividade:

  • Discutir as questões étnicas e de preconceito racial com os alunos;
  • Debater as semelhanças e diferenças encontradas no seriado Todo mundo odeia o Chris e no cotidiano dos alunos;
  • Apresentar e construir, com a ajuda dos alunos, o significado de algumas palavras e expressões da variante black english;
  • Confeccionar um mural com informações relevantes pesquisadas pela turma;
  • Trabalhar de maneira interdisciplinar o gênero textual esquete.

É indispensável pensar na questão do ensino da língua inglesa nas escolas para que ela seja relevante para o aluno; há de se buscar a construção de competências e habilidades que possibilitem perceber a cultura do outro e a nossa própria cultura, contribuindo para a formação de cidadãos crítico-reflexivos, capazes de se posicionar diante das questões que os cercam. Sobre isso, os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam que:

embora seu conhecimento seja altamente prestigiado na sociedade, as línguas estrangeiras, como disciplinas, se encontram deslocadas da escola. (...) Seu ensino, como o de outras disciplinas, é função da escola, e é lá que deve ocorrer. O distanciamento proporcionado pelo envolvimento do aluno no uso de uma língua diferente o ajuda a aumentar sua autopercepção como ser humano e cidadão. Ao entender o outro e sua alteridade, pela aprendizagem de uma língua estrangeira, ele aprende mais sobre si mesmo e sobre um mundo plural, marcado por valores culturais diferentes e maneiras diversas de organização política e social (1998, p. 19).

Assim, com o objetivo de integrar a disciplina Língua Inglesa ao projeto, o primeiro passo foi apresentar a ideia para a turma; a partir daí, os alunos poderiam colaborativamente criar uma proposta que atendesse à temática da história e cultura afro-brasileiras. E várias sugestões foram dadas, mas uma chamou mais atenção: trabalhar com o seriado Todo mundo odeia o Chris (Everybody hates Chris), que está disponível em sua versão dublada em canal aberto; o racismo é mostrado ali por meio das situações que envolvem um garoto negro que mora em uma periferia de cidade nos EUA. É relevante perceber que a naturalização do preconceito racial que é abordada nos episódios faz refletir sobre nossa realidade.

É interessante uma breve análise do seriado para justificar sua escolha; Todo mundo odeia o Chris é um seriado norte-americano que se passa nos anos 1980, no Brooklin, e seu personagem principal é o adolescente Chris Rock. Foi criado pelo ator e roteirista Chris Rock, que apresenta algumas situações que aconteceram com ele. Muitos alunos se identificaram com as cenas e relataram que a questão do preconceito racial é reforçada muitas vezes pela sociedade, mesmo que de maneira inconsciente.

Buscou-se, então, desconstruir qualquer pensamento racista que os educandos pudessem ter, salientando que a discriminação racial pode ocorrer de duas formas: a direta e a indireta; ambas são cruéis e precisam ser combatidas diariamente por todos nós. Combater o preconceito, de qualquer ordem, também é função da escola, que deve priorizar a igualdade dos indivíduos. Corroborando essa questão, Canen afirma que

é importante observar que se cobra, justamente da educação, a formação de gerações nos valores de tolerância, de cidadania crítica, valorização da pluralidade cultural, flexibilidade e abertura para novas possibilidades de construções de conhecimento e de soluções a problemas (Canen, p. 92).

A segunda etapa consistiu em abordar a variante african american vernacular english ou black english, associando às variantes que existem na língua portuguesa. Foram apresentadas sua origem e suas características, salientando que não se trata de um erro, mas um dialeto que é utilizado pelos negros norte-americanos. Assim, a língua pode ser considerada um aspecto importante de identificação de um grupo social. Não podemos, então, ignorar essas variantes e considerar a norma culta “melhor”, pois, além de disseminar o preconceito linguístico, estaríamos fortalecendo o preconceito racial. Sobre o preconceito linguístico, Marcos Bagno (2002, p. 70) ressalta que

o que está em jogo não é a simples “transformação” de um indivíduo, que vai deixar de ser um “sem língua padrão” para tornar-se um falante da variedade culta. O que está em jogo é a transformação da sociedade como um todo, pois enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas, toda tentativa de promover a “ascensão” social dos marginalizados é, senão hipócrita e cínica, pelo menos de uma boa intenção paternalista e ingênua.

Na terceira etapa, em parceria com a professora de Produção Textual que trabalhou o gênero textual esquete, organizou-se uma apresentação baseada no primeiro episódio da primeira temporada, em que Chris percebe que é o único aluno negro da escola. Os alunos puderam se organizar e encenar mesclando a língua materna com algumas expressões em língua inglesa. A turma percebeu que a discriminação sofrida por Chris não é diferente daquela a que muitos jovens brasileiros são submetidos todos os dias.

Na quarta etapa, os alunos construíram um mural com informações que consideraram relevantes e que foram pesquisadas por eles. A finalidade foi mostrar para outros alunos da escola que Chris poderia ser um deles e que o preconceito não tem fronteiras. Além disso, buscou-se o reconhecimento, por partes dos educandos, da sua origem, da sua identidade de negro e do orgulho que tal fato deve gerar. Mas, infelizmente, nota-se ainda, por parte de alguns negros, um sentimento de inferioridade que deve ser erradicado.

A quinta etapa consistiu na apresentação do esquete; apesar do pouco recurso utilizado, os alunos ensaiaram muito e ficaram muito satisfeitos com o resultado final, já que sempre eram lembrados negativamente tanto por alunos quanto por professores. Foi um momento de superação e de valorização do trabalho elaborado pelos alunos.

__clip_image002_0002Figura 1 – Mural confeccionado pelos alunos

__clip_image004_0001Figura 2 – Esquete encenado pela turma

Pretendeu-se incentivar nos alunos o senso investigativo, fazendo com que eles tivessem autonomia no momento da pesquisa e lembrando que pesquisar não é somente a obtenção de informação sobre um determinado assunto, mas a descoberta e a assimilação de novos conhecimentos. Assim, sob a ótica do paradigma emergente, os educandos não são mais caracterizados como objetos, passando a ter uma atuação mais reflexiva. Behrens afirma que

o ensino com pesquisa pode provocar a superação da reprodução para a produção do conhecimento, com autonomia, espírito crítico e investigativo. Considera o aluno e o professor pesquisadores e produtores dos seus próprios conhecimentos (2005, p. 391).

O trabalho voltado para a interdisciplinaridade foi fundamental para a aplicabilidade da atividade, uma vez que a integração entre as disciplinas permitiu a aproximação dos conteúdos propostos à realidade dos educandos. Estes se apropriaram do conhecimento, numa perspectiva dialógica que valoriza sua própria experiência, sendo capazes de criar seu próprio discurso a fim de problematizar e modificar sua realidade.

Viu-se que a proposta de atividade foi desafiadora tanto para alunos quanto para professores. Os docentes tiveram que (re)pensar sua prática pedagógica, abrindo mão de ações conservadoras e criando espaço para um paradigma inovador, um paradigma emergente em que o educando é sujeito ativo, produtivo, dialógico, percebendo-se como atuante, crítico e criativo como aponta Behrens (2005). Ainda sobre o paradigma emergente, fazem-se interessante as considerações de Boaventura de Sousa Santos:

No paradigma emergente, o conhecimento é total, tem como horizonte a totalidade universal (...). Mas, sendo total, é também local. Constitui-se em redor de temas que em dado momento são adoptados por grupos sociais concretos como projectos de vida locais (Santos, 2008, p. 76).

A partir dos pressupostos teóricos desse autor, buscou-se, por meio da atividade “Todo mundo odeia o preconceito”, fazer com que os alunos se identificassem como agentes ativos do processo de ensino-aprendizagem e que se apropriassem dos saberes que foram construídos, sabendo que seu conhecimento prévio não fora menosprezado. Assim, as fronteiras das disciplinas foram ultrapassadas e o paradigma dominante foi rompido.

Sob essa perspectiva, o papel dos professores foi criar e planejar uma atividade que integrasse as disciplinas de Produção Textual e Língua Inglesa, de forma tal que elas se comunicassem e não se isolassem, contribuindo para a ampliação das aprendizagens. A articulação dessas disciplinas contribuiu para que os alunos percebessem as semelhanças culturais entre Brasil e Estados Unidos, em que as questões geográfica, social e econômica influenciam nas línguas e nas interações entre os indivíduos. Segundo Merieu,

se o papel do professor é fazer com que nasça o desejo de aprender, sua tarefa é “criar o enigma” ou, mais exatamente, fazer do saber um enigma: comentá-lo ou mostrá-lo suficientemente para que se entreveja seu interesse e sua riqueza, mas calar-se a tempo para suscitar a vontade de desvendá-lo (1998, p. 92).

Coube, assim, aos professores estimular a participação dos alunos atuando de modo a articular estratégias e promover o diálogo, percebendo o processo de ensino-aprendizagem como um todo e atuando de maneira a agregar e não fragmentar os saberes, compartilhando os desafios e sanando as dificuldades.

Conclusão

É notório que a questão da discriminação racial precisa ser mais trabalhada nas escolas, a fim de que se possa promover a igualdade racial e a valorização da diversidade. As Leis nº 10.369/03 e nº 11.645/08 contribuem para a reflexão e proporcionam um debate que visa minimizar o racismo e o preconceito. De fato, trabalhar com a história e a cultura afro-brasileiras não deveria ser uma imposição, uma vez que a inserção dessa temática deveria se dar de maneira natural, já que faz parte da cultura brasileira.

O que se observou foi que o reconhecimento dos alunos como negros aumentou significativamente; foi notória a afirmação da sua identidade afrodescendente. Além disso, o preconceito sofrido por alguns alunos no âmbito escolar diminuiu consideravelmente após os debates realizados em sala de aula. É nesse sentido que a escola tem papel fundamental ao tratar das questões raciais para que o discurso do preconceito e da intolerância não seja reproduzido.

Pretendeu-se, neste artigo, relatar uma experiência bem-sucedida de um trabalho que está inserido em um projeto interdisciplinar de uma escola pública estadual fluminense. A proposta de atividade surgiu a partir da necessidade percebida dentro do espaço escolar em potencializar a construção de conhecimento a partir do estímulo à pesquisa e de um olhar interdisciplinar da realidade. Mais especificamente, como consequência de uma abordagem menos folclórica do negro e de sua participação nas sociedades brasileira e norte-americana.

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. 15ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

BEHRENS, Marilda Aparecida. O paradigma emergente e a prática pedagógica. Petrópolis: Vozes, 2005.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental, língua estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CANEN, Ana. O multiculturalismo e seus dilemas: implicações na educação. Revista Comunicação e Política, v. 25, nº2, p. 91-107, sem data. Disponível em: http://www.cebela.org.br/imagens/Materia/02DED04%20Ana%20Caren.pdf.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MERIEU, Philipe. Aprender sim... mas como? Porto Alegre: Artmed, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.

YARED, Ivone. O que é interdisciplinaridade? In: FAZENDA, Ivani (org.). O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez, 2008.

Publicado em 02 de agosto de 2016

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