As múltiplas dimensões da Arte na escola e da escola com Arte

Ailza de Freitas Oliveira

Mestra em Linguística e Ensino (UFPB), professora de Artes Cênicas (PMJP)

Fernando Abath Cananéa

Doutor em Educação (UFPB), professor de Planejamento Estratégico, Metodologia do Trabalho Científico, Supervisão Escolar e Gestão Educacional

Arte na escola e a escola com Arte

Embora a disciplina curricular Arte tenha, como as demais disciplinas, conteúdos próprios e necessários em cada ano letivo escolar, é prática comum percebermos na Arte a possibilidade de incluir qualquer tema a ser trabalhado na escola.

Possivelmente isso ocorre devido ao caráter de subordinação às demais disciplinas em que a Arte foi historicamente colocada nos currículos do país afora; ou também deve-se à sua mobilidade acolhedora, em que as temáticas abordadas podem ser trabalhadas com criatividade e fluidez rara em outras disciplinas.

É comum presenciarmos e participarmos de projetos escolares interdisciplinares em que disciplinas caracterizadas como exatas fiquem de fora; no entanto, ainda não testemunhamos a não inclusão da Arte em nenhum dos projetos pedagógicos interdisciplinares. Ao contrário, é a disciplina que mobiliza as práticas a serem desenvolvidas.

Acreditamos que, “na arte, os meios e os fins se interpenetram tão intimamente que mal são distinguíveis entre si” (Dewey, 2012, p. 31). No cotidiano escolar, é como se tudo terminasse em Arte. Não Arte em seu conteúdo específico, mas em práticas artísticas: colar, pintar, encenar, cantar; enfim, cabe a nós, professores de Arte, fazer nossos estudantes criar.

E como é mágico poder ajudar a criar! Assim, de acordo com o abordado em outro artigo, “Brincamos além de seu caráter espontâneo, temos objetivos traçados rumo à aprendizagem significativa do ato de representar” (Oliveira, 2011, p. 26). Criar, brincar e representar para aprender.

A prática interdisciplinar que descrevemos a seguir teve como tema de trabalho e objetivo o combate/controle ao mosquito Aedes aegypti, vetor de várias doenças.

Tal prática passou por teorias fundantes em disciplinas que trataram do tema historicamente; situaram os espaços geográficos da epidemia; calcularam as probabilidades e dados estatísticos de casos das doenças; leram, debateram, questionaram, responderam exercícios e textos que se complementaram em aulas expositivas; analisaram panfletos preventivos e publicitários; assistiram a vídeos explicativos, entre outras práticas.

Nossa disciplina iniciou as ações depois de travado todo o embasamento teórico interdisciplinar, uma quinzena após as demais disciplinas trabalharem seus conteúdos. A temática surge na disciplina Arte para que, com criatividade e emoção, a teoria possa ser transformada em prática.

Relatando as ações desenvolvidas

Após observarmos o perfil das seis turmas participantes, planejamos ações práticas que pudessem ser desenvolvidas conforme seu interesse. Dessa forma, decidimos que em todas as turmas e para todas as propostas listadas, um aspecto seria tratado em comum: o trabalho em equipe, haja vista que

quanto mais interagimos, comunicamos, fazemos uso das linguagens – sejam elas artísticas ou não –, mais somos uma troca com o outro. Mais mista torna-se nossa individualidade. Mais coletivas ficam nossas características. Que nos percebamos então, todos nós, compostos por fragmentos de uma unicidade (Oliveira, 2012c, p. 27).

Nossa metodologia optou por ações em equipe, vislumbrando que o combate/controle do vetor precisa se efetivar em ações realizadas de forma coletiva. Estamos cientes de que, de forma isolada, tal combate/controle não surte eficácia.

De pouco adianta o morador de uma residência cuidar para que focos não surjam, se outros não agem assim. É preciso que todos contribuam. E esse é nosso ponto de partida para as práticas da disciplina no projeto.

As atividades do projeto foram realizadas nos meses de fevereiro e março de 2016, em todas as disciplinas curriculares, cientes de que “agregar aspectos positivos que promovam melhoria no processo de ensino-aprendizagem é o desejo de todo educador” (Oliveira, 2012b, p. 14).

Passaremos a relatar as ações desenvolvidas.

Com a turma do 6° ano A, em que as possibilidades criativas ainda não foram corrompidas pelo falido sistema de “educação bancária” tão acertadamente criticado por Freire (1970, p. 65), optamos por uma proposta intensa de processo criativo. Subdivididos em seis equipes, os estudantes criaram textos dramáticos a serem encenados por meio do teatro de bonecos.

Técnicas da escrita dramatúrgica foram apreendidas, tais como: texto com sequência lógica, introdução, desenvolvimento e conclusão; diálogos entre personagens; narrativa e ápice da história.

A temática de prevenção ao vetor foi aplicada como ponto de partida, com monitoramento contínuo, e as construções da escrita foram sendo elaboradas em sala de aula. A partir daí surgiam às propostas cênicas e os diálogos entre os mais variados personagens.

Concluída a construção coletiva de escrita dos textos, nossa prática passou a preocupar-se com a manipulação dos bonecos de luva, a articulação intencional das falas protagonizadas e a elaboração de adereços e sonoplastias que enriqueceram as cenas.

Não podemos nos furtar ao registro de que as aulas se tornaram festas aos olhos dos transeuntes que habitam os corredores da escola. Todos os 27 estudantes do 6º A opinaram, contribuíram, motivaram e se automotivaram, numa produção retroalimentada pelo trabalho em equipe.


Fotografias realizadas na culminância do projeto Xô, Mosquito
Fonte: Ailza Freitas (2016).

Na turma do 6º ano B, formada por 24 estudantes, em sua maioria fora da faixa etária, com alguns casos de repetência e alto nível de apatia a práticas que levem o corpo a agir, optamos por uma ação publicitária na criação de placas com frases de efeito.

Em nossas aulas, os estudantes visualizaram e refletiram sobre materiais publicitários, textos presentes como frases curtas e diretas, público alvo, objetivo da propaganda e presença intensa da criatividade. Assim iniciamos o processo de elaboração.


Fotografias realizadas durante o processo de construção das placas publicitárias
Fonte: Ailza Freitas (2016).

Os grupos buscaram preparar cartazes criativos, frases impactantes, propagandas funcionais que apregoassem o combate ao mosquito. Paulatinamente, foram surgindo placas coloridas, plasticamente elaboradas com cuidado artístico, meticulosamente pintadas e decoradas; com esses produtos finalizados, realizamos uma exposição no pátio da escola aberta à comunidade escolar, com as obras orgulhosamente assinadas por seus autores.


Culminância do projeto Xô, Mosquito
Fonte: Ailza Freitas (2016).

Nos 7os anos A e B, decidimos por elaborar jogos pedagógicos sobre o tema. Em 12 equipes, os 51 estudantes das duas turmas desenvolveram jogos da memória e quebra-cabeças. Os jogos da memória foram confeccionados utilizando imagens e textos explicativos, relacionados em materiais impressos fornecidos pela Secretaria de Saúde do Município e distribuídos em postos de atendimento. No nosso caso, numa igreja do bairro.

Em uma carta, foram coladas as imagens e, na correspondente, foram colados os textos explicativos de cada imagem, num total de 16 imagens e textos. Assim, cada jogo da memória contou com 32 cartas e 16 pares a serem executados por equipe.

Os quebra-cabeças, também confeccionados em equipe, foram elaborados com base em imagens desenhadas pelos próprios integrantes sob o tema do combate ao mosquito. Ao final da atividade, entre colagens, recortes e ajustes, foram confeccionados 12 quebra-cabeças diferentes e 12 jogos da memória.


Culminância do projeto Xô Mosquito
Fonte: Ailza Freitas (2016).

Ao 8º ano A coube a tarefa de elaborar, em sete equipes, paródias sobre o conteúdo estudado. Para iniciar a atividade, realizamos aula expositiva sobre paródia e selecionamos músicas que seriam a base para serem parodiadas pelos 29 estudantes da turma.

Em grupos, redigimos as letras criadas, ensaiamos, gravamos com o suporte de um gravador de celular e ao final da sequência didática tivemos sete novas músicas que, em sua maioria, optaram pelo gênero musical rap, preferência peculiar na faixa etária em que se encontra a turma.


Processo de elaboração das paródias
Fonte: Ailza Freitas (2016).

Dessa forma, na culminância do projeto os estudantes do 8º ano cantaram a prevenção, o combate e o controle da febre amarela, dengue, zika e chikungunya.

Concordamos com Reverbel (1989, p. 99) quando afirma que “o prazer da criação na infância está relacionado com o processo, e não com o produto final. É o prazer do ato de fazer que estimula”. Amplio que o estímulo é também nosso. Além dos estudantes, nós, professores, também experimentamos esse prazer processual e contínuo.

No 9º ano A, as seis equipes, formadas por 25 estudantes desenvolveram jogos de trilha, com questões criativas sobre o tema. Numerações coloridas, numa sequência entre a linha de saída e de chegada, abrigaram perguntas frequentes sobre a temática e respostas que vislumbram práticas corretas.


Processo de construção dos jogos da trilhaFonte: Ailza Freitas (2016).

Seis criativos jogos de trilha foram cuidadosamente confeccionados. Após a conclusão, utilizá-los tornou-se inevitável. E depois de orgulhosamente cada equipe testar sua própria criação, os jogos foram trocados e a brincadeira pedagógica, carregada de aprendizagem significativa, seguiu.

Toda arte é expressão, seja ela teatro, música, pintura, escultura, cinema ou dança. Trata-se de expressar, de modo concreto, a criatividade que existe em todo ser humano.

A criança aprende atuando, motivo pelo qual é preciso que o professor lhe ofereça oportunidades de atuação. O clima adequado para a criança atuar deve oferecer ampla liberdade e respeito, levando em consideração principalmente o nível de desenvolvimento em que a criança se encontra. Não se deve atribuir notas ou conceitos à sua produção, pois cada aluno cria na medida de suas possibilidades (Reverbel, 1989, p. 24).

Na culminância do projeto foram apresentadas as seis peças com fantoches, expostas as 20 placas publicitárias, cantadas as sete paródias e experimentados os 30 jogos pedagógicos elaborados: seis de trilha, dez quebra-cabeças, oito jogos de memória e seis de damas.

Refletindo sobre a prática

Nossa avaliação é sempre executada de forma processual, de maneira contínua e somativa. Observamos cada estudante em seu processo criativo de elaboração, sua participação ativa, seu interesse produtivo, sua colaboração na equipe, sua apreensão dos conteúdos de Arte e dos conteúdos transversais; sua compreensão para transformar em prática a teoria adquirida.

Como suporte, utilizamos uma tabela nominal com competências como assiduidade, participação, pontualidade, compromisso, organização (cadernos e atividades) e apreensão dos conteúdos (práticos e teóricos) para serem atribuídas observações individuais e coletivas.

Com o planejamento, execução e culminância desse projeto, percebemos que “o ponto de partida da conscientização e ação coletiva é seguir os princípios e orientações das experiências locais decididas conjuntamente” (Oliveira, 2012, p. 17). Com um processo desenvolvido de forma coletiva, as equipes se auxiliaram na troca de aprendizagem e, dessa forma, as ações aconteceram com qualidade.

Cada um de nós assimila dentro de si algo dos valores e significados contidos em experiências anteriores. Mas o fazemos em graus diferentes e em níveis diferentes da personalidade. Algumas coisas se gravam ao fundo, outras permanecem na superfície e são facilmente deslocadas. Tradicionalmente, os antigos poetas invocavam a musa da Memória como algo totalmente externo a eles – fora de seu eu consciente atual. Essa invocação é um tributo à força daquilo que está mais profundamente arraigado e, portanto, mais abaixo da consciência, na determinação do eu atual e do que ele tem a dizer (Dewey, 2012, p. 162).

A culminância dos projetos também é um ponto a ser observado na avaliação; no entanto, a ênfase ocorre no processo que conduz à culminância. O cotidiano das aulas contém maior riqueza de aprendizagem do que o dia festivo de expor. Na observação do processo reside a real percepção da aprendizagem.

É fato que os estudantes que experimentaram essas ações mudaram o seu pensar e, desejosamente, o seu agir sobre o vetor das doenças estudadas e as maneiras de prevenção, combate e controle delas. No entanto, é fato também que a presença da Arte tornou o processo recheado de significados prazerosos.

Se na escola temos o dever de ensinar e a missão de aprender, que façamos de forma significativa, criativa e interessante para os estudantes. Que façamos Arte. E da arte nosso vetor contagiante.

Referências

DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

OLIVEIRA, Ailza de Freitas. As artes cênicas na Educação Infantil: diálogos metodológicos. In: CANANÉA, Fernando Abath (org.). Novos olhares artísticos-culturais. João Pessoa: Imprell, 2011.

______. O rio da nascente à foz: a escola do PPP à aprendizagem. In: CANANÉA, Fernando Abath (org.). Educação e suas interfaces: conversas em torno da educação, da arte e da cultura. João Pessoa: Imprell, 2012.

______. Ailza de Freitas. Avaliação técnica e pedagógica da tecnologia educacional e Proinfo: sob o olhar de uma educadora. In: CANANÉA, Fernando Abath (org.). Trilhas Educacionais. João Pessoa: Imprell, 2012b.

______. Ailza de Freitas. A linguagem artística frente à fragmentação da identidade e da comunicação humana. In: CANANÉA, Fernando Abath (org.). Educação dialogada. João Pessoa: Imprell, 2012c.

REVERBEL, Olga. Um caminho do teatro na escola. São Paulo: Scipione, 1989.

Publicado em 16 de agosto de 2016

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