A relação íntima entre currículo e Cultura
Any Bernstein
Professora doutora da Fundação Cecierj e da UFRJ
O que é ensinado nas escolas prepara os alunos para concretizar seus projetos na vida adulta? Em um mundo sofrendo constantes mudanças sociais, econômicas e ambientais, como fornecer educação de qualidade para que o estudante adquira na escola os conhecimentos e as habilidades necessários para interpretar os elementos presentes em seu cotidiano e se transforme em um cidadão competente na busca de soluções para os problemas que surgem?
Essas indagações questionam o papel da docência, da pedagogia e da escola e preocupam os educadores.
A implementação de um currículo ou de uma base nacional comum é um tema que precisa ser discutido, para que a Base Nacional Comum Curricular não restrinja a ação educativa das escolas.
O objetivo deste artigo é aprofundar o sentido do termo “currículo”, tão familiar a todos que trabalham nos diferentes níveis educacionais. Baseou-se em documentos trazidos aos fóruns de discussão sobre a política de implementação da Base Nacional Comum Curricular (MEC) na Escola Básica. Um desses documentos, de Moreira e Candau (2007), aborda a passagem recente de pesquisa sobre as relações entre currículo e conhecimento escolar para as relações entre currículo e cultura. O documento traz elementos novos à discussão e abre espaço para a construção de diferentes concepções curriculares que embutam as condições políticas, socioeconômicas e culturais, preservando a história da Educação Básica local. Nessa perspectiva, a concepção de currículo deve tornar as pessoas capazes de compreender o papel que devem ter na mudança de seus contextos imediatos e da sociedade em geral; a construção do conhecimento escolar como característica da escola democrática que reconhece a multiculturalidade e a diversidade como elementos constitutivos do processo ensino-aprendizagem.
Que concepções de sociedade, de escola, de educação, de conhecimento, de cultura e de currículo orientarão a escolha das práticas educativas com esse objetivo?
A função da escola, da docência e da pedagogia vem se ampliando, à medida que a sociedade e consequentemente os alunos, mudam. O direito à educação se alargou e isso pressupõe que todos têm o direito ao conhecimento de ciências, de avanços tecnológicos e de novas tecnologias de informação, além do direito à cultura, artes, diversidade de linguagens e formas de comunicação.
O conhecimento escolar se nutre do conhecimento científico tecnológico produzido por universidades, institutos de pesquisa, daquele gerado pelo mundo empresarial, dos negócios, da área da saúde humana e animal, das atividades desportistas e do mundo das artes. O conhecimento escolar gerado nos cidadãos deve dar conta das mudanças ambientais e dos movimentos sociais expressos nas diversas formas de exercício da cidadania.
Entretanto, observa-se que a fragmentação desses conhecimentos em áreas/disciplinas específicas não permite inserir situações nas salas de aula, tal como funcionam em seus contextos de origem para a produção do saber. Para se tornarem conhecimentos escolares, os saberes produzidos nas universidades sofrem descontextualização e, a seguir, um processo de recontextualização. No caso do ensino de Ciências, por exemplo, não se pode supor que um pequeno laboratório da escola irá demonstrar como se fez a investigação científica no laboratório de pesquisas. Um manual didático de experiências científicas escolares precisa seguir outra metodologia, assim como as noções sobre saúde não podem ser explicadas sob a forma de procedimentos hospitalares ou, no campo das atividades desportivas, não cabe oferecer ao estudante, nas aulas de Educação Física locais, o mesmo treinamento dado a atletas profissionais. Torna-se sem sentido, portanto, qualquer tentativa de transformar tais aulas em momentos de preparação de futuros cientistas, médicos ou atletas.
Se a escola trabalhar com uma forte descontextualização, há o risco de perda de sentido dos conhecimentos, o que será um entrave para sua compreensão e aplicação. Conhecimentos totalmente descontextualizados, aparentemente “puros”, perdem suas conexões com o mundo social em que são construídos e funcionam; não permitem que se evidencie como os saberes e suas práticas envolvem, necessariamente, questões de identidade social, interesses, relações de poder e conflitos interpessoais. Conhecimentos totalmente descontextualizados desfavorecem, assim, um ensino mais reflexivo e uma aprendizagem mais significativa.
Existem outros aspectos também importantes, como a aquisição de habilidades de consulta à internet, que abre novas possibilidades para uma construção não linear pelo estudante – diferentemente do livro didático, que o conduz a um ponto que pode não ser de seu interesse, mas é o que será avaliado na prova. Soma-se a isso a hierarquização da construção do conhecimento, que prioriza certas áreas em detrimento de outras e que se transforma em relações de poder. Nessa hierarquia, supervalorizam-se as chamadas disciplinas científicas, tornando secundários os saberes referentes às artes e ao corpo. Nessa hierarquia, separa-se a razão da emoção, a teoria da prática, o conhecimento da cultura.
Se o professor entender o processo de construção do conhecimento escolar, saberá distinguir em que momento os mecanismos implicados nessa produção estão favorecendo ou atravancando seu trabalho docente. Em outras palavras, a compreensão do processo de construção do conhecimento escolar facilita ao professor uma maior compreensão do próprio processo pedagógico, o que pode estimular novas abordagens em que a seleção e a organização dos conhecimentos possam conferir uma orientação cultural ao currículo.
Cultura como elemento de articulação dos conteúdos curriculares
O significado da palavra cultura variou muito ao longo dos tempos. No século XV, cultura estava ligada ao cultivo da terra ou de animais, daí as palavras agricultura, piscicultura ou suinocultura. No século XVI, a noção de cultura foi extrapolada para a mente humana, cultivo da mente, porém somente algumas pessoas ou sociedades eram consideradas de elevado padrão de cultura e civilização.
No século XVIII, o caráter classista da cultura cristalizou-se: somente civilizações europeias eram consideradas refinadas e cultas. O sentido de cultura, tal como as elites a concebem, que ainda hoje a associa às artes, tem suas origens nessa segunda concepção: cultura corresponde ao bem apreciar música, literatura, cinema, teatro, pintura, escultura, filosofia. Será que não encontramos vestígios dessa concepção tanto em alguns de nossos atuais currículos como em textos que se escrevem sobre currículo?
Somente no século XX a noção de cultura passou a incluir a cultura popular, hoje penetrada pelos conteúdos dos meios de comunicação de massa. Durante esse século as diferenças e tensões entre os significados de cultura elevada e de cultura popular acentuam-se, levando a um uso do termo cultura que é marcado por valorizações e avaliações do desenvolvimento humano. Assim, as nações européias que atingiram maior nível de desenvolvimento passaram a ser consideradas mais cultas e classificadas como Primeiro Mundo, que domina os povos da maioria dos países que formam o chamado Terceiro Mundo.
Será que algumas de nossas escolas não continuam a fechar suas portas para as manifestações culturais associadas à cultura popular, contribuindo, assim, para que saberes e valores familiares a muitos estudantes sejam desvalorizados e abandonados na entrada da sala de aula? Poderia ser diferente? Como?
Mais no final do século XX, adotou-se uma visão antropológica da palavra “culturas” (no plural), conferindo sentido aos diversos modos de vida, valores e significados compartilhados por diferentes grupos (nações, classes sociais, grupos étnicos e períodos históricos). Culturas regionais, de gerações, de gênero, religiosas enfatizam os significados compartilhados por grupos, ou seja, os conteúdos culturais representam realidades e visões de mundo adotadas por esse grupo. Diferentemente da concepção anterior, porém, ressalta a dimensão simbólica, o que a cultura faz, em vez de acentuar o que a cultura é. Nessa mudança, efetua-se um movimento do que para o como.
Currículo nacional e diversidade cultural
Não existe uma única definição de currículo. Ele pode entendido como:
- os conteúdos a serem ensinados e aprendidos;
- as experiências de aprendizagem escolares a serem vividas pelos alunos;
- os planos pedagógicos elaborados por professores, escolas e sistemas educacionais;
- os objetivos a serem alcançados por meio do processo de ensino;
- os processos de avaliação que terminam por influir nos conteúdos e nos procedimentos selecionados nos diferentes graus da escolarização.
Todas essas concepções teóricas podem estar corretas, pois de alguma maneira incorporam discussões sobre os conhecimentos escolares, sobre valores que regem o convívio social para formação de sujeitos éticos e sobre as transformações que se deseja realizar ao longo de processo educativo.
Quando se entende um currículo como um conjunto de práticas por meio das quais significados são produzidos e compartilhados em um grupo, a cultura evidencia-se no respeito e no acolhimento das manifestações culturais dos estudantes, por mais desprestigiadas que sejam. Esses significados compartilhados têm tido considerável impacto nas ciências sociais e nas humanidades em geral e podem se expressar nas artes ou na concepção cultural local.
Se entendermos o currículo como um conjunto de práticas que produzem significados, ele pode ser concebido pelas escolhas entre possibilidades existentes dentro da cultura local. O currículo pode ser o espaço em que se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo que certos grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua “verdade”. O currículo representa, assim, um conjunto de práticas que propiciam a produção, a circulação e o consumo de significados no espaço social e que contribuem, intensamente, para a construção de identidades sociais e culturais. O currículo é, por consequência, um dispositivo de grande efeito no processo de construção da identidade do estudante.
Não se mostra evidente, então, a íntima relação entre currículo e cultura?
Referência
MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. Currículo, conhecimento e cultura: indagações sobre currículos. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica, 2007. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/indag3.pdf. Acesso: jun. 2016.
Publicado em 13 de setembro de 2016
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