De Helena de Troia a Helena da Urca: cinema e literatura na formação de leitores surdos

Alessandra Gomes

Licenciada em Letras (UFRJ), mestranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio); professora de Educação Básica do Instituto Nacional de Educação de Surdos

O trânsito da literatura entre suportes e mídias sempre foi utilizado por diversos veículos, em diferentes épocas. Nesse contexto, Rocha (2008, p. 47) assinala que, para uma concepção mais ampla do que seja a literatura, devem ser levados em consideração os meios de comunicação de cada época estudada. Por conseguinte, ele cita que são exemplos de literatura o teatro na Grécia clássica ou na Inglaterra elisabetana, o romance nos séculos XVII e XIX e o cinema e a televisão no século XX; mais recentemente, o computador e a cibernética.

Isso significa dizer que há na arte contemporânea um deslizar entre suportes e veículos de comunicação para a produção e difusão das narrativas literárias. Assim, se tivermos como base algumas teorias sobre os textos literários e a formação de leitores atualmente, podemos compreender que, de acordo com Figueiredo (2010, p. 28) “diferentes práticas significantes podem engendrar textos: a prática pictórica, musical, fílmica etc.”.

Nesse contexto, o texto na contemporaneidade torna-se cada vez mais inacabado, traçando uma rede com outros textos que dependem fundamentalmente do arranjo promovido por cada leitor, seja o livro, o filme e/ou a música. Então, por meio dessas obras, tomamos consciência da incompletude do texto, promovendo uma valorização do descontínuo na literatura e mesmo na arte em geral que somente pode ser preenchido em contato com o leitor/espectador.

Libras é a abreviação utilizada pelos surdos brasileiros para designar a Língua de Sinais do Brasil. A Libras foi oficializada pelo Decreto-Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, regulamentado pelo Decreto nº 5.626, publicado em 23 de dezembro de 2005 no Diário Oficial da União nº 246 (p. 28, 29 e 30).

O presente trabalho pretende refletir sobre o ensino de literatura tendo como base conceitos como adaptação, linguagem e suportes, além de manter o foco no trabalho desenvolvido com os alunos surdos do Instituto Nacional de Surdos (Ines), usuários da Libras. Tal discussão objetiva ultrapassar a simples opção pelo livro de literatura ou pelo filme. Desse modo, indicamos que os PCN inserem a literatura no eixo da linguagem junto a outras disciplinas como artes ou música. Nesse sentido, buscamos novas possibilidades de ensino a partir da utilização de recursos oriundos das novas tecnologias de comunicação e informação, sobretudo recursos que envolvam a produção e difusão de vídeos para o ensino de literatura.

Da mesma forma, reafirmamos que devemos levar em conta a diferenciação de que nossos alunos são usuários da língua de sinais e aprendem a modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, transitando como aprendizes iniciais no universo da cultura letrada, considerada ainda principal veículo para a produção/difusão dos textos literários. Com isso, visamos, com nosso trabalho, colaborar para a discussão da inserção de vários suportes e linguagens no ensino de literatura, buscando diálogos alternativos para a formação de novos leitores, tendo como base propostas para diferentes contextos e práticas de ensino.

Tem-se preocupação em tornar tais textos acessíveis aos alunos surdos, pois, de acordo com Cunha (2007, p. 202), “é surpreendente e assustador o vácuo de informações provocado pela falta de acesso a bens culturais simbólicos, quase todos em língua portuguesa escrita”. Como forma de aproximá-los dos textos narrativos, a autora propõe uma reflexão: “ter contato com a literatura por meio de outras linguagens já é uma prática corriqueira usada pelo cinema, pelo teatro e pela televisão; a novidade é entender e inserir (tais) linguagens no contexto pedagógico”. Por conseguinte, podemos considerar que vários suportes podem e devem ser incorporados pela escola para tentar efetivamente tornar esse ensino mais produtivo para esse segmento.

A atividade descrita neste texto e que aparece indicada já no título foi uma adaptação de um dos clássicos da literatura para o vídeo. Para isso, informamos que a turma que produziu o trabalho era de 6° ano. É comum, tendo como base o planejamento utilizado pela escola, trabalharmos alguns elementos presentes nas diferentes mitologias, sobretudo a grega e a romana, com esses alunos. Os textos foram lidos e debatidos pela turma, além de incluir o trabalho com o texto adaptado para revista em quadrinhos. A história em que nos fixamos por mais tempo foi a narração do episódio da Guerra de Troia. Discutimos, então, a figura da mulher, representada pela personagem Helena, além da importância da cultura grega para a cultura ocidental. Depois fizemos uma contação de história com os alunos em Libras e organizamos cartazes com resumos da narrativa em língua portuguesa escrita.

Com o interesse crescente dos alunos, pensamos na possibilidade de produzir um vídeo com uma proposta de adaptação da história. Foram pensadas as cenas e distribuídos os personagens. Com a ajuda da professora de cinema da escola, que funcionava no contraturno das aulas regulares, foi sugerido levar a filmagem para fora da escola, nos concentrando na Urca, bairro na Zona Sul do Rio de Janeiro, próximo à escola. Com isso, houve modificações na adaptação do texto debatidas e propostas pelos próprios alunos, explorando ao máximo o cenário utilizado para a filmagem, incluindo a presença do próprio bondinho do Pão de Açúcar. Em nossa proposta não há muros, mas há o desafio de descobrir o caminho certo para encontrar a Helena que, no fim da história, vai embora com ‘seu novo namorado’. Algumas menções ao texto lido ajudam a divulgar a história de modo a atrair novos leitores. Isso acontece, por exemplo, quando Páris comenta a leitura de A Guerra de Troia na escola, ou na conversa com seu pai, que lhe diz que atualmente não deveria haver mais disputas por amor. Desse modo, podemos produzir leituras críticas e reflexivas que questionem o conteúdo dos textos lidos. Não houve seleção de um filme específico para o trabalho; foram mostradas somente pequenas animações produzidas sobre mitologia e sobre a Guerra de Troia, todas disponíveis no YouTube – algumas produzidas mesmo por alunos de outras séries e escolas.

Assim, podemos notar que há várias propostas para a produção e divulgação, nos mais diferentes segmentos e idades, de vídeos realizados por alunos e professores para textos clássicos da literatura. Tais propostas, em nosso contexto, podem proporcionar um caráter mais lúdico e produtivo para o contato com os textos literários, podendo contribuir ainda para despertar o interesse dos leitores para o enfrentamento das eventuais dificuldades de uma leitura mais especializada e exigente, que é própria da leitura literária, sobretudo em uma segunda língua, como é o caso dos alunos surdos.

Referência bibliográfica

CUNHA, M. L. Projeto CINES – Cinema do INES. In: Anais do Congresso INES: 150 anos no Cenário da Educação Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Sindicato Nacional dos Livreiros, 2007. p. 201-205.

FIGUEREDO, V. L. F. Narrativas em trânsito. Contracampo, UFF, v. 1, p. 26-38, 2010.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino fundamental: proposta curricular – 3º e 4° Ciclos. Brasília: MEC, 2001.

ROCHA, J. C. C. Literatura ou narrativa? Representações (materiais) da narrativa. In: OLINTO, H. K.; SCHOLLHAMMER. K. R. (orgs.) Literatura e cultura. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2008.

Publicado em 19 de janeiro de 2016

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