Formação de plateia enquanto transversalidade interdisciplinar
Ailza de Freitas Oliveira
Mestra em Linguística e Ensino (UFPB), professora de Artes Cênicas (PMJP)
Fernando Abath Cananéa
Doutor em Educação (UFPB), professor de Planejamento Estratégico, Metodologia do Trabalho Científico, Supervisão Escolar e Gestão Educacional
Arte na Educação: pedras e flores no caminho
A Arte, quando relacionada à educação formal, carrega uma herança pautada em equívocos dos mais variados. Desde práticas infundadas a teorias que defendem habilidade e competência como dom. Perpassa o triste passado em que a Arte era vista como ofício, como objetivo e até como momento de lazer para descanso das demais disciplinas curriculares.
O fato é que a trajetória histórica de nossa disciplina no Brasil carrega como legado visões distorcidas que estimulam o desrespeito e o descrédito, tratando a Arte como disciplina de importância inferior dentre as demais, conforme longamente escrevemos em artigo precedente. Por ora, valemo-nos de relembrar
da produção artística espontânea a inclusão da Arte enquanto disciplina obrigatória de componente curricular nas escolas convencionais. Muitas experiências foram vivenciadas. Buscaremos refletir sobre essas experiências em nosso país a fim de fundamentar o papel da Arte enquanto disciplina curricular na atualidade (Oliveira, 2012, p. 11).
Ao longo dos anos, com o auxílio das leis sobre o ensino de Arte (LDB Nº 9.394/ Art. 26), de algumas mudanças comportamentais de professores(as) de Arte e da adequação dos currículos nas graduações em Arte, respeitando habilitações distintas, podemos observar, ainda que lentamente, mudanças atitudinais referentes à Arte como disciplina curricular.
É certo que teoria e prática ainda caminham distantes, bem como profissionais persistem em comportamentos que reforçam os errôneos ideais de outrora; no entanto, havemos de celebrar os tímidos, porém existentes, avanços percebidos.
Afinal, esperança nas mudanças positivas por intermédio na educação é pré-requisito a educadores(as).
Formação de plateia como conteúdo curricular
Ao pensar em plateia, imaginamos de imediato um comportamento desejado e adequado, uma postura que, independente do que esteja a contemplar, seja baseada no respeito, silêncio, atenção, observação e, ao final do espetáculo, aplausos.
A disciplina de Arte tem proporcionado aos estudantes a vivência como plateia, uma vez que promove e induz a contemplar ações que conduzam os estudantes na representação do personagem plateia.
No entanto, tal personagem é quase sempre interpretado no coletivo; sabemos que quando estamos em equipe a Psicologia e outras ciências que estudam o comportamento explicam que é comum ocorrerem mudanças comportamentais.
Nosso desafio, como professores(as) de Arte, é fazer refletir sobre a postura prática adequada e desejada de platéias, iniciando em experiências internas no ambiente escolar até que essa prática se transforme em frequente no dia a dia dos estudantes além da escola, independente de onde estejam atuando como plateia.
A formação de plateia tem sido posta, há alguns anos letivos, como conteúdo curricular em nossa disciplina, e paulatinamente temos observado mudanças comportamentais dos estudantes quando estão como plateia.
Extremamente incomodados por presenciar longos, ameaçadores e gritados discursos geralmente proferidos aos estudantes antes de estarem como plateia, fomos movidos a trabalhar a temática de forma mais enfática e, sobretudo, em momentos que não exigiam a necessidade da postura desejada.
No cotidiano da sala de aula, fomos indagando, debatendo e desejosamente conscientizando sobre os aspectos necessários e adequados à plateia, intercalando aulas expositivas e debates com jogos dramáticos e exercícios práticos que colocavam os estudantes representando personagens de plateia, seguidos de reflexões orais.
Aos poucos, fomos percebendo que nos eventos escolares as mudanças foram acontecendo. Óbvio que, por não se tratar de mágica, alguns poucos estudantes permaneciam com comportamentos indesejados, mas de forma geral os avanços passaram a ser perceptíveis também por outros.
Como exemplo, podemos citar a apreciação do espetáculo Seraficirco, ocorrida no Teatro Ednaldo do Egypto; estudantes do 6º A, apresentavam-se para estudantes do 6º B, 7ºA e B, 8º A e 9ºA, o que superlotou as cadeiras do teatro e causou espanto nos funcionários que estavam presentes, pois, apesar de lotada, a plateia portou-se extremamente bem. Vários foram os elogios desses funcionários aos nossos estudantes.
Também observamos comportamentos desejáveis em aulas de campo realizadas por ocasião dos Projetos Patrimônio Cultural e Click Maré, onde efetivamos visitas monitoradas a espaços de cultura de nosso bairro e da cidade, fotografando-os. Pudemos vivenciar a feliz experiência de sermos elogiados pelos guias e demais profissionais que acompanhavam as turmas.
Observados tais elogios, analisadas as mudanças comportamentais e reforçados os diálogos que colocam a formação de plateia como conteúdo didático na sala de aula, decidimos, no 2º bimestre do ano letivo, colocar como questão de prova a seguinte indagação:
A disciplina Artes Cênicas tem entre os seus conteúdos a “formação de plateia”. Assinale a alternativa que contém itens necessários a uma plateia:
( a ) conversa, risada e ironia durante o espetáculo
( b ) vaias, gargalhadas e gritarias durante o espetáculo
( c ) levantar e trocar de lugar durante o espetáculo
( d ) atenção, silêncio, observação, respeito e aplausos no final do espetáculo
( e ) falar ao celular e/ou com o colega do lado durante o espetáculo
No processo de correção das provas, observamos que, do total de 163 estudantes que fizeram as provas, 99% responderam assinalando a letra d, a resposta desejada. O que nos fez perceber uma base teórica consciente e conivente com a prática que vínhamos presenciando, conforme aponta o gráfico abaixo:
Fonte: Gráfico elaborado pelos autores com base nos dados coletados.
Essa questão esteve presente em todas as séries do Ensino Fundamental II, uma vez que o conteúdo foi ministrado do 6º ao 9º ano letivo. E o resultado demonstrado pelo alto índice de acertos da questão foi o que nos impulsionou a redigir sobre esta experiência.
Embora não nos furtemos ao registro de que, por ocasião da organização da prova, fomos indagados sobre a pertinência da formação de plateia como conteúdo didático e sobre a legitimidade de a questão por ora analisada compor pergunta de prova. No entanto, passado o episódio, diante das respostas dos estudantes, o silêncio sonoro se somou às respostas positivas como cúmplice nos acertos.
As respostas positivas dos estudantes na prova escrita e os comportamentos elogiados nos eventos nos conduzem a perceber que teoria e prática sobre o conteúdo formação de plateia têm surtido efeito positivo.
Trabalhando junto: pluri, trans e interdisciplinaridade
Muitos são os termos que sugerem a atuação coletiva entre disciplinas e professores sobre um mesmo conteúdo didático. Ousamos afirmar que vários deles se tornaram termos modais em discursos e textos sobre educação.
Sabemos que todo trabalho realizado de forma coletiva tende a alcançar maior êxito, sobretudo quando nos referimos às questões educacionais. A junção de ideias e abordagens de diferentes vertentes do conhecimento provavelmente promove melhor amplitude na aprendizagem do que estudos realizados de maneira isolada.
Várias são as alternativas de atuação conjunta. Para Félix et al. (2013 apud Silva, 2005) ocorre a pluridisciplinaridade quando diversas disciplinas estudam um objeto ao mesmo tempo.
Dos três termos (pluridisciplinaridade, transdisciplinaridade e interdisciplinaridade), este último é o mais utilizado, seja na escrita ou na verbalização. Sobre isso, observamos que,
no caso do ensino interdisciplinar, dois ou mais campos do saber estão reunidos e voltados para análise e verificação do mesmo objeto de estudo. Os professores fazem um planejamento conjunto com objetivo de propor discussões que levem os alunos a estabelecer relações entre o que estão pesquisando nas diversas disciplinas em relação a um tema em questão. No trabalho interdisciplinar, uma área enriquece o conhecimento sobre a outra e o resultado é a construção de um saber mais complexo e menos fragmentado, que buscará trazer mais nexos para o estudante, visto que pesquisado e discutido sob diferentes pontos de vista (Krausz, 2011, p. 3).
Pensando assim, percebemos a presença do conteúdo formação de plateia nas diferentes disciplinas e momentos que estes possibilitam. Para Geografia, por exemplo, numa aula de campo; em Arte, numa visitação ao museu, ao teatro; em Ciências, numa aula experimental no laboratório; em História, na sala de vídeo, para ficarmos nesses exemplos.
Macena et al. (2014) afirmam que, “na atualidade, a interdisciplinaridade, a contextualização e a ressignificação do conhecimento são vitais para que possam reencantar a educação”. Dessa forma, inferimos que quanto mais diversificada a forma de abordagem, maior apreensão do conteúdo.
Em pesquisas sobre conceitos de transdisciplinaridade, destacamos a assertiva de Krausz (2011, p. 3), quando defende que
a transdisciplinaridade é um conceito mais amplo. O prefixo trans quer dizer aquilo que está entre, através e além. Nesse sentido, um ensino transdisciplinar não se restringe nem à simples reunião das disciplinas nem à possibilidade de haver diálogo entre duas ou mais disciplinas porque ultrapassa sua dimensão. Faz com que o tema pesquisado passe pelas disciplinas, porém sem ter como objetivo final o conhecimento específico dessa mesma disciplina ou a preocupação de delimitar o que é o seu objeto ou o que é de outra área inter-relacionada. A transdisciplinaridade se preocupa com a interação contínua e ininterrupta de todas as disciplinas num momento e lugar.
Pluri, trans e interdisciplinaridade são, em suma, respeitadas as peculiaridades conceituais de cada uma, formas de trabalho pedagógico coletivo entre saberes e mestres. Entre disciplinas curriculares e professores(as). E todas essas formas de trabalho pedagógico têm em comum o desejo de ampliar as possibilidades de aprender e ensinar.
Transversalidade
Os temas transversais (PCN, 1998, p. 30) apontam, como compreensão de transversalidade, práticas que visam a dar oportunidade de estabelecer, no exercício da educação, de relação entre a aprendizagem dos conhecimentos sistematizados na teoria e as peculiaridades com o cotidiano e aquilo no que o cotidiano se transforma.
Assim, a transversalidade está no aprender entre disciplinas curriculares, residências e a aplicabilidade desse aprender em ambas as situações.
Compreendendo que “a transversalidade abre espaço para a inclusão de saberes extraescolares, possibilitando a referência a sistemas de significados construídos na realidade dos alunos” (PCN, 1998, p. 30), acreditamos que o trabalho pedagógico se torna mais amplo e rico quando exercido sob esse prisma transversal.
Reflexões
Comumente, segmentos da sociedade consideram boa educação como sinônimo de bom comportamento, como função da família, tachando quase que num som uníssono que se deve chegar à escola educado(a) de casa.
Ao trabalhar formação de plateia como conteúdo, estamos, de maneira direta, motivando a promoção dessa boa educação. Aos estudantes, cabe a mudança comportamental crente na aprendizagem de um novo conteúdo. Aos professores e professoras, cabe a condução dos comportamentos ditos adequados – aqueles mesmos secularmente cobrados, mas aplicados agora de outra maneira, com criticidade.
Formar plateia com comportamento adequado é ajudar na boa educação que cobramos, por anos a fio, vir da família. Mas, afinal, o que é ser professor(a) sem ser educador(a) e vice-versa?
Longe, bem longe de nós aqueles pensamentos que desejam formação de plateias robóticas, mecanizadas, compostas por um público apático que, em nome do bom comportamento, não manifeste suas reais impressões sobre o que assiste! Desejamos seres pensantes, e quem pensa não delibera por atrapalhar, mas por contribuir.
Não estamos refletindo numa apologia ao silêncio, pelo contrário, é preciso estimular a fala, assim como é preciso estimular a compreensão do momento adequado e a forma de falar.
Vários são os cenários em que podemos observar nossos estudantes como plateia, inclusive no espaço físico escolar tradicional, a sala de aula cotidiana, na disposição dos objetos nela existentes, na construção do ouvir e falar sendo intercalado e respeitado entre professores(as) e estudantes.
Nesse espaço cotidiano, vale enfatizar a necessidade de mutação do personagem plateia entre todos que a fazem. Ora professores(as) são protagonistas, ora são plateias de estudantes que defendem ideias e/ou questionamentos.
Professores(as), gestores(as) e demais integrantes das equipes escolares também precisam aprender a portar-se como plateia.
E vivam as plateias atentas, pensantes, respeitosas, educadas, com comportamentos adequados que possamos auxiliar a formar. Em casa, na escola e principalmente na vida.
Referências
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998.
FÉLIX, Eduardo; SOUSA, Denise; BALDOW, Rodrigo. Olavo Bilac, a Bandeira do Brasil e a Astronomia: um ensino pluridisciplinar. In: CANANÉA, Fernando Abath (Org.). Embarca(ações) sobre Arte e Educação. João Pessoa: Imprell, 2013.
KRAUSZ, Mônica. Onde as disciplinas se encontram. Revista Educação, set. 2011. Disponível em: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/132/artigo234363-1.asp. Acesso em: 30 ago. 2016.
MACENA, Marilúcia de Lima; ARANHA, Kaline Cunha; GUIMARÃES, Thaís de Oliveira. As categorias geográficas no jogo de futsal: a interdisciplinaridade e a contextualização da Geografia no ensino fundamental. In: CANANÉA, Fernando Abath (org.). Entrelaços: diálogos entre os sujeitos. João Pessoa: Imprell, 2014.
OLIVEIRA, Ailza de Freitas. O ensino de Arte: passado e presente. In: CANANÉA, Fernando Abath (org.). Embarca(ações) sobre Arte e Educação. João Pessoa: Imprell, 2012.
Publicado em 27 de setembro de 2016
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