O ensino tradicional e conceitos perpetuados como senso comum: alguns exemplos em Geociências
Glauca Torres Aragon
Doutora em Geociências, professora aposentada (UENF), professora do Curso de Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão (UFF)
Silvia Alicia Martinez
Doutora em Educação, professora do Laboratório de Estudos de Educação e Linguagem (UENF)
Luciana Bockorni Gamis Giglio
Licencianda em Ciência Biológicas (UENF/Cederj, Polo Macaé)
Introdução
Este trabalho discute a centralidade do livro didático no ensino tradicional e as limitações à formação do pensamento científico e reflexivo. Analisa ainda a perpetuação de conceitos incorretamente "aprendidos" na forma de senso comum.
A maioria dos jovens e adultos no Brasil estudou ao longo de toda a sua vida escolar em escolas que adotam metodologias tradicionais de ensino. Nessa concepção bancária da educação, no sentido atribuído por Freire (1996), o foco do processo educacional está nos conteúdos, que muitas vezes são assimilados pelos alunos sem reflexão ou discussão. Práticas docentes muito centradas no livro didático e em aulas expositivas não favorecem os questionamentos e o desenvolvimento do pensamento científico e reflexivo. Os conhecimentos são vistos como verdades prontas e acabadas, e não como produtos da pesquisa científica, passíveis de reformulações, constituindo assim uma “ciência viva”, no sentido proposto por Bachelard (1996).
Em nossa prática docente junto a estudantes recém-ingressos no Ensino Superior, observamos que algumas noções equivocadas relativas a conteúdos de Geociências são cristalizadas na forma de senso comum. Pesquisas mostraram a presença de informações incorretas em livros didáticos do Ensino Básico, sugerindo que esses conceitos são, em parte, formados no ambiente escolar. Essas constatações nos levam a refletir sobre as práticas docentes e a centralidade do livro didático.
O ensino tradicional e os obstáculos ao desenvolvimento do pensamento científico e reflexivo
A escola tradicional sofreu diversas transformações ao longo do tempo, mas continua prevalecendo o caráter cumulativo do conhecimento, o qual deve ser passivamente assimilado pelo estudante (Leão, 1999). Nesse sentido, essa escola se coloca em oposição ao desenvolvimento do verdadeiro espírito científico, o qual, de acordo com Bachelard (1996) é movido pela problematização, pelo questionamento.
A ciência se desenvolve por meio de um processo descontínuo, que requer a ruptura com o conhecimento anterior para a construção de novos conhecimentos (Dominguini; Silva, 2010). A dificuldade de estabelecer essa ruptura consiste no primeiro obstáculo à formação do espírito científico, de acordo com o pensamento de Bachelard (1996, p. 18), pois “a opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimento”.
A transmissão e memorização mecânica de conteúdos e as práticas pedagógicas fortemente centradas no livro didático acabam por limitar a formação de um espírito científico em nossos estudantes.
A centralidade do livro didático nas práticas pedagógicas
Díaz destaca o papel do livro didático como recurso privilegiado no processo de ensino-aprendizagem, destacando que ele “assume a responsabilidade de apresentar o currículo aos professores, ganhando, assim, um papel significativo na definição do currículo que se vai ensinar” (Díaz, 2011).
A grande importância e a centralidade do livro didático escolar no contexto educacional brasileiro reforçam a necessidade do seu estudo sistemático. Tal papel é ainda mais influente quando consideramos a carência de outros materiais impressos no cotidiano de muitos estudantes. De acordo com Batista (2002), o livro didático é, para parcela importante de docentes e discentes com pequeno acesso a bens econômicos e sociais, “o principal impresso em torno do qual sua escolarização e letramento são organizados e constituídos” (Batista, 2002).
Por outro lado, para além do conteúdo escrito, não deve ser esquecida a análise de figuras e imagens nesses livros. Silva et al. (2006) alertam que no ensino de ciências a compreensão da imagem não é imediata e destacam o papel do professor no contexto pedagógico da sala de aula, auxiliando o aluno na percepção dos elementos constitutivos dela. Os autores discutem ainda a relação automática que desenvolvemos com as imagens em nossa cultura, na qual estão presentes em nosso cotidiano dentro de uma “estética da rapidez” como modo de leitura. Alertam que nem sempre o aluno percebe aquilo é óbvio para o professor em uma imagem.
Para Dominguini e Silva (2010), muitas vezes o ensino das Ciências Naturais se prende de modo excessivo ao uso de imagens, resultando na substituição do sentido abstrato por analogias; estando a interpretação das imagens vinculada a percepções pessoais, corre-se o risco de repassar “uma verdade não consistente ao aluno”.
A tarefa de análise dos conteúdos dos livros didáticos de grande circulação no território brasileiro é desenvolvida, em parte, pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ministério da Educação (MEC). Entretanto, ainda existe um longo caminho a ser percorrido na avaliação de formas e conteúdos.
Alguns conteúdos de Geociências presentes em livros do EF (Ensino Fundamental)
Nosso grupo vem há alguns anos pesquisando conteúdos de Geociências em livros didáticos; em Crespo (2003) e Almeida (2005) foram analisadas as coleções de livros didáticos de Ciências do EF indicadas pelo PNLD e adotadas em escolas públicas e particulares do Município de Campos dos Goytacazes/RJ.
Em relação à estrutura interna da Terra, Crespo (2003) observou que o manto terrestre é incorretamente apresentado como uma camada de constituição pastosa em três dentre quatro livros didáticos pesquisados. Ainda segundo Crespo, outro conceito frequentemente apresentado de forma incorreta é o de lençol freático, apresentado como uma camada de água abaixo da superfície, ideia reforçada nas ilustrações pouco explicativas, observadas em três de quatro livros didáticos pesquisados.
Em edições mais recentes de livros de Ciências do sexto ano (antiga quinta série), foi observada a persistência de tais imprecisões. O conceito de lençol freático é pouco detalhado e persistem representações como camadas azuis em Gewandsznajder (2011). Em Barros e Paulino (2011), ao lado da definição de lençol freático é apresentada a imagem de um rio subterrâneo saindo de uma caverna, sem diferenciar as duas coisas, podendo induzir o aluno a confundir os dois conceitos. Garcia et al. (2008) e Lederman e D’Olival (2011) afirmam categoricamente que o manto terrestre é formado por magma e se encontra em estado pastoso.
Os livros mais antigos e tradicionais de Geologia Geral, tal como Leinz e Amaral (1972) já informavam que o lençol freático é uma região onde os poros e interstícios da rocha ou solo se encontram saturados de água e que o manto terrestre é constituído por rochas sólidas, de acordo com as informações obtidas pelo estudo da propagação de ondas sísmicas (terremotos).
A ideia de um manto terrestre de consistência pastosa é tão difundida quanto equivocada, conforme alertam Szabó et al. (2000): “É importante frisar que não existe um “oceano de magma” contínuo por baixo da litosfera”.
As imagens comumente usadas para representar o lençol freático o apresentam como uma camada azul, situada abaixo de camada de solo, em geral na cor marrom, e à qual se atribui a propriedade de ser permeável. Essa característica (permeabilidade) não é vinculada à camada constituinte do lençol freático. Além disso a cor azul é comumente usada para representar a água. Essas características somadas podem levar o aluno a “ver” na representação uma camada puramente de água.
Essas imprecisões resultam em conceitos distorcidos que se tornam aceitos e levados até a idade adulta sem questionamento. A breve pesquisa descrita a seguir investiga a forma como esses conceitos são lembrados por um grupo de adultos.
Como são lembrados estes conceitos na idade adulta
Após vários anos de observação assistemática dos resultados das avaliações de disciplina com conteúdos de Geologia em curso de Ensino Superior e dentro de uma linha de trabalho que implicava a reflexão-ação no sentido definido por Schön (2000), decidiu-se empreender uma observação sistemática de alguns conceitos trazidos do EF por estudantes recém ingressos no Ensino Superior.
Foi aplicado o questionário a 177 estudantes recém-admitidos em curso semipresencial de Licenciatura em Ciências Biológicas, no ano de 2012. O questionário trazia questões sobre dois temas que fazem parte dos conteúdos de Geociências no Ensino Básico: lençol freático e o manto terrestre.
A primeira questão pedia ao aluno para explicar o que é lençol freático. As respostas foram divididas em três grupos:
- alunos que alegaram que não sabiam o que é (55%);
- alunos que responderam adequadamente (20%); e
- alunos que afirmaram equivocadamente que é uma camada de água sob a terra (25%).
Dentre as respostas apresentadas no último grupo, foram frequentes as comparações entre os lençóis freáticos e rios subterrâneos.
A segunda pergunta informava que a estrutura interna da Terra apresenta três camadas principais: crosta, manto e núcleo. E perguntava: “Você se lembra de alguma informação sobre esse assunto? Qual? Você saberia informar alguma coisa sobre o manto terrestre?”. As respostas também foram subdivididas em três grupos:
- alunos que não lembravam nada sobre o assunto (56%);
- alunos que alegavam lembrar alguma coisa (12%); e
- alunos que incluíram alguma informação errada sobre o tema (32%).
Dentre as informações incorretas observadas, diversos alunos afirmavam equivocadamente que o manto terrestre se encontra em estado de fusão, o que para eles consistia na razão para a existência da movimentação de placas tectônicas.
Os resultados desse questionário, somados àqueles obtidos da observação em sala de aula, tanto em cursos presenciais como a distância, e ainda às análises desses conteúdos em livros didáticos do EF nos levam a concluir que muitos conteúdos estudados no EF são esquecidos e que alguns conceitos incorretamente compreendidos permanecem até a idade adulta, resistindo a explicações específicas e novas leituras. Transformam-se em senso comum.
Caniato (1987), analisando os conteúdos de Ciências dos livros do EF, chega a conclusão semelhante ao analisar alguns conteúdos relativos à Física. O autor destaca alguns exemplos do que denominou “atos de fé”, como a ideia de que o sol “passa a pino” ao meio-dia, portanto não deixando sombra nesse horário. Esse “fato consumado” ensinado durante anos em sala de aula não resiste à mais simples confrontação com a realidade fora da sala: na maior parte do território brasileiro isso não acontece, devido à inclinação do eixo de rotação da Terra.
Em outro exemplo, Silva (2006) verificou a perpetuação de informações errôneas sobre a potabilidade das águas. Ainda hoje é comumente ensinado que as águas sem “cor, cheiro ou gosto” são próprias para o consumo. Em pesquisa realizada em bairro da periferia de Campos dos Goytacazes/RJ, essa crença era compartilhada por 95% dos moradores, os quais consomem regularmente águas obtidas a partir de poços pouco profundos, contaminados por coliformes, de acordo com análises bacteriológicas.
Considerações finais
O objetivo desta pesquisa não foi condenar os livros didáticos do EF analisados em relação aos conteúdos de Geociências veiculados por eles, mas sim contribuir para a discussão sobre a importância de formas e conteúdos neles, buscando seu aprimoramento, assim como destacar a importância desses materiais na formação de conceitos arraigados que permanecem até a idade adulta na forma de senso comum.
Assumindo um olhar pedagógico sobre os livros didáticos, a primeira conclusão a que chegamos é de que é urgente uma profunda revisão dos conteúdos de Geociências e suas formas de apresentação aos alunos do EF.
As duras condições de trabalho vividas pelos nossos professores, na grande maioria das escolas brasileiras, torna muito difícil, em curto ou médio prazo, uma reformulação profunda em suas práticas. Enquanto os professores mal remunerados estiverem diante de classes lotadas, frequentemente acumulando um considerável número de horas-aula diárias, será muito difícil romper a barreira da preponderância do livro didático sobre o currículo.
É importante para o professor a percepção de que o ensino ainda está atualmente apoiado na racionalidade técnica, o que o torna um mero transmissor de fórmulas previamente estabelecidas e que ele não se propõe a questionar.
Paralelamente a ações que viabilizem a atualização dos professores em relação aos conteúdos tratados em sala de aula, é urgente capacitar esses profissionais para desenvolver a racionalidade prática, fazendo com que se tornem pesquisadores de sua prática, possibilitando que a espiral reflexiva se desenvolva.
Consideramos ainda que o desenvolvimento de um espírito científico por parte do educando é a base que deve nortear a prática pedagógica, priorizando mais a busca pelo conhecimento do que as avaliações da aquisição de “pacotes” de conteúdos.
Referências
ALMEIDA, R. S. S. Entendendo geociências: uma proposta de formação continuada para professores do Ensino Fundamental. Monografía (Licenciatura em Ciências Biológicas). Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Campos dos Goytacazes, 2005.
BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BARROS, C.; PAULINO, W. R. Ciências – O meio ambiente. 6º ano. São Paulo: Ática, 2011.
BATISTA, A. A. Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros didáticos. In: ABREU, M. (org.) Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
CANIATO, R. Com Ciência na Educação. 1987. 5ª ed. Campinas: Papirus, 2003.
CRESPO, C. P. P. Os conteúdos de Geociências no Ensino Fundamental e nos cursos universitários de formação de professores em Biologia/Ciências Biológicas. Monografía (Licenciatura em Ciências Biológicas). Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Campos dos Goytacazes, 2003.
DÍAZ, O. R. T. A atualidade do livro didático como recurso escolar. Linhas Críticas, Brasília, v. 17, nº 34, p. 609-624, 2011.
DOMINGUINI, L.; SILVA, I. B. Obstáculos a construção do espírito científico: reflexões sobre o livro didático. In: V CINFE – Congresso Internacional de Filosofia e Educação. Maio de 2010, Caxias do Sul. Anais... Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2010.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GARCIA, E.; VALLE, M. G.; RETONDO, C. G.; REIS, C. Q. M. Ciências em Cena. 6º ano. São Paulo: Escala Educacional, 2008.
GEWANDSZNAJDER, F. Ciências – O planeta Terra. 6º ano. São Paulo: Ática, 2011.
LEÃO, D. M. M. Paradigmas contemporâneos de educação: escola tradicional e escola construtivista. Cadernos de Pesquisa, nº 107, p. 187-206, 1999.
LEDERMAN, L.; D’OLIVAL, F. C. Tempo de Ciências. 6º ano. São Paulo, Editora do Brasil, 2011.
LEINZ, V.; AMARAL, S. E. Geologia Geral. 5ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972.
SILVA, A. C. Análise microbiológica da água, conceitos e percepções na comunidade de Parque Santuário, Campos dos Goytacazes, RJ. Monografía (Licenciatura em Ciências Biológicas). Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Campos dos Goytacazes, 2006.
SILVA, H. C.; ZIMMERMANN, E.; CARNEIRO, M. H. S.; GASTAL, M. L.; CASSIANO, W. S. Cautela ao usar imagens em aulas de Ciências. Ciência e Educação, v. 12, nº 2, p. 219-233, 2006.
SZABÓ, G. A. J.; BABINSKI, M.; TEIXEIRA, W. Rochas Ígneas. In: TEIXEIRA, W.; TOLEDO, M. C. M.; FAIRCHILD, T. R.; TAIOLI, F. Decifrando a Terra. São Paulo: USP – Oficina de Textos, 2000, p. 330.
Publicado em 11 de outubro de 2016
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.