Ler, escrever, ouvir, pensar e falar criticamente: uma contribuição da Filosofia para a formação discente no Ensino Médio integral

Enock da Silva Peixoto

Docente na rede estadual do Rio de Janeiro; licenciado em Filosofia pela Universidade Salesiana; licenciado em Pedagogia pela UniRio/Cederj; mestre em Educação pela UniRio

Introdução

No presente texto pretendemos abordar algumas questões que se referem à importância da filosofia na formação do aluno do Ensino Médio. Sabemos que existe uma vasta e significativa literatura sobre o tema: apontamos como exemplos dessa literatura o livro Filosofia no ensino médio, organizado por Sílvio Gallo e Walter Kohan, com diversos artigos sobre a presença e desafios do ensino de Filosofia no Ensino Médio, além de documentos oficiais do Ministério da Educação como os Pareceres sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, as Diretrizes Curriculares para o Ensino médio e os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

Adentraremos nessa discussão não com o objetivo de trazer alguma novidade nunca debatida, ou, menos ainda, de trazer à tona soluções definitivas para as diversas e complexas questões inerentes à educação juvenil, mas, tomando como referência a nossa experiência com alunos do ensino básico, e no ano de 2015 com alunos do Ensino Médio integral, vislumbramos elaborar algumas reflexões com o propósito de sustentar que a filosofia é um significativo instrumento para adelgaçar a educação crítica do jovem.

O texto se delineará em dois momentos básicos: primeiramente vamos nos ater em alguns aspectos teóricos, uma vez que consideramos relevante abordar fundamentos filosóficos da Educação referenciados por pensadores que contribuem para o embasamento epistemológico nessa área. Entre tantos teóricos que poderíamos destacar, partiremos da perspectiva do filósofo alemão Friedrich Nietzsche quando aborda a necessidade de estimular os alunos a aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever. Também exploraremos a análise do educador brasileiro Paulo Freire quando este salienta uma dimensão política para a leitura. O ato de ler não deve ser apenas um meio de decodificar códigos que situam na realidade; deve ser um instrumento crítico e de transformação social. Finalmente tomaremos como embasamento teórico, ainda nesta primeira parte do nosso texto, as análises da filósofa Hannah Arendt sobre a pluralidade humana, a partir da qual o falar e o ouvir são tratados como aspectos constituintes do ser humano e funcionam como meio de sua emancipação. Nesse contexto, estudaremos ainda aspectos sobre análises da pensadora judia sobre a crise na educação moderna. Ressaltamos que são três autores relevantes da história do pensamento ocidental e que partem de fundamentações teóricas originais e diversificadas entre si. Também serão indicados poucos elementos da vasta obra deles, e que, devido ao propósito do presente texto, não podem ser aprofundados adequadamente. A intenção não é fazer um paralelo entre teorias tão diversas, mas trazer para a nossa discussão, as reflexões desses autores sobre fala, leitura, escrita, audição e pensamento críticos e de que modo suas teorias contribuíram para atividades concretas em sala de aula.

O assunto que nos propomos a investigar é: ler, escrever, ouvir, pensar e falar criticamente, uma contribuição da Filosofia para a formação discente no Ensino Médio integral. A escolha para essa fundamentação a partir dos autores citados ocorreu ainda pelo fato de considerarmos que suas análises continuam pertinentes para pensarmos os problemas educacionais vigentes.

O segundo momento de nossa argumentação será descrever algumas experiências feitas nas aulas com alunos do Ensino Médio integral, nas quais procuramos exercitar a atividade de ler, ouvir, escrever, pensar e falar criticamente. Veremos a partir da descrição dessas atividades que elas obtiveram sucessos e insucessos, alguns objetivos atingidos e outros não, mas a nossa intenção é acentuar aquilo que já é de conhecimento dos docentes, mas que não custa relembrar que a relação ensino-aprendizagem é um exercício processual que integra várias instâncias de nossa vida pessoal e profissional. O objetivo é partilhar com os demais colegas professores o esforço, sobretudo no que está relacionado aos conhecimentos filosóficos, de situar a Filosofia como uma disciplina agregadora que, junto com as demais áreas do saber, tem como função contribuir para a formação vital dos nossos alunos. Passemos adiante a analisar os pensadores que escolhemos para fundamentar este artigo.

Nietzsche e a educação para a nobreza

No século XIX, Nietzsche indicou três tarefas para as quais é necessário que haja educadores: “deve-se aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever: o objetivo, nos três casos, é uma cultura nobre” (2006, p. 42). O filósofo está criticando, no capítulo do livro Crepúsculo dos ídolos intitulado “O que falta aos alemães”, a necessidade de aprender a ver, a pensar, a falar e escrever, o que conduziria a uma cultura nobre.

É necessário que apontemos o que o filósofo entende por nobreza. Esta não se refere à superioridade de uma raça, de um grupo social sobre outro, muito menos no poderio econômico; nobre é aquele que é forte, potente, que é capaz de ir além de si mesmo e dignificar a vida buscando sempre a autossuperação. São os criadores do futuro; isso difere do homem medíocre, que ele intitula “animal de rebanho”, ou seja, indivíduos que seguem a maioria para não fazer o esforço de criar o novo e de estabelecer para si um percurso próprio. No livro Assim falou Zaratustra, o filósofo resume o sentido dessa nobreza:

eu vos consagro e indico uma nova nobreza: devereis tornar-vos criadores, os cultivadores e semeadores do futuro [...]. Não de onde vieste, seja doravante a vossa honra, mas para onde ireis! [...] A terra dos vossos filhos devereis amar: seja esse amor a vossa nobreza – a terra por descobrir em mares distantes! É essa que mando vossas velas procurar e tornar a procurar! (Nietzsche, 2010, p. 242-243).

Então, os aspectos que Nietzsche aponta como necessários para gerar essa nobreza são fornecidos pela educação; observemos que ele está atribuindo como uma das tarefas educativas primordiais conduzir os jovens a esse caminho de superação. O filósofo continua o texto observando que aprender a ver se refere a não querer, a ser capaz de prorrogar uma decisão, de resistir a um estímulo, não agindo por impulso.

Alguém que aprendeu a ver se torna lento, recalcitrante, continua o pensador alemão. Aproxima-se com tranquilidade de coisas novas, mas é capaz de recuar diante delas, se necessário. O filósofo termina esse trecho do texto criticando a objetividade moderna como mau gosto. Observe que ver, nessa perspectiva, significa não ser afoito, ávido por novidades, apreendedor das coisas novas que a realidade impõe sem refletir sobre a real validade que elas têm para a vida.

É uma evidente crítica à cultura apressada e precipitada do seu tempo e que é válida para a cultura na qual vivemos e que infelizmente os sistemas de educação acabam absorvendo e reproduzindo. Parece que é coerente afirmar que, para Nietzsche, aprender a ver significa aprender a não se posicionar de modo irrefletido diante dos fatos que vêm a nós, mas ser capaz de resistir a um estímulo, ser forte a ponto de sobreviver à tensão de agir por impulso. O pensador alemão está apontando para um modo de educar o espírito. Diante de cada caso específico é necessário saber esperar, analisar, cercar a situação de tal modo que a pressa inconsequente não prevaleça. Note que esse é um dos passos que ele indica para o que denomina nobreza. Ver é enxergar com profundidade, não agir de forma voluntariosa a ponto de comprometer nossa existência.

Na sequência do texto, o filósofo destaca o outro modo necessário para criar essa cultura nobre no educando – o aprender a pensar:

Aprender a pensar: não há mais noção disso em nossas escolas. Mesmo nas universidades, mesmo entre os autênticos doutores da filosofia começa a desaparecer a lógica como teoria, como prática, como ofício. Leiam-se livros alemães: já não se tem a mais remota lembrança de que para pensar é necessária uma técnica, um plano de estudo, uma vontade de maestria — de que o pensar deve ser aprendido, tal como a dança deve ser aprendida, como uma espécie de dança (Nietzsche, 2006, p. 42).

Nietzsche lamenta o fato de o aprender a pensar ser uma noção escassa tanto no ensino básico como nas universidades alemãs do seu tempo. O pensar não é algo aleatório, que já nasce conosco e de forma inata, mas para ele se efetivar é necessária uma técnica, um modo didático de fazê-lo emergir, assim como ocorre com a dança, que exige técnicas extremamente exigentes. Em muitos casos, são movimentos repetitivos, mas o empenho e o esforço fazem com que o aprendiz tenha uma evolução satisfatória que poderá ser útil para a sua vida inteira. A lógica, como teoria, como prática, como ofício, é um dos caminhos que ele indica como necessários para criar modos de pensar centrados, que não são displicentes e caminham para onde as ondas levam sem questionar sobre o seu efeito.

Note que tanto no ver como no pensar há um apelo para que se elabore um modelo de educação que respeite as singularidades, o tempo de cada um, o modo como cada pessoa sente o mundo e a si mesma. Mas, embora Nietzsche afirme a importância da lógica para construir o pensamento, ele também se posiciona contra um modo pesado, tenso, sistemático, grave de pensar dos seus conterrâneos.

A metáfora que ele destaca para o pensamento é a da dança; ela não pode ser excluída, sendo necessária “em todas as formas da educação nobre; saber dançar com os pés, com os conceitos, com as palavras” (2006, p. 43). Nietzsche está aludindo à leveza no pensar, de um pensar que flui com a vida, que não emerge apenas de conceitos rígidos e estabelecidos, mas do que abre espaço para que eles sejam criados; embora seja evidente no texto que ele exige uma técnica, a leveza, a suavidade, a ausência de rigidez desnecessária no pensar e no agir são instrumentos para construir uma cultura nobre. E continua o filósofo: “ainda tenho que dizer que é preciso saber dançar com a pena — que é preciso aprender a escrever?” (2006, p. 43). A escrita, assim como o pensamento, devem seguir os mesmos critérios de busca da nobreza: é preciso aprender a escrever, a dançar com a pena, de modo que a escrita não exprima somente codificação ou decodificação de conceitos, mas seja um instrumento que transmita, para além da conceituação, a vida, a potência de viver, as indagações e desejos de quem escreve. Ela deve revelar e desvelar o aluno-escritor – e não ser um mero instrumento de reprodução de outras escritas, de outras falas. Outras escritas e falas são importantes para ajudar a fundamentar a nossa compreensão da vida, mas devem funcionar como base e não como bengalas.

O filósofo está fazendo uma análise da sociedade de seu tempo, mas é também a da concepção de mundo predominante no Ocidente que ainda ecoa em nossos dias. O mundo que ele critica é a modernidade que levou o racionalismo iniciado por Sócrates na Antiguidade e que desembocou na atualidade como um extremo utilitarismo.

Sócrates, filósofo grego que viveu entre 469 e 399 a.C., é considerado por Nietzsche o precursor de uma das formas decadentes de interpretar o mundo no Ocidente, por priorizar a razão em detrimento das forças corporais. O grego seria o iniciador da racionalidade ocidental, teria estabelecido a ruptura com os gregos arcaicos e inaugurado um estilo de vida que, em nome do pensamento “metódico”, desprezara os impulsos corporais que movem o ser humano; apenas um aspecto da característica humana passou a ser privilegiado: a razão (Cf. Nietzsche, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia das Letras, § 4, 1992).

Tudo deve ocorrer com o máximo de rapidez e eficiência, o que leva a uma limitação do pensamento. O mundo é direcionado para o trabalho, para a ação constante sem que se tenha tempo para debater as razões que movem as nossas ações. Isso gera espíritos gregários, massificados, que são como peças de uma engrenagem que visa formar pessoas para que servirem de forma adequada às demandas do mercado. Aprender a ler é ter olhos para a realidade, para as forças externas e internas, para refletir sobre o que estamos fazendo com a nossa liberdade. A convocação de Nietzsche não é diferente daquelas da maioria dos grandes filósofos; é um chamado para que aprendamos a ver, pensar, ler e escrever com autonomia, atentos para as diversas formas de coerção que inibem a nossa independência. Isso é ser nobre, é ser condutor da existência por si mesmo; este é um desafio que o pensador em questão coloca para o educador do seu tempo e que continua sendo uma necessidade atual.

O chamado de Nietzsche para que aprendamos a ver reflete a necessidade de olhar a realidade com calma, com paciência, sem a pressa de dar uma interpretação apressada para os fatos, pois, por detrás daquilo que é aparentemente verdade, pode existir alguma contradição. Esse é um exercício difícil em uma sociedade na qual somos chamados à pressa o tempo todo; o grande perigo que o filósofo acentuou no seu tempo e permanece vigente é que os dias passam e não conseguimos ver que a nossa vida não está sendo conduzida por nós mesmos. A leitura e a visão que o filósofo propõe vão na contramão da rapidez contemporânea, que exige que ajamos mecanicamente, por impulso e sem reflexão. Ver é saber interpretar os fatos com o máximo de lucidez possível, e isso só pode ser feito de modo eficiente se formos educados para a nobreza.

O que o filósofo está indicando é a mediocridade de uma educação que gera uma cultura rasa, superficial, porque está voltada para a formação de mão de obra eficiente para suprir as necessidades básicas do modelo político-social-econômico vigente. A formação humana na sua integralidade, nos aspectos intelectuais, cognitivos, relacionais, psicológicos, estéticos, fisiológicos, sociais, fica prejudicada. O estímulo é para que se aprenda a dançar com o próprio ritmo, não com o gosto musical alheio ou com o ritmo alheio; a educação deve favorecer o entendimento e o acolhimento da verdade de que a batuta que conduz a nossa vida está em nossas mãos, ou pelo menos deveria estar; e que qualquer tentativa de limitar isso é uma redução de nossa leitura, escrita, fala e visão, ou seja, é um modo de dirimir o nosso crescimento como humanos.

Paulo Freire e a leitura do mundo

O filósofo da educação brasileiro Paulo Freire elaborou o conceito de “leitura do mundo”. Para ele, é necessário ultrapassar a letra escrita e analisar o que está subjacente às palavras. Ou seja, antes da escrita formal, é preciso que tenhamos o mundo, a vida, as circunstancias na qual vivemos como parâmetro de leitura que antecede o ato formal de escrever e ler. Ele afirma (Freire, 1981):

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não pode prescindir da continuidade da leitura daquele (a palavra que eu digo sai do mundo que estou lendo, mas a palavra que sai do mundo que eu estou lendo vai além dele).

Freire amplia a concepção de leitura e faz uma relação direta com a vida. A criança, antes de ser alfabetizada, já traz conhecimentos significativos que devem ser valorizados. “Se for capaz de escrever minha palavra, estarei de certa forma transformando o mundo. O ato de ler o mundo implica uma leitura dentro e fora de mim. Implica na relação que eu tenho com esse mundo” (Freire, 1981). Essa reflexão serve para todas as fases da formação discente, pois a leitura do mundo não termina nunca.

Para além dos textos, que podem funcionar como elementos de dominação ou de libertação da consciência dos sujeitos, Freire aponta para uma realidade que extrapola a palavra escrita, que é o contexto, o lugar no qual o sujeito está situado, a sua história, suas experiências efetivamente vividas que precisam ser problematizadas, sobretudo se o sujeito está inserido em uma situação em que o desfavorecimento econômico-social predomina.

A educação [...] não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres 'vazios' a quem o mundo 'encha' de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada [...], compartimentada, mas nos homens como 'corpos conscientes' e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo (Freire, 1982, p. 77).

Para Freire, ler é uma atividade política, a partir da qual o discente e todos os leitores da sociedade podem criar um espaço crítico e reflexivo sobre a sua existência. Criticidade e reflexão que não se limitam apenas ao campo teórico, mas podem conduzir à transformação social. Outro aspecto político é contribuir para que o aluno aprenda a ler “por detrás das palavras”, ou seja, o significado de determinado texto, a sua ideologia, o que ele quer nos impor? Ele é um instrumento que reafirma o status quo ou contribui para a nossa atitude livre, consciente e ausente de coerção no mundo?

A relação teoria-práxis-teoria é outro aspecto fundamental pelo qual deve passar um bom leitor na perspectiva freiriana. Na concepção do educador brasileiro, refere-se à ação e à reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo; são forças que agem conjuntamente:

é preciso que fique claro que (...) estamos defendendo a práxis, a teoria do fazer, não estamos propondo nenhuma dicotomia de que resultasse que esse fazer se dividisse em uma etapa de reflexão e outra, distante, de ação. Ação e reflexão e ação se dão simultaneamente (Freire, 1987).

A leitura deve iniciar da análise do mundo, da realidade, do contexto no qual vivemos. Essa análise objetiva pode se transformar em teoria e se ressignificar em práxis novamente, tendo em vista a transformação, a geração de mudanças nos padrões de vida nos quais vivemos. Para Freire, ler tem uma dimensão ampla, vai muito além do texto. É, sobretudo, analisar as situações que envolvem o nosso existir. É aprender a distinguir os discursos que servem como aparelhos de controle das ações humanas.

A concepção de “leitura do mundo” freiriana precisa ser retomada ou incluída na concepção de leitura nas escolas. Um dos modos de provocar o desejo de transformar uma realidade social e economicamente desfavorável é ter consciência crítica dessa situação, saber analisá-la e tomar posição para que questões contrárias à dignidade da vida possam ser enfrentadas.

Mas é importante ressaltar que o pensador pernambucano valoriza o texto em si como componente valioso para aprofundar a criticidade humana; ele afirma (1992, p.76):

ler um texto é algo sério [...], é aprender como se dão as relações entre as palavras na composição do discurso. É tarefa de sujeito crítico, humilde e determinado. [...] Implica que o(a) leitor(a) se adentre na intimidade do texto para aprender sua mais profunda significação.

Ler é tentar fazer o esforço de decodificar o seu sentido mais profundo de um texto; não deve ser uma tarefa superficial, descomprometida; deve levar a compreender que a maior parte das obras escritas contém uma razão de ser e uma tentativa de apreender o leitor. Em muitos casos, até mesmo de converter os indivíduos a uma determinada postura diante da vida; por isso, é necessário buscar a mais profunda significação do ato de ler, não desprezando texto algum, mas procurando saber distinguir a sua intencionalidade.

Hannah Arendt: a palavra e a audição como uma perspectiva político-educativa

Hannah Arendt (2010) estuda a política na Grécia Antiga e considera que esta era uma atividade exclusiva da esfera pública. Os cidadãos, na sua vida particular, não tinham relação entre iguais, pois a figura masculina predominava sobre a feminina, sobre os escravos, sobre as crianças; nesse contexto, a relação hierárquica era bem precisa. Entretanto, na vida coletiva da pólis, o cidadão se relacionava entre iguais e ali, diferentemente do que ocorria na vida doméstica, havia política. “Assim, dentro do domínio do lar, a liberdade não existia, pois o chefe do lar, seu governante, só era considerado livre na medida em que tinha o poder de deixar o lar e ingressar no domínio político” (Arendt, 2010, p. 39). Tomando como fonte de inspiração o modelo grego, a filósofa parte daquela micro e exclusivista forma de política, que está inserida dentro de uma visão de mundo diversa da nossa, para pensar e propor um sentido mais pleno da atividade coletiva. É importante destacar que a pólis grega não corresponde à concepção atual de democracia. A maioria da população, conforme destaca a própria Arendt (2010), era de desiguais, de pessoas que não podiam participar da vida política por não serem cidadãs.

Política, para Arendt, é a possibilidade de participar da vida na pólis em igualdade de condições, em que falar, ouvir e ser ouvido é condição necessária para o ser humano expressar a sua singularidade. “A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos” (Arendt, 2010, p. 61). Ver, ouvir, ser ouvido e visto, faz parte do domínio público e aqui podemos acrescentar também a fala. Todas essas são forças que integram a possibilidade de os sujeitos agirem no mundo, de fazerem parte da esfera pública. Isso não significa a concordância plena entre os falantes e ouvintes; o enfoque primordial é no direito ao discurso, à palavra, e deste modo poder ser um sujeito ativo na sociedade. “A ação [...] só se torna relevante por meio da palavra falada na qual ele [o ser humano] se identifica como ator, anuncia o que faz, fez e pretende fazer” (Arendt, 2010, p. 223).

Esse é um dos aspectos do exercício do poder. O verdadeiro poder é participativo, e onde ele não existe prevalece a violência, a dominação, o controle de uns seres humanos sobre os outros; ele acontece na ação da vida pública, pois, para Arendt, “viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar privado de coisas essenciais a uma verdadeira vida humana” (2010, p. 71). Arendt (2010) destaca também que uma vida totalmente pública, vivida totalmente na presença de outros, torna-se superficial. É necessário o equilíbrio entre o público e o privado. A concepção de poder de Arendt está baseada na possibilidade de participação efetiva na vida comum. Qualquer forma de imposição ou de centralização do discurso torna-se um perigo para a vida pública. Arendt identifica a natureza humana com a possibilidade de ação, de podermos ouvir e falar e assim manifestarmos o nosso “ser” no mundo, “o poder existe apenas entre os homens, isto é, quando eles agem e discursam persuasivamente, deixando de existir no momento em que eles se dispersam ou se veem impedidos de reunir-se livremente” (Duarte, 2000, p. 242). Essas reflexões ajudam a pensar aspectos relativos à educação formal, pois quando a fala é oportunizada, quando criamos situações para que os discentes possam expressar a sua singularidade, estamos exercendo uma ação que é ao mesmo tempo política e educativa.

Arendt aborda três condições necessárias da pluralidade humana: o labor, o trabalho e a ação. O labor corresponde ao processo biológico do corpo humano, trata das necessidades vitais inerentes ao processo de existir. O trabalho corresponde às construções artificiais que possibilitam a nossa estadia no mundo. A ação é a única atividade tipicamente humana, pois ela surge do fato de habitarmos a Terra, de vivermos entre outros indivíduos. Ela destaca o espaço-entre em vários momentos de seus textos. Em A condição humana ela afirma:

A ação e o discurso ocorrem entre os homens, uma vez que a eles são dirigidos [...]. A maior parte da ação e do discurso diz respeito a esse espaço- entre, que varia de grupo para grupo de pessoas, de sorte que a maior parte das palavras e atos refere-se a alguma realidade objetiva mundana, além de ser um desvelamento do agente que atua e fala [...]. O espaço entre é tão real quanto o mundo das coisas que visivelmente temos em comum (2010, p. 228-229).

Trata-se da relação que os humanos estabelecem entre si, que é tão viva e real como o mundo das coisas, e é nesse contexto que se abre o espaço para a vida política, por meio da participação pelo discurso e pela atividade dos seres humanos no mundo.

Tudo que entra no mundo humano ou é trazido para ele torna-se parte da condição humana. O labor garante a existência da espécie, o trabalho a mantém e a política funda e mantém instituições responsáveis pela criação de condições de receber os recém-chegados ao mundo. A filósofa trata também, em A condição humana, da pluralidade do indivíduo. A igualdade dos homens na política se deve ao fato de pertencermos a uma mesma espécie e à possibilidade de haver entre nós o entendimento mútuo. Afirma Arendt: “Se não fossem iguais, os homens não poderiam compreender uns aos outros e os que vieram antes deles, nem fazer planos para o futuro, nem prever as necessidades daqueles que virão depois deles” (2010, p. 219). E continua: “Se não fossem distintos, sendo cada ser humano distinto de qualquer outro que é, foi ou será, não precisariam do discurso nem da ação para se fazerem compreender” (2010, p. 219).

A revelação de cada individuo ocorre pelo discurso. A ação permite que nos comuniquemos a partir de nós mesmos, revelando-nos aos outros e exibindo a particularidade de nossa existência. Por meio do discurso e da ação, o homem se difere dos demais, pois essas atividades dependem da iniciativa de cada um de nós. A ação caracteriza o sujeito, ela é o meio mais adequado para viver entre os homens. A participação política de cada cidadão é essencial, pois garante a condição humana da pluralidade, isto é, do fato de vivermos entre outros humanos.

Mas no mundo moderno ocorreu uma inversão no modo de ver a condição humana. Na Antiguidade, eram a família e a pólis a sua característica principal; a partir da Modernidade, passa a prevalecer o homo faber. O trabalho substitui a ação como atividade fundamental. Do mesmo modo que a Antiguidade excluiu o homo faber, o período pós-Revolução Industrial exclui o homem que fala e age. A esfera da necessidade passou a predominar. Há uma desconfiança moderna em relação à política; o lugar do debate, a ágora, foi tomado pelo esforço do labor, ocorrendo predomínio da ação como fabricação de instrumentos. O fazer substituiu a ação humana como atividade política.

A esperança que Arendt aponta é a natalidade. O nascimento de novos seres humanos traz a possibilidade de emergir algo socialmente diverso. As próximas gerações têm a chance de mudar a história, pois elas podem estabelecer formas originais de viver: “Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas, são impelidos a agir” (Arendt, 2010, p. 221). A ação é que caracteriza a condição humana, e, apesar de toda desesperança que o mundo muitas vezes nos proporciona, há a esperança de novas vidas trazerem modos originais de existência individual e coletiva.

Arendt, em 1957, publicou um texto direcionado para questões educativas: “A crise na educação”. No texto, ela se preocupa com a questão de os mais velhos quererem impor o seu mundo, a sua realidade aos novatos, impedindo que modos diversificados de existir possam efetivamente emergir. Esse fato gera necessariamente uma tensão na relação de autoridade, de imposição de uma visão de mundo já cristalizada. Isso não significa que a filósofa desvalorize a tradição, os saberes já estabelecidos; a proposta é que haja uma relação mais harmoniosa entre o velho e o novo; o destaque é para a oportunidade que deve ser dada ao discente de ser ele mesmo construtor do seu destino. Analisando a educação estadunidense, que é o alvo principal de suas criticas no texto citado, ela afirma:

Desse modo, o que faz com que a crise da educação seja tão especialmente aguda entre nós é o temperamento político do país, o qual luta, por si próprio, por igualar ou apagar tanto quanto possível a diferença entre novos e velhos, entre dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adultos, em particular entre alunos e professores. É óbvio que esse nivelamento só pode ser efetivamente alcançado à custa da autoridade do professor e em detrimento dos estudantes mais dotados (Arendt, 2000, p. 5).

A educação é uma das mais importantes produções da ação humana e requer a necessária relação entre o velho mundo e os recém-chegados. Ocorreu na Modernidade, entretanto, a tentativa de não estabelecer a diferença existente entre adultos e crianças, professores e alunos, o que gera uma relação de subserviência ou de imposição da autoridade. Para Arendt, a crise que assolou a educação no mundo moderno é reflexo de uma crise mais geral que afetou as esferas econômica e política. A educação moderna, na visão da filósofa, estava alimentando essa crise mais ampla com suas teorias pedagógicas. Estava sendo imposta à criança o modus vivendi do mundo adulto:

ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a ditadura da maioria. Em todo caso, o resultado foi serem as crianças, por assim dizer, banidas do mundo dos adultos. São elas ou jogadas a si mesmas ou entregues à tirania do próprio grupo, contra o qual, por sua superioridade numérica, elas não podem se rebelar, contra o qual, por serem crianças, não podem argumentar, e do qual não podem escapar para nenhum outro lugar por lhes ter sido barrado o mundo dos adultos (Arendt, 2000, p. 231).

A filósofa continua seu argumento sustentando que essa não delimitação do espaço próprio da criança no qual ela pode ser ela mesma gera uma reação a essa pressão adulta que pode gerar o conformismo ou a delinquência juvenil e, em muitos casos, ambas as coisas (Cf. ibidem). É importante ressaltar que Arendt não concorda que a educação da criança seja dissociada de qualquer autoridade, a perda do verdadeiro sentido desta é um dos mais sérios problemas da crise na educação, mas autoridade não significa imposição do mundo dos mais velhos aos mais novos. A educação moderna, ao tentar delinear o mundo da criança, destrói as condições necessárias para o seu desenvolvimento e crescimento. Ou seja, deve haver espaço para o protagonismo infantil e juvenil. Os valores do mundo adulto são importantes, a autoridade é importante, mas não devem envenenar o florescimento de uma nova existência que tem a chance de trazer ao mundo realidades diferentes e criativas. A educação é criação do novo. Se a condição humana se efetiva na ação, nos diversos modos como o ser humano constrói a sua vida, o ato de educar pode propiciar um espaço que possibilita a responsabilidade pelo mundo e a abertura para que a novidade se apresente como um benefício ao ser humano.

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las do nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (Arendt, 2000, p. 247).

A educação, para a pensadora alemã, implica um amor pelo mundo não como manutenção do status quo, mas para estarmos abertos ao novo e proporcionarmos aos educandos a chance de não serem apenas repetidores dos conhecimentos, informações e construções históricas e sociais do passado, mas sem prescindir e desprezar esse passado; que as novas gerações sejam de fato a esperança de um futuro diferente.

Experiências no Ensino Médio integral: a tentativa de oportunizar a fala, a escrita, a audição, o pensar e o ler criticamente

O Colégio Estadual Canadá foi convidado a participar de um evento extraclasse com o sobrevivente do holocausto Aleksander Henryk Laks, que veio a falecer aos 88 anos, poucos meses após a palestra. Foi um momento bastante significativo para os alunos, pois o Sr. Laks contou de forma detalhada e emocionante as atrocidades pelas quais passou durante seis anos em Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial. Além disso, destacou o sofrimento de pessoas de sua família, de conhecidos seus e de desconhecidos. A maioria dos alunos do Ensino Médio integral ficou comovida com a experiência relatada, e percebemos que ali ocorreu uma audição qualitativa, ou seja, as experiências vividas por um sobrevivente dos horrores de uma guerra fizeram com que nossos discentes refletissem quase em uníssono a frase que o senhor Laks mais acentuou: “o meu esforço é passar a minha experiência para as novas gerações a fim de que não esqueçamos que aquelas atrocidades não podem mais acontecer”.

Duas lições básicas ficam evidentes nessa experiência: primeiro é que aquilo que toca diretamente na vida concreta das pessoas, nas nossas emoções, parece ser mais eficaz do que o conhecimento apenas cognitivo; outra é que esses momentos são eficientemente pedagógicos. Nada mais vital para trabalharmos questões próprias de conteúdo do que uma experiência viva e potente como aquela. É quase impossível que um ser humano não seja afetado, e percebemos que isso ocorreu com os alunos. É difícil calcular a intensidade e o modo como cada um recebeu e processou as informações, mas creio não ser exagero afirmar que quase todos se sentiram atingidos positivamente.

Sendo assim, uma vez que a experiência auditiva foi positiva, procuramos trabalhar com os discentes uma atividade escrita. Mas não era para que eles apenas relatassem o que sentiram em relação à palestra; pedimos que, além disso, destacassem situações atuais que colocam em perigo a integridade humana e o perigo de voltarmos a viver algo semelhante. Como objetivo teórico subjacente a essa atividade tivemos em mente a concepção de “leitura do mundo” de Freire: a partir de uma situação dramática de outro contexto histórico, buscou-se levar os discentes a ler o mundo atual e os perigos de atitudes intolerantes ainda prevalecerem entre nós. O objetivo era também que os alunos refletissem de forma crítica a partir de um fato desastroso de nossa história recente, que emergiu da intolerância e desrespeito entre os seres humanos, situações atuais que se apresentam como perigo para a vida humana atual. Destacamos também como uma das motivações prévias para os alunos construírem os seus textos críticos a apresentação sintética de aspectos da filosofia de Hannah Arendt, destacando que ela foi uma pensadora que sofreu na própria vida as agruras do totalitarismo e pensou sistematicamente sobre os efeitos nocivos desse regime que banalizou a violência.

Foram destacados pelos discentes vários aspectos como situações geradoras de problemas sociais graves, que descreverei de modo resumido:

    • a demasiada intolerância religiosa, sobretudo as que geram guerras no Oriente Médio;
    • a discriminação racial e contra as comunidades pobres, sobretudo nas periferias das cidades cariocas, na Serra Fluminense e no país como um todo;
    • o preconceito aos homossexuais; a violência contra a mulher e a criança;
    • a disparidade social e econômica entre ricos e pobres no Brasil e no mundo;
    • a corrupção na política e em outros setores da sociedade.

Estes foram alguns dos aspectos mais relevantes destacados em seus textos. De certo modo, causou certo contentamento saber que os problemas citados, que realmente assolam a permanência da paz em nossa sociedade, estejam sendo uma preocupação de jovens e adolescentes e que eles consigam compreender que tais atitudes, embora diferentes do Holocausto, são casos de divergência entre os humanos e que desembocam em situações nas quais prevalece a violência em detrimento do poder, como afirmou Hannah Arendt.

Para a filósofa, o Holocausto só foi possível porque a verdadeira política deixou de ser exercida. O espaço para que a ação entre os homens ocorresse era inexistente, aqueles que pertenciam às minorias sociais perderam o direito a falar e ouvir, e assim se estabeleceu a forma mais brutal de violência institucionalizada da história moderna. Embora não possamos fazer comparações do Holocausto com os problemas contemporâneos citados pelos alunos, qualquer forma exacerbada de intolerância e de desrespeito já é um indicativo de perigo para a vida na Terra.

Uma segunda experiência foi tentar possibilitar aos alunos a fala e a audição críticas. Essa atividade não obteve sucesso, mas pretendi relatá-la para que relembremos que no trabalho docente nem todos os empreendimentos de uma atividade pedagógica alcançam os objetivos que pretendemos. Foi proposto aos alunos que fizéssemos um debate em sala de aula para efetivar o protagonismo discente; quem deveria escolher os temas seriam os próprios jovens e também opinar como deveria ocorrer a dinâmica efetiva para que esse momento se concretizasse. Foi feita uma votação e a temática sobre sexualidade venceu outras que foram ventiladas. Cada discente apresentou um ou dois temas e depois toda a turma votou individualmente; o que obteve mais votos foi o escolhido para ser debatido.

Diferentemente do que ocorrera com turmas do terceiro ano, no Colégio Estadual Canadá e no Colégio Dr. Galdino do Valle Filho (de Nova Friburgo) e no Colégio Estadual Maria Zulmira Torres (de Cantagalo), nos quais foram escolhidos temas como descriminalização das drogas, aborto, violência contra a mulher, maioridade penal etc., o resultado foi bastante positivo, embora tenha havido momentos de tensão.

Foi interessante notar que, nas cinco turmas nas quais este trabalho foi desenvolvido, os alunos manifestaram explicitamente o interesse de que tal atividade ocorresse mais vezes, que foi um momento interessante no qual eles tiveram a chance de expor livremente as suas ideias, que não foram baseadas apenas em argumentos do senso comum, pois foi pedido que eles pesquisassem sobre os temas para que pudessem argumentar com fundamento, com dados publicados em órgãos sérios – e assim ocorreu. Todos os discentes tinham direito à palavra, com réplica e tréplica; o importante era exercer a capacidade de se posicionar criticamente, de forma fundamentada, e muitos discentes conseguiram construir esse processo.

No final do debate, todos tiveram espaço para se posicionar individualmente sobre a questão debatida de modo livre e de acordo com o que pensavam sobre a temática discutida, pois, no calor do debate, muitas posições não puderam ficar esclarecidas.

Na turma do primeiro ano, a experiência não pode ocorrer, pois senti que o tópico sexualidade fora escolhido de forma provocativa, a fim de acirrar algumas divergências sobre o tema que já existiam dentro da classe; sendo assim, diante do perigo de o debate servir como elemento que aguça o preconceito, ao invés de superá-lo, e de os próprios alunos se mostrarem preocupados com a situação, decidimos que essa experiência, pelo menos naquele momento, teria que ter uma reflexão mais intensa para que pudesse ocorrer com respeito e responsabilidade.

O destaque a uma prática frustrada é apenas um modo de lembrar que, na ação docente, como dissemos, nem sempre é possível obter sucesso. As contradições também fazem parte do nosso trabalho, assim como fazem parte da vida. Nessa atividade a intenção era trabalhar questões relacionadas à possibilidade de ouvir e falar como uma dimensão político-educativa baseada em Hannah Arendt, e ainda na “leitura do mudo” de Freire; neste último caso, a visão que os alunos já trazem sobre o tema escolhido poderia ser explorada pedagogicamente. De qualquer modo, mesmo que a ação proposta não tenha ocorrido de fato, prevaleceu um acordo mútuo, pois, como citamos, os próprios alunos e alunas sentiram que aquele não era um bom momento. A percepção da realidade, de situações que envolvem determinado fato esteve presente e não deixou de ser uma situação de aprendizado.

Outra experiência realizada com o objetivo de explorar a relação entre leitura, fala e audição foi sobre os mitos e a Filosofia. Numa palestra realizada em consonância com a disciplina Física, em um evento interno do Colégio Estadual Canadá denominado Semana de Física, cujo tema foi “A mitologia e o nome dos planetas”, procuramos destacar a proximidade que existia no Mundo Antigo entre a narrativa mitológica, a Física e a Filosofia, uma vez que nesse período não havia separação radical entre as áreas do saber. Um dos objetivos dessa atividade foi trabalhar de forma interdisciplinar assuntos relacionados às duas disciplinas e demonstrar que ainda hoje é possível abordar pontos significativos dos conteúdos tentando diminuir a demasiada “disciplinarização” do saber na contemporaneidade.

Após esse trabalho interdisciplinar que envolveu as áreas de Filosofia, Física e outras disciplinas, alguns alunos manifestaram interesse de aprofundar o conhecimento sobre os mitos gregos e romanos e seus significados. Foi proposto então que eles se reunissem em grupos, pesquisassem o assunto e depois fosse realizada uma apresentação. Nesse momento, buscávamos explorar com os alunos a capacidade de utilizar o discurso via apresentação verbal e a capacidade de ouvir, ao respeitar o momento que os colegas estavam expondo suas ideias. Cada grupo também entregou um resumo escrito com suas impressões sobre o mito estudado.

Antes da apresentação foi proposta uma bibliografia básica: a Teogonia: a origem dos deuses, de Hesíodo; e As 100 melhores histórias da mitologia. Deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana, de Carmen Seganfredo e A. S. Franchini. Essas deveriam ser as fontes principais da pesquisa, e a Teogonia foi o livro a partir do qual ministrei as aulas sobre os mitos gregos para situar os discentes na discussão em questão; os alunos tiveram a liberdade de buscar outras fontes.

As apresentações foram variadas. Um grupo teve excelente desempenho, com detalhes de informações e utilizando cartazes; outro grupo obteve menos sucesso, pois, embora não tenham fugido do tema, os integrantes se restringiram a apenas ler o material pesquisado. Um terceiro grupo foi bastante espontâneo e procurou expressar, sem recorrer ao material escrito, o que haviam estudado. Mas teve um grupo com extrema dificuldade de se expressar por causa da timidez e falta de costume em expor as suas informações para o público.

Ou seja, tudo que ocorreu entre esses jovens não é em nada diferente do que poderia ocorrer entre pessoas de qualquer idade e grau de estudo. O que chamou a atenção, ainda, foram alguns questionamentos que ocorreram após as apresentações. Teve um aluno que pediu para que nunca mais fosse submetido a tal situação, pois ele não se sentiu nada à vontade; outros, apesar da dificuldade de expor o trabalho, entenderam a importância de vencer a timidez e de superar a tensão e desafio de enfrentar uma “plateia”.

Outro aspecto interessante foram os questionamentos referentes ao conteúdo da narrativa mitológica, em boa parte feitos pelos discentes; por se tratar de história sobre os deuses, fez-se paralelo com a visão judaico-cristã da divindade que prevalece em nossa cultura, considerando equivocada a interpretação que gregos e romanos antigos davam sobre a ação da divindade entre os homens.

Essa foi uma oportunidade de explicar que aquela narrativa estava situada em determinado contexto e serviu durante muito tempo como meio para os nossos ancestrais darem significado à sua existência. Por outro lado, várias expressões mitológicas continuam presentes em nossa vida atual, como nas religiões africanas, orientais, indígenas e nos modos como muitos grupos sociais atribuem sentido às suas vidas.

Mesmo que não se concorde com essas visões, elas fazem parte da existência histórica humana e precisam ser respeitadas, além de estarem na raiz da construção cultural no Ocidente. Conhecer outras maneiras de ver a vida não deve servir para que os indivíduos se convertam a essas novas visões, mas para que se saiba afirmar a própria posição com fundamento, superando opiniões meramente baseadas no preconceito e no senso comum. Essa não é uma tarefa fácil em uma cultura que é extremamente imediatista, mas é tarefa da Filosofia ajudar a pensar tais questões.

Considerações finais

Podemos afirmar que a leitura e a escrita têm sido um dos focos primordiais para a formação discente atual. Tem ocorrido com frequência, infelizmente, que alunos terminem o Ensino Médio sem dominar adequadamente a capacidade de ler com compreensão e de escrever de forma minimamente correta; se formos considerar as deficiências no campo das Ciências Exatas, elas são ainda mais gritantes. Mas a leitura e a escrita carregam na sua construção outros elementos que estão diretamente relacionados aos nossos sentidos: o ouvir e o falar. Se há deficiência nas duas primeiras formas de obtenção de conhecimento citadas, ela é ainda mais gritante nesses dois últimos. O que queremos dizer com isso? Que a escola geralmente não forma para a escuta e para a fala. Ainda estamos sob a predominância do discurso docente como aquele que deve prevalecer, e o discente é aquele que deve absorver e reproduzir o saber considerado socialmente significativo.

Atualmente vemos um movimento que visa priorizar o protagonismo discente, mas esse não é um exercício simples, pois para se deixar protagonizar e para ser protagonista temos que criar um longo caminho; entretanto, o fato de haver valorização desse processo já gera uma expectativa positiva. Por isso, propomos refletir sobre ler, escrever, falar e ouvir criticamente; esse pode ser um dos percursos para avançar nos esforços de elaborar uma escola mais participativa e criativa.

É importante ressaltar que pensar, ler, escrever, falar e ouvir inclui alunos especiais; mesmo que eles tenham a ausência de algum dos sentidos, isso não deve ser empecilho para que recebam educação de qualidade e possam participar da vida social com autonomia e liberdade.

O trabalho teve como base teórica principalmente a concepção de “leitura do mundo” de Paulo Freire; os alunos fizeram uma relação direta dos mitos gregos com a forma como a maioria de nós faz a leitura da presença da divindade em nossas vidas, e o objetivo foi tentar confrontar a perspectiva que cada um trazia com outras concepções de mundo.

Outra base teórica importante que procuramos explorar baseou-se na concepção que Nietzsche traz para o ver, escrever, pensar e falar como uma aprendizagem necessária a uma educação nobre. Para ver o mundo de forma mais profunda, não se deve estar imbuído de afobamento. Nossa leitura da realidade é apenas uma entre tantas outras que existem, e saber respeitar essas diferenças é um modo de exercitar a nobreza.

Hannah Arendt ajudou a analisar a importância da pluralidade, da participação ativa na vida coletiva como um modo do ser humano expressar a si mesmo. Uma perspectiva que só ocorre entre os homens e que ajuda a pensar uma relação educativa em que esse entre pode ser efetivado com qualidade tanto para os docentes como para os alunos.

Referências

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NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

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Publicado em 01 de março de 2016

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