Da rua para a universidade e da universidade para a rua
Entrevista a Mariana Cruz
Wiliam Prudêncio, ou Maicol – como é conhecido nas rodas de Capoeira Angola do Rio de Janeiro –, tem uma história de vida que parece ficção: não pelo início difícil de menino em situação de rua, como tantas crianças que vemos por aí, mas pelo que ele conquistou depois – êxito conseguido por poucos nessa situação, dadas as imensas dificuldades encontradas pelo caminho. Até os 13 anos, Maicol nunca tinha entrado em uma sala de aula, mas assim que teve a chance de estudar o menino fez bonito: aos 18 já estava na faculdade.
Formado em Economia e em Relações Internacionais, ele hoje tem um projeto social no qual oferece treinos de capoeira na rua, mais especificamente no Largo de São Francisco, no Rio de Janeiro, para quem quiser chegar: universitários, pessoas em situação de rua, trabalhadores. São todos bem-vindos. E no desenrolar dessas atividades ele aproveita para discutir com os participantes questões relacionadas a racismo, desigualdade social e violências sofridas pelas minorias. É dessa forma que ele tenta passar um pouco da sua experiência e mostrar que com engajamento, luta e dedicação pode-se conseguir o que se quer, sem nunca baixar a cabeça para os preconceitos.
REP: Como você conheceu a Capoeira Angola?
Maicol: Faço capoeira há 12 anos. Comecei capoeira com o mestre Mano, na Escola de Capoeira Angola Flor da Gente, no Catete. Graças a uma bolsa que ele me deu (eu não tinha condições de pagar), um dos meus irmãos mais velhos foi lá fazer capoeira, falou do trabalho dos meus pais e aí ele disponibilizou três bolsas integrais para a gente fazer capoeira lá na escola. Nessa época eu tinha 18/20 anos. Meu apelido de capoeira é Maicol e meu nome é Wiliam Prudêncio.
REP: Explica essa idade?
Maicol: É que eu tenho dois anos a mais na identidade. Então eu tinha 20, mas na verdade eu tinha mesmo 18; hoje eu tenho 32, mas na verdade tenho 30. Atualmente eu estou mais dedicado à capoeira, eu estou tirando um período sabático; trabalhei até março de 2015 como economista. Saí da empresa e agora eu quero me desintoxicar um pouco porque, trabalhando como economista, vi que os temas eram muito de direita; os temas não batiam, a discussão não batia. Com a época das eleições eu vi que tinha muita gente de direita, com os pensamentos de manutenção desse sistema de opressão como um todo. O pessoal falando muitas coisas racistas, falando muita coisa discriminatória em relação ao pessoal do nordeste, contra o homossexual. É isso, era uma linha de pensamento na qual eu não me sentia confortável e aí agora eu estou passando por um período de desintoxicação desse ambiente; eu estou me dedicando mais aos meus projetos pessoais, no que acredito em relação à militância mesmo, que vai justamente na contramão daquilo com que eu convivia lá na empresa; é ajudar ao próximo, é se ajudar e trabalhar pela desconstrução de um monte de coisa: machismo, racismo, homofobia.
REP: Conte um pouco da sua história de vida.
Maicol: Não conheci meu pai biológico, morava com minha mãe e o padrasto e tinha dois filhos mais. Morei na (favela) Nova Holanda nesse período e na Ilha do Governador. Tinha muitas complicações na família porque eu não era filho desse padrasto e os outros dois eram, então ele tinha alguns ressentimentos em relação a isso; eu tinha muitos conflitos com ele – ou ele comigo na verdade. Por causa disso, minha mãe brigava muito com ele, até que ela não aguentou mais, me pegou e gente foi embora. A gente fugiu de casa, nós dois fomos pelo mundo como nômades. Moramos na casa dos outros, às vezes na rua. Eu tinha cinco anos. A gente foi batendo aqui, batendo acolá e quando eu tinha oito anos ela me deixou com alguém; não podendo ficar comigo, optou por me deixar com alguém e sumiu. Aí, um ano depois ela apareceu me pegou, tentamos ficar juntos novamente, ela também não conseguiu, algumas coisas aconteceram também, não foi possível e ela me deixou de novo com essa mesma família e aí eu nunca mais eu vi minha mãe. Eu fui vivendo com essa família, que tinha nove filhos. Era uma família que morava em um casarão abandonado na rua, uma ocupação. A gente morava lá, mas passava o dia na rua. Eu e os filhos dela. Na verdade, os seis filhos dela, porque três eram mulheres e ficavam mais em casa ajudando ela nas coisas de casa e a gente ficava na rua, pedia dinheiro, arrumava comida, arrumava as coisas para dentro de casa.
REP: Você tem contato com esses meninos até hoje em dia?
Maicol: Não, não tenho. Perdi o contato com eles há muito tempo. Muitos morreram. Essa foi minha referência de família logo após (a separação dele com a mãe). A gente ficou vivendo lá, depois a gente foi morar no morro de São João. Aí a senhora que era minha mãe na época (essa dos nove filhos) faleceu e a gente continuou morando lá no morro até que aconteceram algumas coisas e eu preferi morar na rua. Eu fiquei uns dois anos morando na rua sozinho, ali no Grajaú, na Praça Edmundo Rego, mas ainda tinha contato com eles porque eles viviam na rua, eu só não ia para a casa. Optei por ficar na rua, aí depois de um tempo eu fui para uma instituição. Teve uma atividade na rua, eles levaram a gente para um sítio.
REP: Nessa época você ainda não estudava?
Maicol: Não estudava. Tentei até estudar nessa época, procurei vários lugares, porque os outros nove filhos estudavam, mas eu não consegui estudar, porque eu não tinha certidão de nascimento e era necessário ter a certidão para poder estudar e eu não consegui. Foi esse link que me levou a ir para uma instituição. Na verdade, quando a gente tá na rua a gente odeia e corre de tudo que é órgão do governo que vem pegar a gente para fazer isso ou fazer aquilo, ou ficar em um abrigo, porque a gente tem uma ideia de que é um lugar que maltrata a gente. Em geral, a maioria das casas do governo para menores são ruins, porque tratam a gente como marginais e ninguém quer ficar nesses lugares, não é um lugar acolhedor, é um lugar repressor. Eu aceitei ir para uma instituição porque eu queria estudar, queria ver como é que era e queria ter essa certidão de nascimento. Eles prometeram que eu estudaria e me dariam uma certidão de nascimento, aí eu fui e fiquei. A gente foi para uma instituição que estava sendo construída, o Cemasi Ayrton Senna. Mas aí é questão interessante, e é por isso que eu acho que tenho algo muito iluminado... É que essa instituição, que eu achei que seria muito repressora, na verdade era uma instituição super tranquila, um lugar super respeitador, super acolhedor e tal. Eu cheguei a ir lá um ou dois anos depois de eu ter saído de lá, e já estava todo revirado.
REP: Então você pegou a época “áurea” de lá?
Maicol: Eu tenho esse costume de dar sorte. De conhecer pessoas e lugares bons em épocas boas justamente para aquilo que eu estou precisando. E aí eu fiquei nessa instituição um tempo, comecei a estudar lá, comecei atrasado mesmo. Eu comecei na segunda série, porque eu já sabia ler, já sabia fazer umas contas de matemática, porque eu acompanhava o dever de casa dos meus irmãos e várias vezes eu acabava ensinando a eles como fazer. Sempre tive muita facilidade com os estudos. Aí dois anos depois eu não podia mais ficar nessa instituição porque só podia até os 15 anos. Eu fiquei um pouco mais, consegui passar acho que meio ano, porque era cravado que tinha que sair com 15 anos. Mas o pessoal queria primeiro achar um lugar bom para me mandar para depois me deixar sair, então rolaram brigas nos bastidores para que eu ficasse mais lá. Apesar de ser muito bagunceiro, eu consegui virar o xodó. Acho que só a luz explica isso. E aí me mandaram para uma casa em Vargem Grande que é onde eu tenho minha referência de família hoje. É um sítio. Quando eu cheguei lá, tinha mais de 80 crianças. Existia desde 1987. Começou em Paraíba do Sul e tinha um pai e uma mãe que cuidavam de várias crianças, inclusive moravam com seus filhos biológicos lá.
REP: Qual o nome desse lugar?
Maicol: Instituição Santa Clara, em Vargem Grande. Lá viviam os três filhos biológicos, que cresceram com a galera. Era como se fosse todo mundo igual. Foi lá que eu comecei a ter a minha referência de família. Eu era muito arredio. Na verdade, eu tinha uma família mas eu não era da família porque eu sempre fui muito desconfiado com afeto, com carinho, então eu acabei ficando irmão dos meus irmãos antes de ficar filho da minha mãe e do meu pai. Eu era muito arredio em relação aos meus pais. Inclusive tem uma coisa que eu sempre lembro na época em que eu morei lá, eu acho que eu nunca dei “boa noite” para os meus pais. Tinha alguma coisa que me bloqueava, que eu ficava com vergonha de dar "boa noite". Então, quando eu estava no quarto deles à noite e eu queria dormir eu saía escondido no meio de todo mundo ou então esperava meu pai ir ao banheiro e saía de fininho. Hoje é minha referência de família, me ensinou muita coisa. Minha mãe e meu pai lutaram muito.
REP: Eles moram em Vargem Grande ainda?
Maicol: Eles moram em Vargem Grande; na semana passada foi aniversário dos dois, eles fazem aniversário perto, um faz dia 9 e outro dia 12 (de novembro); eu estive lá com eles. A gente está sempre junto. Eu, meus irmãos, meus pais. Na verdade, hoje a família se restringiu à gente, e morando lá – porque o projeto acabou – os três irmãos biológicos e mais alguns que frequentam a família e tem mais três que moram lá com os meus pais, além dos três biológicos.
REP: E lá você teve o que te faltou a vida toda: o afeto, atenção, estudo...
Maicol: Isso, lá eu tive quem me ajudasse, quem tomasse conta de mim, quem lutasse – até quando eu não sabia o que eu estava fazendo – para eu ter as coisas. Inclusive quando eu comecei a fazer capoeira, em 2003, eu estava lá no último ano do Ensino Médio para fazer vestibular e, certa vez, eu cheguei a casa e minha mãe estava toda feliz, disse que tinha arrumado um curso pré-vestibular para mim no PH, que era um dos melhores cursos. E era totalmente de graça, ela apresentou minhas notas, meu boletim e falou muito e mim lá e conseguiu a bolsa.
REP: Onde você estudou?
Estudei no Colégio da Cidade, que era lá em Vargem Grande mesmo. Inclusive pulei algumas séries porque minha mãe era diretora da escola e os professores iam até ela pedir que eu fizesse uma prova para que eu pulasse de ano. Diziam que eu, apesar de estar atrasado, tinha notas muito boas e tinha capacidade de pular de ano. Aí eles iam conversar com a minha mãe. Quando terminei o Ensino Médio, eu tinha esses 18/20 anos.
REP: Aí você foi fazer esse curso pré-vestibular?
Maicol: Aí é que tá, eu não fui. Falei para a minha mãe que eu queria continuar fazendo capoeira, achava mais legal e que iria acrescentar mais à minha vivência e que ela não se preocupasse porque eu ia passar no vestibular tranquilamente. Ela talvez tenha ficado um pouco decepcionada, mas não reclamou, não forçou a barra, nada. Só me deu um abraço e tudo bem. E aí eu continuei fazendo capoeira.
REP: Como foi no vestibular?
Maicol: Fiz para Economia na UERJ e passei; fiz para economia na UFRJ, não passei, e fiz para Relações Internacionais na Estácio (Universidade Estácio de Sá), porque minha mãe queria muito que eu fizesse. Eu nem sabia desse curso de Relações Internacionais. Passei em Economia pelas cotas. Eu queria ser diplomata, tinha falado com minha mãe. Eu ia fazer faculdade de Economia e Direito, só que Direito todo mundo fazia e eu tenho essa coisa de que o que todo mundo faz eu não quero fazer. Aí desisti de Direito e ia fazer Economia e estava procurando outro curso para fazer, História e tal. Aí minha mãe achou o curso de Relações Internacionais, falou que tinha a ver e que tinha um vestibular que ia dar bolsa para os melhores colocados e um emprego, "Primeiro emprego” era o nome do vestibular. Ela falou para eu fazer esse vestibular que eu ia passar entre os primeiros colocados e ia conseguir a bolsa e o emprego. Eu fiquei no começo meio assim, aí ela falou que eu já tinha pagado e que era pra eu fazer. Aí eu fui lá e fiz, passei com bolsa integral, ganhei o emprego e a partir dali eu já não precisava financeiramente dos meus pais, já foi bem legal que eu podia fazer minhas coisas, ter meu dinheiro.
REP: Com isso tudo você continuou fazendo a capoeira paralelamente?
Maicol: Isso. Eu fiz as duas faculdades juntas e fiz a capoeira. Fazia a faculdade durante a semana, manhã e tarde, trabalhava à noite e fazia capoeira sábado com o meu mestre. Depois de uns dois anos, dois anos e meio, eu passei também a fazer uns treinos lá em casa no domingo para as crianças.
REP: Fale um pouco de como começou esse projeto de aula de capoeira na rua.
Maicol: O projeto aqui no Largo de São Francisco (centro da cidade do Rio de Janeiro) começou já há muito tempo. Não seria necessariamente aqui, mas a ideia era que eu pudesse fazer alguma coisa para ajudar a incluir o pessoal da rua, integrar o pessoal da rua com o pessoal das universidades, o pessoal de classe média e tudo o mais. Fazer acontecer. Tem muito do discurso da capoeira sobre a integração e, na verdade, o objetivo desse trabalho seria realizar esse potencial que a própria capoeira tem. A ideia surgiu com essa necessidade que eu sentia. Assim, eu venho para a rua com a ideia de oferecer capoeira para as pessoas na rua. A ideia é mais do que oferecer capoeira, é oferecer todo o arcabouço teórico e trabalhar a questão da filosofia de vida dentro da capoeira e a história da capoeira, porque é uma história que se confunde – ou que é condicionada – pelos mesmos fatores que condicionam as pessoas a estar nas ruas hoje: uma história de racismo, de opressão. Eu acho que tem muito a ver com isso. Então eu venho para rua para fazer a capoeira que eu fazia dentro da academia, até porque muitas pessoas não podem fazer capoeira porque ela está dentro da academia e geralmente são as pessoas que mais precisam e que têm uma história que têm mais a ver com a história da capoeira. Em geral a gente hoje está vendo, pelo menos dentro da Capoeira Angola, uma perda de espaço para os negros, que vêm junto com uma linha geral de perda de espaço dos negros na sociedade com um todo, em qualquer lugar que ele é valorizado, inclusive em sua cultura. Quando ela começa a ser valorizada, o negro começa a perder espaço. A gente tem como grande exemplo o Maracanã, sempre foi um lugar frequentado por muitos negros e na Copa do Mundo saiu notícia internacional no The Guardian:"Cadê os negros do Brasil?". A gente tem o Porto Maravilha, a mesma coisa. O porto agora tá ficando branco. É um lugar onde a negritude começou, foi o berço da negritude, o Valongo, a chegada dos negros, o Morro da Providência, e hoje a gente está nessa situação. Então esse projeto é meio que para ir na contramão disso tudo e para provar que a gente pode fazer as coisas com um recurso mínimo. Quando eu cheguei aqui no Largo de São Francisco era só eu e um amigo meu treinando, sem cobrar nada, sem apoio governamental. Não estou dizendo que isso é totalmente dispensável, estou dizendo que a gente pode correr atrás disso, mas eu quero que isso não determine o que a gente pode fazer.
REP: Como esse trabalho começou na prática?
Maicol: A gente tinha essa ideia de ajudar os outros, fazer um trabalho de inclusão mesmo. Então a gente começou a treinar aqui e as pessoas iam chegando e gente dizia "é livre, pode treinar com a gente". Aí a gente foi incrementando com bate-papo. Fiquei dois anos treinando com esse meu amigo, só eu e ele, para ele entender um pouco mais do que eu sou, da minha história de vida, do que eu queria e também ajudá-lo, já que ele não teve essa vivência de estar na rua. Eu queria trocar um pouco essa experiência com ele para que ele também não se assustasse com algumas coisas que tem na rua. A gente ficou uns dois anos treinando lá no Aterro e depois viemos para cá para realizar essa atividade. A princípio era uma coisa muito mais voltada para a garotada da rua. Eram muitos meninos de rua, mais de trinta passavam aqui em grupo e de repente começavam a roubar todo mundo. Com a capoeira eles ficavam super de boa, várias vezes eu intervinha, falava que eles não iam roubar ninguém. Uma vez salvei o Renato Cinco (vereador pelo Psol no Rio de Janeiro) e ele até postou no Facebook que foi salvo pela capoeira daqui. A galera chegava aqui na capoeira e participava na boa. Teve um episódio de um rapaz chegou aqui para participar do treino aí eu fiquei sacando ele. Deixei ele ali de escanteio, falei para ele observar um pouco como funcionava aí depois pedi para ele chegar, mas que tirasse tudo que ele tivesse ali, porque eu saquei que ele estava com algumas coisas; ele foi lá e tirou uma faca, colocou ali, fiquei treinando com ele, com umas crianças que estavam aqui, depois agradeceu a oportunidade, brincou comigo, conversamos. Ele falou que achava legal o trabalho que eu estava fazendo e que entendia, deu os parabéns, pegou as coisas dele e foi embora.
REP: Você continua dando aula para esses meninos? Modificou o cenário?
Maicol: Foi modificando com essa questão do roubo. A galera do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, prédio que fica de frente para a praça) era roubada e foram instalados carros de polícia aqui, e com a polícia aqui os moleques começaram a sair. Até hoje você vê sempre um carro de polícia, então eles botaram os moleques para correr, não deixam as pessoas mais deitarem no banco da praça, várias vezes você vê eles tirando o pessoal da praça. Então o espaço foi se perdendo. Isso é uma crítica que eu tenho ao próprio IFCS, porque é um centro de ensino de excelência nas questões sociais, mas se você olhar em torno dele é cheio de problemas sociais que eu não sei como eles interagem. Quantos estudam no IFCS? Os moleques não podem entrar lá. Muitas vezes treinavam aqui, estavam com sede, queriam entrar e não podiam. Eu dizia: "vai entrar, sim". Fazer a capoeira aqui foi uma questão de tentar botar em diálogo essas duas esferas que não dialogam e que, na verdade, deveriam estar juntas. Aqui a gente tem uma galera que vive mais a rua e uma galera que é universitária, então a gente vai fazendo toda essa mistura e vai trocando papo. A gente procura alimentar os nossos bate-papos com textos de blogueiras e pessoas que pensam a desconstrução dessa sociedade, dos estigmas, dos problemas. Faço contação de histórias de orixás para fazer a desconstrução da intolerância religiosa, a valorização da nossa identidade, seja branco, azul, amarelo, negro. A gente faz essa contação de história todos os dias de aula. São duas histórias por aula: uma no início, outra no final. No início a gente sempre conta uma história de Exu, e a do final sempre é do orixá do dia ou do dia seguinte. E no final a gente faz uma discussão, quando dá tempo. A gente pega um tema social, um texto sobre a questão de homofobia, racismo etc. e vai tentando desconstruir. Mas a principal coisa que a gente tenta desconstruir é a gente mesmo. A gente começa a aprender a lidar com crítica, saber que eu mesmo fazendo esse trabalho eu sou, sim, racista, machista, homofóbico, porque a gente vem com o pacote social. Não existe não ser, a gente desconstrói e, vira e mexe, eu vou cair em uma atitude dessa que talvez eu nem saiba que seja machista, racista e vou desconstruir, vou refazer. Quando eu era mais novo, tinha uma brincadeira que a gente fazia quando eu morava na rua que a gente botava o braço lado a lado e quem fosse mais preto é que ia ficar com a tarefa que ninguém queria fazer.
REP: Como é que são esses dois mundos para você, o da academia e o da rua? Você consegue pontuar a sua vida de quando você era marginalizado e depois que você entrou para a faculdade?
Maicol: Existe uma grande diferença de quando você esta na rua e quando você está na academia. Uma questão muito interessante é que quando você está na academia você vê as pessoas falando da rua com uma falta de conhecimento enorme, vê as pessoas falando de situações com uma falta de conhecimento enorme e aí você pensa: “são essas pessoas que fazem a política contra o pessoal da rua e são essas pessoas que fazem a política a favor do pessoal da rua e também não sabem nada do pessoal da rua”. Então a bem da verdade não tem ninguém fazendo pelo pessoal da rua mesmo. Boa intenção não é suficiente. É preciso que você saiba falar academicamente, mas você tem que saber dialogar também com o pessoal da rua. Até por que não se fala por ninguém. Não é aquela ideia de que “ah, eu não vou fazer com o outro o que eu não queria que fizesse comigo", às vezes tem gente gosta de algumas coisas de que os outros não gostam, então você não vai naturalizar porque você gosta que façam contigo. Não, a gente não é o centro do universo. Então a ideia desse trabalho que eu faço na rua é isso: é trazer as pessoas para dialogar com as pessoas de quem eles falam. E aí a gente vai trazer cada vez mais as políticas para a primeira pessoa. Já que ele vai fazer a política para “tal”, ele tem que estar o mais próximo possível de “tal”, dar a voz para “tal”, e a gente tem que estar submisso ao sim ou o não do “tal”. A gente não pode querer atropelar os outros. Então essa questão de ir para academia me deu muito essa maturidade e, além disso, eu nunca fui de falar de cabeça abaixada para ninguém, então é para eu poder também falar em cima com quem está em cima e embaixo com quem está embaixo. Eu acredito que ninguém deve baixar a cabeça para ninguém e acho que mesmo se eu não estivesse na universidade eu seria assim, mas foi uma questão de empoderamento – para usar uma palavra que hoje está na moda –, foi uma questão de a gente poder falar com todo mundo, sentir-se capaz de fazer o que quer, de ser o que quiser.
O que acontece é que as pessoas que vivem bem e dispõem de boa estrutura social são, na sua maioria, de pele clara, enquanto as pessoas que enfrentam mais dificuldades na rua na sua maioria têm pele escura. Por exemplo, na empresa em que eu trabalhava – tirando as copeiras e o pessoa da limpeza –, 99% das pessoas eram brancas, enquanto as pessoas na rua, em condições difíceis, na sua maioria são negras. Isso não é coincidência. E as pessoas têm que parar de achar que não têm nada a ver coisa isso. As pessoas brancas têm que entender que elas se beneficiam disso e têm mais poder social por conta dessa dinâmica. Portanto, há, sim, um dever moral de utilizar esse poder, esse favorecimento no combate às assimetrias.
REP: E esse engajamento, esse seu discurso antirracista, como começou?
Maicol: O que eu vejo é que na época do Moraes (um dos mais importantes mestres de Capoeira Angola da atualidade) tinha muito esse discurso. Na verdade, foi o primeiro ídolo que eu tive. Nunca fui de endeusar ninguém, nunca tive ídolos e tal. Mestre Moraes foi o primeiro. A questão da negritude entra na minha vida com a capoeira e pelo fato de eu gostar muito do Mestre Moraes e com o trabalho que ele fazia aqui e correr atrás. Aí, depois, Malcolm X, Mohamed Ali... Eu comecei a ler muito sobre Mestre Moraes, sobre o trabalho dele, via os vídeos dele no Facebook e digitava no Google para ver se tinha alguma entrevista com ele. Inclusive eu comecei a fazer capoeira mais pelo aspecto cultural e só para acompanhar meus irmãos mesmo, não tinha muito interesse; aí depois eu fui me encontrando. Meu irmão saiu da capoeira e eu fui o único que ficou. As outras pessoas que receberam bolsa também não ficaram. O que reforçou muito minha questão com a negritude foi justamente perceber isso, ver essas questões que o Moraes falava por gostar muito dele e perceber as contradições da própria capoeira, que, apesar do discurso de negritude, eu via cada vez menos negros na capoeira. Tem alguns episódios especiais que me marcaram em relação a isso: eu fazia sempre uma atividade com os meninos lá de casa, depois que eu comecei o trabalho com capoeira no dia 20 de novembro, para Zumbi. Certa vez, numa roda no Catete eu fazia um discurso como eu via o Moraes fazendo nos vídeos, então eu falava sobre Zumbi, sobre a questão da negritude... E um rapaz que estava na plateia interveio e perguntou (um rapaz branco): “vocês estão falando de negritude e tal, mas eu não estou vendo nenhum negro aí na capoeira”. Ele me alertou dessa coisa. E aí um amigo do grupo falou: “mas por dentro todo mundo é negro”. E aí foram duas pancadas: ouvir isso e cair na real com essa questão. E é assim que eu funciono: a pancada vem e eu vou resolver, não me abala nada. E foi uma nova fase da minha vida, de começar a questionar, a buscar, questionar dentro do meu próprio grupo. E eu tinha até a ideia de que eu conseguiria convencer alguém e eu seria apenas o ajudante, eu nunca tive ideia de ficar à frente de um trabalho porque sempre fui bicho do mato, eu passei anos e anos tentando achar esse alguém, tentei com alguns amigos, alguns mestres, alguns contramestres para puxar esse bonde e eu ir junto, só que eu saquei que não ia ser. E aí foi quando eu falei, “bom, quem vai fazer essa parada sou eu e eu espero que a partir disso eu consiga puxar essa galera para fazer”. Foi quando eu comecei a dar as caras mesmo. A minha ideia de dar as caras, não é ficar na frente para sempre, é na verdade preparar pessoas para que fiquem lá e para que depois eu possa dar ó! (faz um tchau com as mãos). Possa dar um passo para trás e dizer “fica aí, deixa eu ir”. Então a ideia aqui do trabalho é essa autonomia. Eu viajei muito este ano (2015) e todas as vezes que eu viajava eles continuavam aqui fazendo a capoeira, o bate-papo, tudo. Na verdade, eu só estou aqui ainda por causa dessa capoeira, desse trabalho, porque eu queria estar na Bahia passando meu período sabático. O custo de vida é mais barato para quem não está trabalhando, então me ajudaria bastante e porque eu quero começar a estudar mesmo, voltar a me dedicar um pouco à minha carreira profissional. Ao mesmo tempo que eu consiga ter uma atividade social, eu quero ter mais tempo para estudar para a carreira diplomática.
REP: Tem alguma mensagem que você gostaria de passar para os leitores?
Maicol: Eu queria que todo mundo pudesse ter a sorte de ter a mãe que eu tive. Como eu não posso, eu passo um pouquinho dela para cada um; também queria que todo mundo pudesse ter, apesar de parecer estranho, o que eu tive também. Não a questão da história e que passasse pelo que eu passei, mas a questão da força de vontade ou da chatice de ser tinhoso, de não baixar a cabeça para os problemas e de correr atrás. Não ter medo de botar a cara a tapa, sacou? Na verdade, é a chatice de querer enfrentar os medos. Fale alguma coisa que é difícil de fazer, impossível de fazer, eu vou lá e quero fazer aquilo. É uma coisa que eu tento passar para as pessoas, procurar estar sempre com a cabeça erguida, sempre buscar ser o que é, se afirmar como tal, lutar pelo que quer. Eu tento passar um pouco disso que, por sorte ou não sei o quê, nasceu comigo e um pouco do que eu aprendi com a minha mãe e a minha família para todo mundo. Eu acho que é o processo mesmo de a gente junto tentar se desconstruir e reconstruir o tempo todo.
REP: Qual é o papel da capoeira nesse processo?
Maicol: Acho que a capoeira tem um enorme potencial para isso. Inclusive porque está no mundo inteiro e é integrada e tem muita gente boa. Então, se a gente começar um processo, uma política consistente de realização de atividades, de transformar o discurso em ação, a gente consegue atingir o mundo inteiro. E aí, sim, eu vou entender a capoeira como um movimento de resistência e até como se fosse um cavalo-de-troia. Que foi um presente que entrou no mundo branco para divertir todo mundo e de repente a gente começa com as ideias de fundo, começa a reagir, começa a derrubar esse mundo que condicionou que a capoeira tivesse que ser assim porque foi uma opressão para a capoeira para que tivesse que ser assim. Tiveram que fazer uma capoeira aceita para branco para que não se perseguisse mais a capoeira, e hoje a capoeira é aceita. Às vezes as pessoas acham que a capoeira conquistou a sociedade, eu acho que a sociedade conquistou a capoeira e acho que a única coisa que vai me convencer do contrário é se a gente realmente usar como se fosse um cavalo-de-troia; botar os conceitos da capoeira para a realidade e desconstruir esse mundo que condicionou a gente a ser assim.
Publicado em 14 de abril de 2016
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