A família, o educador físico e sua importância na formação do discente
Marcelo Bittencourt Jardim
Licenciado e bacharel em Educação Física (Unipli), especialista em Psicomotricidade (IBMR), pesquisador e membro do Comitê Científico Internacional da revista Oberservatorio Del Deporte ODEP – Universidad de los Lagos (Santiago – Chile)
Este trabalho tem como objetivo principal orientar e proporcionar às famílias e a todos os indivíduos que queiram se inteirar sobre o assunto como entender, ajudar e procurar minimizar o risco social de crianças e adolescentes das comunidades carentes à exposição ao tráfico, à ociosidade, à prostituição, que, por meio das atividades esportivas, educacionais e sociais, podem enxergar um caminho melhor e que a figura do educador é importantíssima para contribuir na formação de crianças que vivem em lugares de vulnerabilidade e risco social.
A importância da Psicomotricidade no âmbito familiar
A família é uma importante instituição e um pilar na formação do indivíduo, no caráter e na construção de valores morais, éticos e afetivos. É onde se pode e se deve encontrar espaço para conversas, questionamentos, desabafos, diálogo, na busca de superação de circunstâncias, problemas, conflitos de convivência entre irmãos, pais e na elaboração cotidiana do respeito mútuo (Jardim, 2012).
Os tempos mudaram, mas a qualidade dos vínculos afetivos e a crença nos valores permanecem nas raízes da construção do caráter, da formação de laços afetivos e no desenvolvimento da segurança emocional, na procura de elevar a autoestima positiva e no respeito às características individuais (Almeida, 2010).
Todos os dias, crianças e adolescentes veem na mídia propagandas de cervejas e de outras bebidas alcoólicas sendo consumidas por pessoas “saudáveis”, bonitas e bem-sucedidas. A mídia vende o glamour e todo o clima de poder, conquista, sucesso, alegria, superação de problemas, associados ao uso de drogas legais.
A influência mais forte, no entanto, deve ser exercida pela família, pelo exemplo e pelo desenvolvimento de uma consciência crítica frente às mensagens veiculadas pelos meios de comunicação de massa (Suanno, 2009).
A família, como instituição social, está sujeita às influências que a realidade cultural e histórica determinam, e por isso frequentemente vem atravessando crises. No entanto, tem se mostrado uma instituição muito resistente, capaz de adaptar-se e sobreviver a esses diferentes momentos. Porém novos valores e paradigmas se impõem em relação à família (Andrade, 2010).
Como instituição importante na construção de valores éticos, morais e espirituais, a família é, portanto, responsável pela formação de padrões de comportamentos. Não há instituição que a substitua no aspecto afetivo e na socialização da criança e do indivíduo em geral (Santos Lage, 2012).
Tudo que é realizado por outra instituição tem caráter complementar; a família é o primeiro nível na construção da autoimagem e o primeiro modelo e imagem para a criança e o ser humano (Santos Lage, 2012). A família deve encontrar espaço para o diálogo, na busca de superação de problemas, alicerçando comportamentos preventivos em relação ao uso de drogas, ociosidades, prostituição.
Deve promover um ambiente de afeto, proteção e de aprendizagem, fornecendo uma estrutura sólida de valores e de “alimento nutricional” indispensável á formação de padrões positivos de comportamento, pelas funções afetiva, de acolhimento, de cuidado, proteção e socialização.
Segundo Içami Tiba, a falta do não e o exagero do sim impedem a criança de desenvolver valores relacionais.
A terapia psicomotora de família irá ajudar a resolver o problema da criança que muitas vezes é ocasionado por algum problema anterior não resolvido; esses problemas passam através de gerações e só vão se manifestar no futuro, e às vezes essa criança com graves problemas leva toda essa “bagagem” para seu relacionamento e acaba comprometendo sua família.
A família é mais do que a soma de suas partes. O ciclo de vida individual acontece dentro do ciclo de vida familiar, que é o contexto primário do desenvolvimento humano (Carter; Goldrick).
A importância da Psicomotricidade na vida da criança
A Psicomotricidade é a ciência cujo objeto é o homem e o seu movimento; ela está fundamentada em três aspectos básicos: o intelecto, o afeto e o movimento. A prática psicomotora tem a tarefa educativa de criar condições propícias ao desenvolvimento de cada criança, permitindo-a viver a pulsionalidade motora, que acompanha a dinâmica de seus esquemas de ação (SBP, 2003).
Na Psicomotricidade devemos levar em conta a história da criança e da família, devemos tentar desvendar os “segredos” e descobrir como é a configuração de cada família (Duarte, 2001).
Muitas famílias estão cobrando um crescimento acelerado e sobrecarregando as crianças com atividades, não sobrando tempo para brincar e se divertir (Américo, 2013). A criança tem que ter um desenvolvimento global (geral) e múltiplas experiências (vivências) através do seu próprio corpo e movimento, tendo assim uma organização temporal e espacial para se desenvolver melhor (Jardim, 2012).
A Psicomotricidade Aucouturier favorece o desenvolvimento da função simbólica pelo prazer de agir, de brincar e de criar, tendo como objetivo principal o toque, o afeto e a linguagem, que são bastante desenvolvidos na Psicomotricidade Relacional (Aucouturier, 1986).
Uma experiência profissional
A discente observada, J., é uma jovem de 11 anos de idade que sofre muito na parte afetiva e familiar; isso acarreta baixo rendimento escolar e uma conduta de comportamento inadequada para uma menina de sua idade, chegando a desistir dos estudos e de frequentar a escola municipal em Niterói (RJ) onde está matriculada, podendo prejudicar seu futuro.
Ela mantém vínculos com pessoas ociosas, que possuem maior idade que ela, que não trabalham e têm a parte da educação muito precária; ela passa a maior parte do dia e da tarde debaixo de uma árvore com meninos e homens ociosos, escutando músicas como funk proibido, falando coisas torpes (palavrões); na maioria das vezes, quando não chove, ela joga futebol na quadra com esses rapazes.
Os traficantes parecem jogadores famosos de clubes de futebol da primeira divisão do Campeonato Carioca. As crianças veem os “bandidos” como fossem ídolos, pessoas importantes, famosas e bem-sucedidas. Os traficantes, para as crianças das comunidades, são autoridade maior, e os policiais são considerados pelas crianças como a sociedade olha para os traficantes: como a escória. Ou seja, os traficantes para as crianças são como os “policiais” e os policiais para as crianças são como “bandidos” (Jardim, 2012).
Alguns jovens gostam de se comportar e falar como traficantes (falando as “gírias dos bandidos”), porque impõem um respeito aparente no seu grupo social e de amizades, e gostam de se vestir como se fossem traficantes, pois veem neles o poder e o medo que as pessoas das periferias sentem e se submetem (Jardim, 2012).
O irmão de J., apelidado “Situ”, é envolvido com o tráfico de drogas, sendo muitas vezes pego pelos próprios traficantes da comunidade e por policiais, tomando uma grande surra; ele parou de estudar (e diz que não quer estudar e não gosta) e não tem trabalho de carteira assinada; isso pode comprometer todo o seu futuro. Isso está acontecendo por falta de uma família minimamente estruturada e pela falta de afeto de seus pais.
A família da J. é composta por cinco pessoas: a mãe é dona de casa; o padrasto, de quem ela gosta e que admira muito e fala que “ele é muito legal” e proporciona tudo para ela (roupas, brinquedos e dinheiro para comprar biscoitos), é pedreiro; o irmão, “Situ”, fica a maior parte do tempo ocioso; o pai biológico está cumprindo pena privativa de liberdade em regime fechado em Bangu I por roubo e tráfico de drogas.
Ela é aluna no programa social no qual sou é coordenador. Algumas vezes observei a família de J. na comunidade onde o trabalho está implantado, e percebi que ela é querida por sua mãe e sua tia; ela mostra interesse em atividades coletivas e em uma disciplina escolar: Matemática, e, das modalidades esportivas, gosta muito do futebol.
Temos que contribuir para o aprendizado dessas crianças e jovens, com o seu crescimento psicomotor, intelectual e afetivo. Nós, educadores físicos, temos que mediar o conhecimento, fazendo deles seres críticos, pensantes, e educamos com a ajuda da sociedade. Tentamos, por meio dos movimentos, dos jogos, das atividades em grupo, fazer com que os alunos se integrem, interajam de forma sociável e saudável (Jardim, 2012).
J., antes de ingressar no projeto, era uma criança ociosa, faltava muito às aulas de sua escola, não tinha interesse em aprender as atividades esportivas, de cultura nem gostava de atividades individuais. Falava muitas palavras torpes (palavrões), era uma criança desinibida (não tinha vergonha); ficava fora da quadra perturbando a aula, jogando pedras nos alunos que estavam fazendo o projeto e agredindo verbalmente esses alunos junto com esses rapazes de maior idade (os rapazes mandavam que ela agisse assim), e ficava com o comportamento ruim na rua para chamar minha atenção.
Aos poucos comecei a conversar com J. na rua e ao redor da quadra; durante a conversa percebi que ela gosta muito de Matemática, comecei então, durante as minhas aulas e os dias de projeto, a convidá-la para ministrar aula comigo e comecei a desenvolver atividades coletivas como futebol, basquetebol, voleibol e circuitos de atividade física, introduzindo o reforço escolar como Matemática, pois tive a rapidez e a destreza de chamar a atenção dela para essa prática.
Segundo Freire, o objetivo maior da educação é conscientizar o aluno. J. começou aos poucos a frequentar as aulas, pedindo para ser a professora comigo (minha ajudante) em todas as atividades; quando ela me ajudava eu deixava um apito com ela e isso foi ajudando-a na interação com os alunos e no interesse em aprender as atividades, melhorando sua autoestima.
Passados alguns meses, seu irmão, “Situ”, que ficava ocioso ao redor da quadra e com os rapazes envolvidos com tráfico de drogas, começou a frequentar e a praticar as atividades; nesses dias pude conversar muito com ele e com a J.; comecei a desenvolver a prática da Psicomotricidade Relacional juntamente com minha experiência como educador na questão da parte afetiva. Creio que foi muito importante para o desenvolvimento deles nas atividades e no projeto.
Antes de chegar ao término do programa social (as férias em dezembro), J. mostrou grande vontade de participar do projeto, sendo sempre a primeira criança a chegar para as atividades; ela voltou a frequentar a escola e a assistir às aulas; teve melhora muito significativa no seu comportamento e nas suas vestes (ela usava muita roupa curta, querendo mostrar suas partes íntimas e começou a se comportar mais); começou a me falar que queria ser professora (como eu) e que iria estudar muito para conseguir isso.
“Situ” também mostrou interesse pelas atividades do projeto, mas a melhora significativa que ele teve foi ter saído do tráfico de drogas e ter tido a oportunidade de um trabalho como pedreiro; isso o tirou da ociosidade e do tráfico.
Segundo Oliveira e Perim (2009), os educadores físicos têm a obrigação de desenvolver e ensinar a justiça, a moral, a ética, a cooperação e a solidariedade. E estimular os conhecimentos de outras disciplinas escolares por meio de atividades lúdicas e recreativas, ministrando aulas com temas transversais na própria aula de Educação Física nas escolas e passeios que despertem o interesse dos alunos, pois o motivo principal do desinteresse das crianças e jovens das comunidades está relacionado com o fato de as escolas estaduais e municipais não estarem atraindo o jovem com didáticas novas e profissionais que estejam realmente interessados em educar e preparar para possíveis dificuldades que os jovens irão encontrar e enfrentar em suas vidas, seja a vitória e a derrota, o sucesso e o fracasso.
Hoje, J. e “Situ” estão morando em outra cidade, São Gonçalo, e às vezes aparecem no projeto e na comunidade onde eles moraram. Eles se mudaram pela violência que estava assolando o lugar onde permanece o programa social, o bairro Tenente Jardim, em Niterói. Ao redor dele ficam várias comunidades carentes: Morro da Maminha, Morro da Nova Brasília, Morro do Castro, Morro do Marítimo, Morro da Hortinha e o Morro da Cova da Onça, onde a milícia impera com seu poder; são comunidades com tráfico de drogas altamente armado e que não gosta de milicianos; isso acarreta grande guerra no local, deixando os moradores de mãos atadas e com medo.
Considerações finais
Pretendemos neste artigo, relato de estudiosos e de experiência profissional, enfatizar a importância da família na criação e na formação da criança, não importando sua classe social, mostrar a importância da Psicomotricidade e da Educação Física como ciência e do educador físico na formação de crianças e adolescentes nas comunidades carentes. Devido a sua atuação de aprendizado na questão psicossocial, afetiva e psicomotora desses jovens que residem em locais de vulnerabilidade e risco social.
Referências
ALMEIDA, Maria da Graça Blaya (org.). A violência na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Ed. PUC-RS, 2010.
AMÉRICO, Amanda Boneti. Com olhar de criança: as concepções de Educação Física de alunos da Educação Infantil. 2013.
ANDRADE, Maria Deolinda Donas de. Tese de doutorado. Universidade Candido Mendes. Rio de Janeiro, 2010.
AUCOUTURIER, Bernard. Bruno: psicomotricidade e terapia. Trad. Alceu Edir Fillmann. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
DUARTE, Newton. Vigotski e o "aprender a aprender": crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2001.
JARDIM, Marcelo B. O afeto como instrumento primordial na atuação do educador físico com crianças e jovens de comunidades carentes. Pós-Graduação em Psicomotricidade (Educação e Clínica). ibmr/Laureate International Universities. Rio de Janeiro, 2012.
OLIVEIRA, A. A. B.; PERIM, G. L. Fundamentos pedagógicos do Programa Segundo Tempo: da reflexão á prática. Maringá: Ed. UEM, 2009.
SANTOS LAGE, Nádia Mara Antunes dos. Tese de doutorado. Universidade Candido Mendes. Rio de Janeiro, 2012.
SBP. SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE. Disponível em: www.psicomotricidade.com.br. Acesso em: 11 set. 2011.
SUANNO, Marilza Vanessa Rosa. Novas tecnologias de informação e comunicação: reflexões a partir da teoria vygotskyana. Disponível em: http://www.abed.org.br/seminario2003/texto16.htm.
Sites pesquisados
http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/paulo-freire-300776.shtml
http://www.larpsi.com.br/media/mconnect_uploadfiles/c/a/cap_01_34_ww.pdf
http://samukatraquina.blogspot.com.br/2014/05/a-familia-e-sua-importancia.html
Este artigo faz parte do livro Amor que educa, de Marcelo Bittencourt Jardim, publicado pela Editora Kimera (2016).
Publicado em 26 de abril de 2016
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