A relevância dos saberes linguísticos dos alunos para a aquisição da língua escrita

Cláudia Rodrigues do Carmo Arcenio

Unesa

Introdução

Vários pesquisadores têm se dedicado aos estudos sobre como se realiza a apropriação da língua escrita, a fim de facilitar essa aprendizagem para o educando. A alfabetização sempre foi um dos maiores desafios do Brasil (Soares, 2011). A teoria de Emília Ferreiro (1999) direciona à compreensão de como se realiza a construção da escrita por parte do aprendiz; os estudos de Magda Soares (2011) propõem uma prática em alfabetização pautada em contextos de letramento, de forma que sejam priorizadas as situações reais de uso da leitura e da escrita. Essas concepções de ensino relacionam-se com alguns princípios da Linguística, sobretudo quanto às funções da língua em suas modalidades oral e escrita.

Abordaremos alguns desses princípios relacionando-os às práticas em alfabetização e letramento de forma a contribuir efetivamente com a prática pedagógica.

Língua e alfabetização

Por vários anos, o ensino da modalidade escrita da língua não era de fácil acesso a toda a população. Durante a década de 1970 é que se iniciou a implementação da política educacional da quantidade (Geraldi apud Silva, 2004). Entretanto, o ingresso em larga escala dos alunos na escola não garante, por diversos fatores, a aprendizagem da modalidade escrita da língua.

A questão do analfabetismo no Brasil ainda é grave. Essa afirmação é ratificada pelo recente lançamento do PNAIC (Pacto pela Alfabetização na Idade Certa), em 2013, ainda em andamento em 2016.

A implantação desse programa revela a dificuldade de alfabetizar crianças durante o período dos ciclos de alfabetização, geralmente de três anos, adotados na maioria das escolas públicas do país.

Segundo a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro, responsáveis pelo Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), existem ainda situações de alfabetismo rudimentar e elementar (INAF, 2016) que se relacionam à aprendizagem de forma deficiente do sistema de escrita. Isto é, aprende-se algo sobre a correspondência fonética entre grafemas e fonemas, mas não há apropriação da língua escrita de modo eficaz, de maneira que o educando obtenha proficiência em leitura dos diferentes gêneros textuais presentes na sociedade e seja capaz de redigir de forma convencional e inteligível diferentes tipos de texto. Tais situações possuem ligação direta com tratamento dado à alfabetização em língua materna do indivíduo.

Para iniciar os estudos sobre a escrita em língua materna, é de extrema importância que os conhecimentos que o aluno possui como falante nativo sejam utilizados no processo de aquisição da escrita. Qualquer trabalho a ser desenvolvido deverá propor a expansão desses conhecimentos. No entanto, muitas vezes, ao ingressar na escola o aluno precisa esquecer-se dos conhecimentos internalizados sobre sua língua para aprender quase outra língua. Uma língua que só existe na sala de aula (Cagliari, 2009, p. 25), dissociada de situações comunicativas reais e sem funções sociais definidas.

Essa dissociação entre a língua utilizada pela criança em situações comunicativas cotidianas e a “língua escolar” influencia diretamente os processos de aquisição da escrita, dificultando até mesmo o entendimento do que é a escrita e como esta se relaciona com a língua materna do indivíduo. Ter consciência de que o aluno, ao chegar à sala de aula, já faz uso da língua e a domina o suficiente para que se comunique por meio dela é fator determinante para facilitar aprendizagens e favorecer a apropriação da escrita.

Para os linguistas, existe uma definição muito clara entre o que é língua e sua função como contrato social de uma comunidade linguística, como sinalizam respectivamente Terra e Barthes (1997):

A língua [...] é exterior aos indivíduos e, por isso, estes não podem em criá-la ou modificá-la individualmente. Ela só existe em decorrência de uma espécie de contrato coletivo que se estabeleceu entre as pessoas ao qual todos aderiram (Terra, 1997, p. 15).

É a parte social da linguagem [...]. Trata-se essencialmente de um contrato coletivo ao qual temos de submeter-nos em bloco se quisermos nos comunicar (Barthes apud Terra, 1997, p. 17).

É importante destacar que não devemos confundir língua e escrita. A língua é um contrato socialmente constituído cujo objetivo é a interação e a comunicação entre seus falantes. A escrita não é simplesmente uma representação da fala, pois possui características próprias inerentes ao seu funcionamento, uso, construção e compreensão. Todavia, é uma modalidade da língua, e não parte essencial dela. Existem as chamadas línguas ágrafas, utilizadas normalmente por suas comunidades linguísticas, ao passo que línguas que possuem apenas o registro escrito, porém não são mais faladas são consideradas línguas mortas, pois o falante é que faz a língua manter sua função e existência (Terra, 1997, p. 17).

Como falante, a criança já possui noções claras do uso prático, da semântica e da gramaticalidade da língua. Isto é, quando a criança adquire a competência linguística no que se refere à fala, mesmo que não conheça os termos técnicos de seus conhecimentos, ela já internalizou os conceitos e significados, a sequência lógica na construção de textos orais, organizando suas ideias de forma gramatical e semanticamente coerentes.

Para Emília Ferreiro, a criança chega à escola com notável conhecimento de sua língua materna, um saber inconsciente que utiliza em seus atos de comunicação cotidianos (Ferreiro, 1999, p. 27). O linguista Charles Hockett conclui que desde cedo a criança deve ser considerada um adulto linguístico:

Pela idade de quatro a seis anos, a criança normal é um adulto linguístico [grifos do autor]. Ela domina, com pequenas exceções, se alguma, o sistema fonológico da sua língua; maneja sem esforço essencial a gramática; conhece e emprega o vocabulário básico da língua. [...] Poderá enredar-se tentando produzir discursos mais longos, como a descrição das atividades de uma manhã na escola, mas clareza em exposições extensas é um ponto em que os próprios adultos divergem muito (Hockett apud Luft, 1985, p. 87).

É preciso respeitar desde as séries iniciais os saberes que o aluno possui como falante nativo de sua língua. Várias atividades e exercícios têm sido aplicados em turmas ou ciclos de alfabetização e no ensino de língua portuguesa sem levar isso em consideração. Qualquer situação de aprendizagem proposta deve ser produzida em contextos nos quais seja possível identificar situações reais de uso da escrita convencional para que essa aprendizagem seja significativa para o aluno, levando-o à compreensão de como e por que escrevemos convencionalmente. Rosa Virgínia de Mattos e Silva, em seu livro O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas, faz uma reflexão sobre a alfabetização em língua materna coerente com esse processo de alfabetização:

Qualquer indivíduo normal que entre na escola para ser alfabetizado em sua língua materna já é senhor de sua língua, na sua modalidade oral própria a sua comunidade de fala. Admitido esse princípio, qualquer trabalho de ensino da língua materna se constitui em um processo de enriquecimento do potencial linguístico do falante nativo (Silva, 2004, p. 27).

Sendo a língua um contrato social, escrevemos de forma convencional por motivos definidos em situações diversas. Dentre estas situações destacamos as mais comuns:

  • Para lembrar algo em situação posterior ao momento da escrita;
  • Para registrar ou contar situações, fatos e acontecimentos; e
  • Principalmente para nos comunicar, interagir socialmente, sendo necessário para isso que o outro (interlocutor) compreenda o que foi escrito.

No ensino tradicional, esse interlocutor para os textos escritos não existe. Os textos são escritos apenas para correção do professor, único leitor em potencial dos textos produzidos. Boa parte das leituras realizadas também é muito restrita linguisticamente e quase sempre serve apenas como pretexto para o desenvolvimento de atividades referentes a algum fonema que será abordado. Os vocabulários geralmente são reduzidos aos fonemas que se pretende destacar, ensinando, ainda que involuntariamente, conceitos errôneos sobre a escrita.

Tomemos como exemplos estes textos e atividades utilizadas para alfabetização:




Figura 1: Páginas do livro A mágica das letras, Editora Fapi

Esses exemplos ratificam o uso do texto como pretexto para ensinar a correspondência grafema/fonema. Destacamos aí a ausência de sentido dos enunciados e o uso de gêneros textuais que se afastam da realidade que a comunidade linguística do aluno faz da língua escrita, sobretudo de alunos oriundos de classes populares.

É perfeitamente lógico compreender que a classe social tem influência nos hábitos de leitura e escrita, apesar de não determinar o que o indivíduo pode ou não ler.

A escola deve, sim, trabalhar os diferentes gêneros textuais, ampliando os conhecimentos do educando quanto aos diferentes usos da escrita, porém cabe destacar que os textos expostos, além de pouco significativos, ensinam conceitos impróprios sobre a escrita, como a repetição de fonemas consonantais e a exclusão de uma situação comunicativa real. E como ninguém fala ou dificilmente escreve dessa forma, o aprendiz logo desassocia a língua que se aprende na escola da língua utilizada em suas interações cotidianas.

Quando nos referimos a textos significativos não estamos fazendo alusão a textos exclusivamente literários, textos informativos ou simplesmente textos extensos; referimo-nos a estes também, porém não devemos relacionar o valor significativo do texto à sua extensão, mas sim ao valor e ao sentido atribuídos a ele em meio ao seu contexto de produção.

Propor a leitura de textos significativos em diferentes gêneros e tipos textuais facilitará a compreensão de como a leitura e a escrita relaciona-se com a sociedade em que vivemos.

Para iniciar o processo de alfabetização, seria interessante propor situações de aprendizagem que aproximem textos orais e escritos, estabelecendo uma situação comunicativa real e enfatizando as funções sociais da escrita, visando não apenas à aprendizagem dos sinais gráficos que a tornam possível, mas também a como apropriar-se dela de forma coerente com as situações de uso da língua.

Na oralidade, as diferentes situações de fala também devem ser trabalhadas de forma que o educando possa adequar-se à variação situacional na qual está inserido. Ou seja, compreender que a forma de falar varia de acordo com a situação em que essa fala ocorre. O falante deve compreender, por exemplo, que não deve usar uma linguagem informal em situações formais e que um mesmo fato pode ser contado de diferentes maneiras de acordo com o interlocutor. Esse aprendizado parece ser intuitivo, mas não é. De acordo com as oportunidades que o aprendiz possui de vivenciar diferentes situações de fala é que terá ideia de como falar de forma a não ser estigmatizado socialmente.

Não se trata de um juízo de valor entre o bom falar ou mau falar ou ainda o falar certo (conceito geralmente associado à variação padrão da língua, ou à variação em uso pelas classes socioeconomicamente dominantes) ou falar errado (conceito geralmente associado às variações em uso pelas classes populares); trata-se de um estudo eficiente da língua que ultrapasse as questões puramente relacionadas à gramática normativa e que levem o aluno a utilizar sua língua materna como desejar e da forma que lhe for mais conveniente.

Do mesmo modo, durante a aprendizagem da modalidade escrita da língua, proporcionar diferentes situações de aprendizagem, buscando criar situações comunicativas reais para produção de textos, sem dúvida irá favorecer e facilitar aprendizagens em leitura e escrita.

Marcos Bagno, em seu livro Preconceito linguístico. O que é e como se faz discute com muita clareza o preconceito que circunda as variações linguísticas regionais e sociais e como esse preconceito influencia diretamente o estudo da Língua Portuguesa nas escolas. Magda Soares comenta mais profundamente esse tema no que refere à alfabetização:

Basta afirmar que o processo de alfabetização escolar sofre, talvez mais que qualquer outra aprendizagem escolar, a marca da discriminação em favor das classes socioeconomicamente privilegiadas. A escola valoriza a língua escrita e censura a língua oral espontânea que afaste muito dela; ora, como foi dito anteriormente, a criança das classes privilegiadas, por suas condições de existência, adapta-se mais facilmente ás expectativas da escola, tanto com relação ás funções e usos da língua escrita quanto em relação ao padrão culto de língua oral (Soares, 2011, p. 22).

Para que a alfabetização se concretize, é necessário que, como educadores, venhamos a nos despir dos preconceitos linguísticos que têm inconscientemente norteado as práticas pedagógicas, valorizando os conhecimentos prévios que cada educando possui sobre sua língua, entendendo a heterogeneidade linguística como forma de favorecer aprendizagens significativas e momentos de reflexão e estudo da língua portuguesa falada e escrita no Brasil.

Considerações finais

Os estudos acerca da linguagem humana, sobretudo a linguagem verbal, desmistificam muitos conceitos tidos até então como absolutos em relação ao ensino de língua materna. Em se tratando do ensino de língua portuguesa, durante décadas a escrita foi tratada como um código a ser decifrado, afastada de contextos significativos de leitura e produção textual, levando milhares de alunos ao fracasso na compreensão e na redação de textos. O entendimento da língua escrita como construção social muda o direcionamento das situações de aprendizagem que visam promover a alfabetização. Essa concepção sobre a língua aponta também para um deslocamento de foco, substituindo a ênfase dada à memorização das regras gramaticais regidas pela gramática normativa pela adequação a diferentes situações de fala e, no que se refere à escrita, ao uso de diferentes gêneros textuais em conformidade com a situação comunicativa proposta.

Neste artigo refletimos sobre as contribuições de alguns conceitos linguísticos inerentes à aquisição da linguagem verbal e como estes podem contribuir para a alfabetização, auxiliando na desconstrução de preconceitos linguísticos e valorizando os saberes de sua língua materna que o aluno possui.

Buscamos também analisar criticamente alguns tipos de textos utilizados para auxiliar na alfabetização, sugerindo, em oposição a eles, o uso de textos próximos aos utilizados pelos alunos em suas comunidades linguísticas, propiciando um aprendizado mais significativo pautado em situações comunicativas reais, de forma a favorecer a apropriação da escrita numa perspectiva relacionada ao uso real que se faz da escrita em diferentes práticas sociais, facilitando aprendizagens quanto à aquisição da língua em sua modalidade escrita, aprendizagens estas essenciais à plena interação em uma sociedade letrada e para o pleno exercício da cidadania.

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Publicado em 10 de janeiro de 2017

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