Brincando de professora torna-se professora?
Marcélia Amorim Cardoso
Docente da FABEL, mestre em Educação (UERJ), doutoranda em Educação (UFRRJ)
Milena de Oliveira Ferreira
Especialista em Gestão Integrada da Educação (FABEL), pedagoga, docente da Rede Municipal de Belford-Roxo/RJ
Introdução
Tardiff e Lassard (2012) apontam a docência como lugar de destaque, sendo um dos mais importantes grupos ocupacionais e uma das principais ferramentas da economia. Contudo, há um constante desprestígio, desvalorização e desqualificação social, como mostra Maiolo (2004) em sua dissertação de mestrado.
Muitas divergências e dificuldades são encontradas no magistério, como baixos salários, desvalorização da categoria e as incontáveis vezes de solidão diante do processo educativo, revelando situações de fragilidade para a saúde. Um estudo publicado na Child Development afirma que ensinar é uma das profissões mais estressantes e que uma das causas mais preocupantes são os sintomas de depressão.
Nesse quadro, o grau de insatisfação dos professores é alarmante. Uma pesquisa encomendada pela Fundação Victor Civita ao IBGE aponta que 79% dos professores entrevistados revelaram não estarem felizes na profissão. Isso é preocupante, como alerta Ferreira (1998, p. 92): “o personagem principal da educação, aquele de quem predominantemente depende sucesso ou fracasso da ação educativa, nem sempre é lembrado. Trata-se de recuperar o óbvio: a figura do professor”, e prossegue alertando que “a causa não está perdida. Não apenas nos aspectos salariais, mas também nas condições de trabalho. [...] Melhorar a escola é urgente e significa, entre muitas coisas, criar uma carreira bem remunerada” (Ferreira, 1998, p. 94). Com todo esse quadro, há uma luta constante do profissional de educação na tentativa de melhoria das condições de trabalho e na qualidade da educação.
Mas o que motivaria ainda essa escolha? Perspectivas financeiras? Questões emocionais? Arroyo analisa que “ser professora e professor faz parte de nossa vida pessoal. É o outro em nós” (p. 27). E, partindo dessa ideia, propomos uma conversa sobre a brincadeira de ser professor(a) e a escolha de ser professor(a). Buscamos em nossas vivências na Educação Infantil e nas nossas escolhas pelo magistério a proposta de refletir sobre esses dois elementos tão presentes em nossa vida pessoal, a educação infantil e a brincadeira, e encontrar essa ‘outra em nós’: a professora. As pesquisadoras brincavam de ser professora e consideram essa atividade humana, a brincadeira, essencial no processo de desenvolvimento infantil.
Nas brincadeiras, as crianças costumam retratar as vivências, no intuito de entendê-las. Como espaço de interações e experiências, a Educação Infantil torna-se uma etapa privilegiada, repleta de situações ricas em construções e elaborações sociais, cognitivas e emocionais.
Este trabalho se propõe a trazer à brincadeira de ser professor uma possível variante na escolha profissional do magistério.
A brincadeira e a docência
Como mostra Romanelli (1997, p. 23), a educação é um ato criador e comunicador, mediando aquilo que é cultural e a continuidade de experiências.
Distinguem-se no processo educativo dois aspectos interdependentes: o gesto criador que resulta do fato de o homem ’estar no mundo’ e com ele relacionar-se, transformando-o e transformando-se – neste caso o gesto educativo não se distingue do gesto criador de cultura – e o gesto comunicador que o homem executa transmitindo a outrem os resultados de sua experiência. Nesse sentido, a educação é a mediadora entre o gesto cultural propriamente dito e a sua continuidade.
A brincadeira e a cultura estão intimamente ligadas por meio do ato criador e recriador da criança, como indivíduo que está no mundo e se situa nele, percebe-o e o vivencia, transformando-o e a si mesmo na brincadeira e por ela. Essa grande possibilidade que o ser humano tem de modificar a todo tempo o que está à sua volta é a grande chave para o desenvolvimento da humanidade. As experiências vividas devem ser aproveitadas e compartilhadas. Assim, algumas ações podem ser melhoradas, evitadas ou reformuladas de acordo com as circunstâncias nas quais estão inseridas. A sociedade reflete os anseios de todos. E assim também acontece com as crianças.
As brincadeiras das crianças demonstram claramente suas vontades, seus desejos, suas dúvidas, seus medos. O Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (1998, p. 27) afirma que,
nas brincadeiras, as crianças transformam o conhecimento que já possuíam anteriormente em conceitos gerais com as quais brincam. [...] No ato de brincar a criança estabelece os diferentes vínculos entre as características do papel assumido, suas competências e as relações que possuem com outros papéis, tomando consciência disso e generalizando para outras situações.
A brincadeira de faz-de-conta é um campo amplo para as imitações. Nessa dinâmica simbólica, as crianças assumem papéis, caracterizando-os a partir daquilo que sabem, veem e sentem. Nesse momento, o papel do(a) professor(a) é vivido pela ‘encenação’, suas falas e suas atitudes, revelando a sua importância na relação entre a criança e o universo escolar.
O professor pode influenciar a vida do aluno de muitas formas, inclusive na escolha da profissão. O primeiro contato da criança fora da família, em sua maioria, é dentro da escola, então o professor se torna o alvo das atenções, sendo imitado pelos alunos, com reprodução de atitudes, falas e gestos.
Ninguém nasce feito, vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tomamos parte. [...] ‘Brinquei’ tanto de professor na adolescência que, ao dar as primeiras aulas no curso então chamado de ‘admissão’ no Colégio Osvaldo Cruz do Recife, nos anos 40, não era fácil distinguir o professor do imaginário do professor do mundo real. E era feliz quando de fato ensinava (FREIRE, 1993, p. 79).
Freire nos presenteia com suas lembranças sobre brincar de ser professor e o tornar-se professor, em que a imaginação e o real se fundem na prática pedagógica. Vamos nos fazendo na prática social que também é pedagógica, que também é histórica e humana. Que nos exige as memórias e o sentir, no ontem e no agora.
Memórias e docência
No campo da educação, pesquisas relacionadas aos processos formativos docentes encontram eco na utilização das histórias de vida e dos estudos autobiográficos como metodologias de investigação, ganhando visibilidade nos últimos anos (Bueno et al., 2006; Pollon, 2009).
Bueno (2002, p. 23) aponta o caráter formativo do método em que, segundo a autora, “ao voltar-se para seu passado e reconstituir seu percurso de vida, o indivíduo exercita sua reflexão e é levado a uma tomada de consciência tanto no plano individual como no coletivo”. Nesse sentido, pensar sobre trajetórias pessoais no passado possibilitam transformações profissionais no presente.
A proposta que aqui se desenha não toma toda a metodologia da história de vida como recurso metodológico, mas compartilha breves relatos de três professoras e mais observações no campo da Educação Infantil para delinear reflexões sobre as brincadeiras de ser professor(a).
Propusemos uma conversa com as professoras, aqui identificadas por A., M. e S., de diferentes escolas do Ensino Fundamental, iniciando com a pergunta: quando você era criança, brincava de ser professora?
No relato, A. diz que,
quando criança, eu brincava de escolinha: colocava minhas bonecas ou amiguinhos como alunos. Nunca queria ser a aluna, sempre estando à frente como professora. Quando passava em frente a uma escola de formação de professores, sempre dizia que iria estudar ali, o que realmente aconteceu; (...) ao som do Hino da Escola além da Marcha da Normalista e do lindo uniforme azul e branco da instituição, tinha certeza absoluta de que tinha escolhido o caminho certo e que esta seria a profissão que com certeza teria na minha vida.
M. apresenta em suas lembranças a figura estética da professora como elemento propulsor de sua escolha:
Escolhi ser professora por causa da admiração inclusive pela estética da professora que tive na minha infância. Ao observar a forma como se arrumava e suas lindas unhas sempre feitas e os movimentos feitos pelas mãos, sentia vontade de ser professora para ser igualzinha a ela.
O relato de S. apresenta as normatizações sociais de um tempo passado:
Sempre brincava com a minha irmã de professora quando era criança. Quando cresci, entrei no Curso de Formação de Professores, mas casei-me e parei para cuidar dos filhos durante mais de quinze anos. Mas não desisti de meu sonho. Retornei para terminar o Normal e comecei a trabalhar com criança, que era do que mais gostava.
O modelo social idealizado de professora, a feminilidade, a posição de liderança, entre outros elementos, são acionados nas memórias das três professoras. Mas M. é a que figura até hoje esse modelo em sua aparência cuidadosamente pensada, sua fala gesticulada e branda. S. apresenta relatos de uma época em que a mulher não poderia almejar uma profissão, pois o ‘destino’ guardava o matrimônio e a maternidade, porém, afirma sua resistência e retorno ao seu sonho. Muitas mulheres e professoras retomam seus estudos após seus filhos crescerem, fato observado ainda hoje. Vasconcelos (2000, p. 9) aponta que:
Resgatar histórias de vida permite voos bem amplos. Possibilita articular biografia e história. Perceber como o individual e o social estão interligados, como as pessoas lidam com as situações da estrutura social mais ampla que lhes apresentam em seu cotidiano, transformando-o em espaço de imaginação, de luta, de acatamento, de resistência, de resignação e criação.
O que se quer destacar aqui são dois elementos: a brincadeira e o imaginário provocado pelo modelo idealizado de docência. Muitas vezes experiências bem-sucedidas da infância, as brincadeiras escolares, as(os) docentes que marcaram de alguma forma suas vidas, entre outros, são acionados nas falas dessas professoras. As expectativas relatadas também trazem sinais de contextos históricos e sociais presentes na formação e profissionalização docente e na escolarização da mulher, elementos importantes para análise, mas o recorte proposto aqui limita esta tarefa.
No outro lado, trazemos as crianças e suas brincadeiras de faz-de-conta. Observadas em uma pré-escola pública de apenas quatro salas, atendendo crianças entre quatro e cinco anos, de um município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, observamos suas falas, seus gestos e suas formas de assumir os papéis sociais na brincadeira.
Na turma observada, 20 crianças de cinco anos estão brincando espalhadas pela sala em variadas propostas. Um grupo de sete se arruma organizando as cadeiras da sala em roda; T. lidera a brincadeira, sendo a ‘professora’: “Vamos sentar! Vou contar uma história!”,em tom autoritário. E começa apresentando as figuras e contando uma história que é bem conhecida pela turma.
Em meio ao processo, A. diz: “Quero ir embora! Quero a minha mãe!”. T. se aproxima e fala com outra entonação, agora mais carinhosa e acariciando a cabeça e o rosto de A.: “Não fica assim, mamãe já vai chegar. Vamos terminar a historinha, depois vamos brincar lá fora, tá?” E A. concorda e continua a brincadeira, que prossegue entre broncas e carinhos da ‘professora’, terminando na ‘fila’ para ir embora. No outro dia, R. é questionado, pois queria ser o professor na brincadeira. Um grupo afirmava que não tinha professor homem. R., demonstrando certa indignação e ar de choro, fala que sua irmã grande (referindo-se à irmã que está o 6º ano de escolaridade em outra escola) tinha professor homem, precisando a intervenção da professora nesse embate.
Em mais uma situação de faz-de-conta, R. e T. disputavam o papel. T., mais autoritária disse: “Tá bom, você é o professor das 10 horas e eu sou das 10 e 80...”, se organizando em roda. Ele começa: “Presta atenção, todo mundo olhando para mim! Agora vou ensinar a letrinha A!”,usando uma peça do bloco lógico para fingir escrever no quadro.
Nessas situações poderíamos destacar várias questões, como: gênero, autoritarismo na prática pedagógica, intervenção docente, concepção de criança e de Educação Infantil, entre outros, mas diante do espaço e dos objetivos traçados para esta reflexão vamos nos centrar na brincadeira de ser professor.
O papel disputado revela o quanto de liderança caracteriza a docência, mas também o quanto pode ser autoritária. Contudo, revela a rotina percebida por eles, o lugar do cuidar e do educar, o espaço que a brincadeira simbólica tem na instituição e no planejamento da professora; revela como percebem o mundo escolar e consideram a prática pedagógica como algo a ser transmitido por aquele que está à frente, na liderança. Oliveira (2011, p. 109) mostra que
a brincadeira infantil constitui uma situação social em que, ao mesmo tempo em que há representações e explorações de outras situações sociais, há formas de relacionamento interpessoal das crianças ou eventualmente em que estão elas e um adulto na situação, formas estas que também se sujeitam a modelos, a regulações, e em que também está presente a afetividade: desejos, satisfações, frustrações, alegria, dor.
Nas brincadeiras, as relações de poder são externalizadas, simuladas e confrontadas em processos de construção do mundo externo internalizado e experimentado na brincadeira. Mas, ao brincar de professor(a), essas crianças serão professores? Andrade (2000, p.90) afirma que não.
Para ela “as crianças brincam porque são hoje pessoas que vivem em um mundo em que estas e outras relações estão presentes” e que é pela brincadeira que exploram as diferentes representações do mundo.
Mas por que em nossas memórias escolares os(as) professores(as) têm uma ênfase maior, seja positiva como negativamente? A influência do(a) professor(a) em relação aos estudantes é inegável. Desde a forma de falar, vestir, se apresentar até os seus ideais, que involuntariamente acabam sendo compartilhados. É difícil lidar com o outro e não demonstrar aquilo em que se acredita, em que se pensa e o que pretende. Até porque quem nos cerca faz parte da nossa vida e da nossa história.
Considerações
Neste estudo buscou-se refletir sobre a influência da brincadeira na escolha pela docência. É claro que inúmeras influências estão presentes, tanto na sua escolha como na sua exclusão do campo de alternativas profissionais. Mas muitas professoras brincaram de ser professoras na infância, não que isso tenha estreita relação, mas é um elemento presente em nossas memórias profissionais; da mesma forma, há professoras e professores que nunca se imaginaram no magistério. As escolhas humanas não podem ser determinadas apenas pelo querer. Determinantes sociais, culturais e principalmente econômicos devem ser levados em conta para análise dessa questão.
O que se propôs aqui foi trazer para reflexão e futuras pesquisas essa possível variável – a brincadeira de ser professor(a) na infância – na escolha da profissão de magistério.
A brincadeira é elemento fundamental no processo de desenvolvimento infantil e pedagógico, pois pela observação atenta dos processos externalizados pelas crianças é possível realizar avaliação da própria prática pedagógica, ‘vendo-nos’ por meio das representações de escola, de professores e de processos educativos, sendo perceptíveis também as relações que vivem fora da escola, sinalizando situações reais que influenciam o processo educativo.
Referências
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BUENO, Belmira Oliveira; CATANI, Denice Barbara; SOUSA, Cyntia Pereira de. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores e profissão docente (Brasil, 1985-2003). Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32 nº 2, maio/ago. 2006.
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POLON, Sandra Aparecida Machado. As histórias de vida na formação de professores. IX Congresso Nacional de Educação, Educere. Curitiba: PUC/PR, 2009. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/2537_1119.pdf Acesso em jun. 2016.
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Publicado em 10 de janeiro de 2017
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