Prática docente: experiências e reflexões

Lisianne Matias Saraiva Vicente

Mestra em Artes (UFPB), professora de Artes no Ensino Fundamental da Rede Privada de João Pessoa, integrante da ONG Maré Produções Artísticas e Culturais e do Grupo de Teatro Bigorna

Um dos propósitos do processo de formação e aperfeiçoamento de um profissional é a reflexão sobre sua prática. É o momento propício para revisitar, reavaliar e questionar sua atuação, refletindo sobre o conjunto de atuações no processo de ensino-aprendizagem e suas colaborações socioculturais, econômicas e políticas, dentro de uma estrutura calejada do atual sistema público da educação.

Não pretendo fazer destas linhas um rio de lamentações; pretendo expor os pontos sobre os quais a vivência me levou a refletir em minha atuação como artista e como professora de Artes no ensino regular, na educação não formal e nas variadas possibilidades em que a arte acontece como recurso, princípio ou consequência.

Refletir sobre a experiência artística e a prática do ensino de Artes na escola (abordagens metodológicas) pode ter um dúbio direcionamento: refere-se à experiência do professor ou à do aluno? Ou às de ambos? Acredito que de ambos, porém em linhas de diferentes ângulos, mas que se complementam, se fundem e se difundem dentro da perspectiva da individualidade e de acordo com a posição socioeducativa de cada um.

Vamos partir do pressuposto de que as considerações referem-se a ambas as partes, cada qual com seu viés. Primeiro o professor. Profissional responsável pela escolarização de outros indivíduos, e tomamos por escolarização uma parte do processo de educação do indivíduo. Conforme esclarece Cortella em entrevista ao indicar a diferença entre educação e escolarização,

Educação é a formação de uma pessoa; a escolarização é um pedaço dela. A educação é responsabilidade dos pais. A escola é a instituição responsável pela escolarização, e o professor responde por parte dessa escolarização (Cortella, 2015).

O professor é responsável por uma parte da escolarização, já que a escola é bem mais que o professor. Porém, para o todo ser eficaz, necessita-se de partes eficazes. Como está o comprometimento dos profissionais que fazem a escola? Como se deu a escolarização desses profissionais? Isso faz toda a diferença.

Não estou tirando ou amenizando a parcela que cabe à família, mas nesse momento direciono a discussão ao professor, e especificamente ao professor de Artes.

A fragilidade do professor é resultado de sua formação acadêmica e pessoal; ele é mais uma vítima do sistema educacional da dependência e reproduz esse comportamento em sala de aula; corroboro a afirmação de Barbosa (2001, p . 37) quando afirma que

nossa consciência social tem sido há tanto tempo escravizada por modelos educacionais vindos de fora que sofremos atualmente de uma espécie de amnésia crítica... Os professores são, inconscientemente, os veículos que cristalizam o comportamento, o pensamento e o desenvolvimento institucional para garantir a continuidade de dependência.

O sistema nos condiciona à reprodução sem reflexão. Tudo já vem pronto e mastigado, tudo é muito simples, é só usar, não precisa nem ler o manual de instruções, de tão fácil e accessível a todos. Dá a ilusão de igualdade, unicidade; o que é pior: dá uma ilusão de participação, de estarmos ativos. Em nossa condição passiva, aceitamos tudo pronto para o consumo, simples e objetivo.

Mas o questionamento é inerente ao ser humano, e é essa necessidade que nos impele à busca de revoluções. Revoluções que podem ser grandiosas, mesmo que aparentemente pequenas, como o estalar da consciência, partindo de uma percepção de que algo não está bom ou que algo pode ficar melhor ou que existem outras formas de fazer algo.

Acredito que esse processo seja o caminho para a consciência critica. Essa mínima consciência crítica é fundamental para que o ser humano possa ser colaborativo, ativo, pensante. E, na atuação do professor de Artes tem um peso significativo sua formação estética; logo e consequentemente, na atuação como facilitador da construção da percepção estética do aluno.

Voltamos a um ponto muito discutido: o professor de Artes tem que ser artista? Creio que não, mas no mínimo tem que ser consumidor crítico das produções artísticas. Inconcebível um professor de Teatro que nunca tenha vivenciado o teatro, não veja peças teatrais. São esses modelos que reproduzem sem questionar. Questionar o quê, se não vivencia?

Como quebrar esse círculo vicioso, de reproduzir sem questionar? Não sei. Talvez encontrando outros profissionais que o fizeram, talvez lendo e estudando os revolucionários, mas com certeza tem que partir de uma premissa: a percepção da necessidade de algo.

Inicialmente, é fundamental que o professor de Artes tenha a segurança da importância da sua disciplina na escolarização. Compreender a arte como conhecimento importante e eficaz na construção da criticidade e da concepção estética do aluno, como pontua Reverbel (1989, p. 160):

Não cabe exclusivamente à Pedagogia o desenvolvimento desse trabalho, o qual exige um esforço conjunto de todas as ciências humanas, pois o estudo do processo de aprendizagem abrange a natureza do homem, a gênese do próprio conhecimento e, consequentemente, tudo que se relaciona com mudanças sociais.

Não basta alfabetizar, assim formaremos o analfabeto funcional descrito por Paulo Freire (2005); a escolarização deve ser integral, e as disciplinas, as partes que constroem a escolarização, devem se difundir, colaborando para a educação do aluno. A arte tem um poder absoluto nesse processo por trazer conceitos, possibilidades criativas e contextos que representam a necessidade do ser humano e principalmente suas mudanças.

A depender da postura do professor, a função da arte na escola se resume a decorações em eventos escolares e datas comemorativas, sem o efeito reflexivo acerca da experiência estética do aluno. Essa situação é mais um elemento do ciclo vicioso. Como se reproduz sem questionar, cria um hábito de repetir metodologias como receitas e assim reforçar o desentendimento do que deve ser a disciplina de Artes na escola. Um emaranhado de equívocos que se iniciam na formação do professor, ato muito bem pontuado por Barbosa (2001, p. 52):

A má qualidade do ensino compulsório de Artes vem mantendo-a como uma disciplina periférica no currículo. A arte é uma espécie de decoração ideológica das escolas, uma situação que nos remete ao problema da dependência.

A situação é tão forte que podemos considerar uma questão cultural da educação. O receituário do que se deve fazer em Artes na escola já foi tão difundido nos tempos que se pode ver como um elemento de costume, cultura. O melhor dessa perspectiva é que cultura se modifica, não é estanque; logo, podemos visualizar que os passos da mudança dessa coreografia serão reinventados.

Voltamos à formação do profissional da educação, devendo ser um processo contínuo. Destaco a importância do mestrado profissional, por acreditar que esse espaço de formação é propicio a estas reflexões e detém um grande potencial de sucesso. Contudo, deve-se observar as práticas e seus diálogos com as teorias, pois uma sem a outra é só repetição do receituário, o que não modifica nem qualifica nossa atuação como professor, conforme afirma Freire (2005, p. 87):

A teoria sem a prática vira verbalismo, assim como a prática sem a teoria vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade.

Esse pensamento reforça nossa discussão quando corrobora a necessidade de ter uma teoria casada com uma prática e de ter uma prática casada com uma teoria. Acredito que não haja importância significativa na colocação dos termos, o que vem primeiro e o que vem depois. Em sala de aula posso promover uma vivência prática com os meus alunos e só depois contextualizá-la como também posso fazer todo um aparato teórico e a partir disso realizar a prática.

Esta situação é vivenciada por mim hoje como profissional consciente da necessidade de permanecer pesquisador e ter nessa ação um fortalecimento de minha prática. Com mais de vinte anos de sala de aula, revisito a minha prática tendo como referência as teorias constantemente estudadas. Não que no passo desse caminho de minha prática como professora não tenha, de uma forma ou de outra, buscado nos teóricos embasamento para atuação em sala de aula; contudo, também sou vítima do sistema de reprodução.

Inicialmente montei pecinhas, pinturas em desenhos mimeografados e outras aberrações que na época achava “top de linha”. Porém, revisitando as minhas práticas educativas, pude perceber o lugar de minha inquietação, o lugar onde percebi que algo não estava tão certo assim, o eixo que me permitiu ter outros pontos de vista. Foi na minha prática como artista.

Minha vivência como bailarina e atriz colaborou de forma significativa para minha prática como professora. A atuação como produtora cultural me fez ter outra visão das possibilidades do que pode ser um evento cultural na escola. É a experiência fazendo efeito significativo em minha vida. Tomamos por experiência significativa o que nos traz Bondía (2002, p. 21): “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. Dessa forma, é o acontecer de estar no palco e toda a construção de um personagem e seus diálogos com o contexto cênico, fundindo esse conhecimento com as demais vertentes de minha vida, profissional e pessoal.

A prática artística me proporcionou experiências singulares, me condicionou à permissão de possibilidades, ensinou a me expor, vivenciar sem interrogativas de erros ou acertos. Eu me atrevo a colocar-me conforme descreve Bondía acerca do sujeito da experiência:

Por isso é incapaz de experienciar aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experienciar aquele a que nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada o ocorre (Bondía, 2002, p. 25).

Esse ato de exposição e de disposição a erros e acertos é na verdade a algo bem maior: o processo de experienciar, do diverso, do diversificado. Quem me possibilitou esses elementos foram as Artes Cênicas. Essa experiência abriu o sensor crítico na minha atuação em sala de aula como professora de Artes.

É claro que continuamos no duelo covarde entre o que deveria ser o ensino de Artes na escolarização e o que realmente acontece. Covarde porque o sistema é muito mais forte, que para podermos ir contra a máquina se faz necessária uma junção de forças e ideologias que andam escassas no ambiente escolar.

Mas, na luta incessante, temos uma das funções da arte descritas por Ficher como essencial e que para sua real efetivação se faz necessário o pensamento crítico a partir do professor, que detendo o poder da crítica pode ver e fazer enxergar o potencial da arte na vida e na escola.

É verdade que a função essencial da arte para uma classe destinada a transformar o mundo não é fazer mágica, e sim de esclarecer e incitar à ação; mas é igualmente verdade que um resíduo mágico na arte não pode ser inteiramente eliminado, de vez que sem esse resíduo provindo de sua natureza original a arte deixa de ser arte (Ficher, 1979, p. 20).

E é nessa magia que mora a propriedade de experiências diversificadas na sala de aula no ensino de Artes, oportunizando a mudança de micromundos aos macromundos.

Vagamos pelo campo da experiência do professor, considerando apenas o contexto escolar como mero reprodutor de receitas metodológicas. Mas não podemos desconsiderar o contexto estrutural da escola, estrutura física, corpo docente, equipe técnica, merenda, equipe de apoio etc.

Por vezes, quando falamos nesse aspecto, parece que estamos buscando o responsável pela mediocridade de nossa contribuição na escolarização. Mas, como foi dito no inicio, uma ineficiência prejudica todo um andamento.

Atualmente me deparo com uma questão que, de tão primária, torna até ridícula sua existência: a falta de limpeza da sala de aula. Não é da sala de Artes, que nem espaços específicos tem em muitas escolas. A falta de higiene é na sala de aula regular, onde os alunos passam em média quatro horas diárias e os professores se revezam para o “passar dos conteúdos”, limitando assim a utilização do espaço, tirando-nos essa possibilidade de lugar.

Quando penso no contexto escolar e volto às leituras inquietantes de Bondía, Freire, Cortella e outros tantos estudiosos que me dão indicativo de como poderia ser melhor a minha prática em sala de aula, me canso; é muito mais fácil estar no lugar de vítima do sistema, sentar e esperar. Situação bem trazida por Barbosa (2001, p. 171) quando afirma: “Pela acomodação na dependência, estamos perdendo uma oportunidade de transformar a arte no meio de humanizar a escola e de ajudar a formação de uma identidade cultural”.

Mas vêm o ímpeto questionador, desafiador e a necessidade de me expor, me levando à negação de ser mais uma na estatística de Barbosa. Por compreender que minha atuação deve ser colaborativa dentro da formação do indivíduo e do coletivo, formação crítica estética, crítica socioeconômica e crítica política, crendo que esse primeiro momento seja fundamental para a formação de futuros profissionais dinâmicos e que atuem na construção de um ciclo contrário ao que estamos vivendo na atualidade.

Referências

BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o ensino de Artes no Brasil. São Paulo: Cortez, 2001.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de Experiência. Revista Brasileira de Educação, nº 19, jan./abr. 2002.

CORTELLA, Mario Sérgio. Educação x escolarização. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FNEN3eJ8_BU. Acesso em 30 jun. 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FICHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

REVERBEL, Olga. Um caminho do teatro na escola – atividades globais de expressão. São Paulo: Scipione, 1989.

Publicado em 16 de maio de 2017

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