Precisamos de livros de literatura: relato de experiência na biblioteca de uma escola técnica
Miriã Santana Veiga
Mestranda em Educação Profissional (UNIR)
Ezenice Costa de Freitas Bezerra
Mestranda em Educação Profissional (UNIR)
Suelene da Silva Batista
Mestranda em Educação Profissional (UNIR)
Jussara Santos Pimenta
Professora doutora de Educação (UNIR)
Introdução
Uma experiência desenvolvida em biblioteca escolar mostra que é possível realizar projetos de incentivo à leitura e à cultura com o apoio da comunidade. Isso aconteceu com um grupo de estudantes do Ensino Médio Integrado do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO). Nesse projeto se mostra que a valorização da cultura nos currículos escolares pode ser apropriada nos trabalhos feitos nos diferentes setores das instituições, não apenas na sala de aula. Neste artigo discute-se, sobretudo, a importância da biblioteca escolar, valorizando-a como espaço de dinamização do currículo, do conhecimento e da cultura.
As bibliotecas da rede federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, como as do IFRO (Instituto Federal de Rondônia) são consideradas bibliotecas multiníveis, pois atendem a estudantes do Ensino Médio Integrado, Subsequente e Ensino Superior.
Neste estudo apresentamos uma experiência desenvolvida na biblioteca escolar da instituição, mostrando que é possível inserir projetos de incentivo à leitura que valorizam o trabalho desenvolvido pelos diferentes atores responsáveis pelo desenvolvimento do currículo escolar da Educação Básica. Como adverte Bernet (2009), “aqueles que planejam e organizam uma biblioteca devem pensar mais como educadores e menos como prestadores de serviço”; portanto, há que se ressaltar o compromisso que eles devem ter com a educação dos estudantes, levando-os a descobrir a biblioteca como espaço de conhecimento, de informação, de leitura, de entretenimento e, sobretudo, de cultura.
A experiência aqui relatada teve como foco uma campanha de arrecadação de livros de literatura, buscando incentivar o hábito da leitura nos estudantes do Ensino Médio Integrado do IFRO.
Muitas discussões têm surgido sobre a necessidade de desenvolver, nos estudantes, o gosto pela leitura e, consequentemente, o senso crítico para uma leitura do mundo em que estão inseridos. A biblioteca escolar pode contribuir na formação desse sujeito crítico e na valorização dele e de sua cultura; isso ocorre por meio da leitura.
É por intermédio do currículo que se sistematizam os esforços pedagógicos para a construção de sujeitos críticos e reflexivos. Sendo assim, os profissionais responsáveis pelo trabalho pedagógico nas escolas devem atuar de forma conjunta para a elaboração do currículo nos diferentes níveis do processo educacional; daí a necessidade de discussões e reflexões sobre o currículo, pois nele são encontrados os eixos norteadores que orientam o ensino ofertado pelas escolas. Os currículos são influenciados por fatores socioeconômicos, históricos, políticos e culturais. Candau e Moreira (2007, p. 18) os definem como:
(a) os conteúdos a serem ensinados e aprendidos; (b) as experiências de aprendizagem escolares a serem vividas pelos estudantes; (c) os planos pedagógicos elaborados por professores, escolas e sistemas educacionais; (d) os objetivos a serem alcançados por meio do processo de ensino; (e) os processos de avaliação que terminam por influir nos conteúdos e nos procedimentos nos diferentes graus da escolarização.
Os autores entendem e apresentam o currículo como sendo a dimensão na qual são desenvolvidas as experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento e contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes. O currículo é, em suma, o conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas. Sendo assim, podemos entender o currículo como todo e qualquer espaço organizado que pode afetar e educar pessoas.
Existem, dentro do contexto escolar, atitudes e valores transmitidos pelas relações sociais e pelas rotinas do cotidiano, como a arrumação das carteiras nas salas de aula, a forma de chamar a professora, o uso da biblioteca da escola e as visões de família e de gênero que ainda se encontram em certos livros didáticos; isso tudo se denomina “currículo oculto”.
De acordo com Candau e Moreira (2007), a cultura deve ser um dos principais eixos das práticas pedagógicas. Essas práticas fazem parte da sistemática da escola, e a biblioteca escolar deve se inserir participando diretamente dos processos educacionais, do letramento informacional dos estudantes e do conhecimento que deverá ser levado para toda a vida acadêmica do discente e o seu aprender a aprender durante a vida (Gasque, 2012). A biblioteca escolar tem parte ativa no currículo escolar, e os profissionais responsáveis por ela não devem se descuidar desse papel dinamizador do conhecimento que ela precisa proporcionar aos estudantes.
A cultura é um complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais, etc. que são transmitidos coletivamente e típicos de uma sociedade (Aurélio, 2016, p. 288). O termo “cultura” vem atravessando o tempo com distintos significados. Primeiro como cultivo da terra, no século XV, depois como um termo de cultivo da mente humana que ganhou caráter classista no século XVIII, pois só as classes ricas da sociedade europeia poderiam ter cultura, isto é, o refinamento intelectual e artístico que os caracterizava como cultos. No século XX, o termo “cultura” passou a abranger e incluir a cultura popular, a cultura das massas. Entretanto, o termo sugere um bem cultural elevado que é propriedade e usufruto da classe rica, em detrimento da população que não o possui ou é possuidora de resquícios dela. Sendo assim, Candau e Moreira (2007, p. 27) atentam para o cuidado que os educadores devem ter para que os currículos evidenciem o respeito e o acolhimento das manifestações culturais dos(as) estudantes, por mais desprestigiadas que sejam.
Se estamos em um mundo de pluralidades culturais e de diversidade, isso deve ser vivenciado e respeitado dentro das instituições de ensino, desde os anos iniciais até a graduação. Para que a cultura seja conferida a todos, sem distinções, Candau e Moreira (2007), citando Stuart Hall, ressaltam que ao educador é preciso entendimento do seu papel, para que compreenda que,
por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e mais imprevisíveis – da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender, então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva, e que as próprias políticas assumam progressivamente a feição de uma política cultural (Candau; Moreira, 2007, p. 20).
Sendo assim, é imperativo que educadores sejam dinamizadores culturais em seus espaços, de forma a proporcionar a inclusão de todas as formas e expressões culturais da comunidade a que atendem e proporcionar o acesso aos bens culturais da humanidade, sem segregações, sem silenciamentos e sem a exaltação ou predomínio de valores culturais em detrimento de outros.
Se há pluralidade cultural, há que existir uma renovação das práticas pedagógicas, pois a escola deve socializar todo tipo de conhecimento e facilitar o acesso dos estudantes a outros saberes e diversidades. Dentro da escola, o bibliotecário é um educador e um agente cultural que tem a possibilidade de promover a valorização dos estudantes, de sua cultura e das concepções que norteiam as práticas de suas comunidades por meio da leitura e do letramento informacional, tendo como base o conhecimento e o respeito ao currículo escolar.
Sabemos que as bibliotecas são centros culturais e informativos, “são espaços de preservação do patrimônio intelectual, literário, artístico e científico das sociedades” (Hubner, 2014, p. 9), visto que guardam a memória escrita de um povo ou de uma nação. Conforme Milanesi (2002, p. 33), “desde seus primórdios o homem vem procurando formas de guardar e proteger o conhecimento”. Esse conhecimento humano desenvolve-se sobre o respaldo das descobertas anteriores, pois não há um conhecimento novo sem que se conheçam os que o antecederam. Sendo assim, as bibliotecas por si sós são espaços genuínos de incentivo ao saber, seja ele impresso ou virtual. Mas como incentivar esse saber se vivemos em uma sociedade com graves índices de analfabetismo, em que mesmo aqueles que sabem ler não conseguem interpretar textos mínimos?
As práticas e programas que incentivo à leitura visam à apropriação da cultura e devem buscar combater o abismo cultural que o analfabetismo e o analfabetismo funcional provocam nas populações, sobretudo naquelas esquecidas e marginalizadas pelo poder público. Nas bibliotecas escolares, os profissionais bibliotecários devem entender a sua importância como educadores e como agentes culturais e, em conjunto com a direção da escola, docentes e pedagogos devem proporcionar a criação de programas ou atividades que incentivem a leitura e o contato dos estudantes com o livro e com o conhecimento.
Não precisamos de livros de literatura, somos uma escola técnica!
Os institutos federais têm como um dos seus objetivos a formação de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho de acordo com as necessidades e peculiaridades das regiões nas quais estão inseridos. A experiência relatada tinha por objetivo ampliar o acervo literário da biblioteca, atrair os discentes e incentivar o hábito da leitura.
De acordo com Campello (2009), a preocupação com a dinamização da leitura deve ser creditada às circunstâncias que dificultam a existência de uma relação positiva da criança e do jovem com a biblioteca; o bibliotecário, então, também deve saber lidar com os desafios de um acervo insuficiente e desatualizado de uma biblioteca incipiente e que não oferece atrativos à clientela que atende.
É sabido que grande parte das bibliotecas escolares no país, além de conviver com uma realidade de faltas e carências, tem a reputação de ser um espaço sisudo, de silêncio, pouco atraente. Para atrair usuários é imperioso haver dinamização, e esta envolve duas ações específicas: transformar a biblioteca em um espaço dinâmico por meio de atividades variadas de leitura e/ou torna-la um espaço atraente, por meio de uma organização física alegre e convidativa (Campello, 2009).
Ao ingressarmos na instituição, imaginamos trabalhar em uma biblioteca moderna e cheia de livros que contribuíssem com a formação de profissionais para atuar numa sociedade que tem se tornado cada dia mais exigente. Mas a realidade não era diferente da já vivida e trágica rotina da grande maioria das bibliotecas escolares brasileiras, que são consideradas o lugar do docente readaptado, o lugar da punição, o depósito de livro didático e outros.
Optamos, primeiramente, por observar a rotina da biblioteca, dos servidores e estudantes para em seguida propor ações que tivessem significado para a comunidade escolar. Mas em pouco tempo percebemos que a biblioteca era o lugar do ócio, da diversão, pois ali se fugia das aulas. Era o lugar onde se aproveitava o tempo para jogos; era, principalmente, um bom lugar para namoricos. Era o local que não primava pelo desenvolvimento de práticas culturais condizentes com a clientela que atendia. A biblioteca precisava mudar e colaborar mais ativamente para o currículo dos cursos que atendia.
A biblioteca tinha 3.727 livros novos e outros usados, mas o que nos surpreendeu foi a quantidade de livros didáticos usados e vencidos. No levantamento feito à época somaram-se mais de 8.000 livros. Tudo isso aglomerado em um espaço minúsculo, de menos de 200m2, sem mencionar os móveis e estantes que estavam no local. Verificando o acervo, ficou evidente a falta de livros de literatura – tanto de títulos nacionais quanto de estrangeiros. Havia menos de quinze obras para atender um público de 1.200 pessoas, entre professores, técnicos e estudantes.
Outra questão era o comportamento dos estudantes: não existia ali uma cultura de biblioteca, de investigação, de reflexão, de busca pelo conhecimento, tanto por parte dos estudantes quanto por parte da própria administração; por isso, a frase em destaque na abertura desta seção do relato. Havia na época quase 1.000 estudantes (em sua maioria adolescentes) que, nas observações realizadas pelos autores desse trabalho, adoravam ler livros de ficção cientifica, romances e outros. Mas não havia livros!
Queríamos que os estudantes valorizassem a biblioteca, não apenas para estudar e pesquisar nos livros exigidos pelos docentes, mas que cultivassem uma cultura de biblioteca. A primeira ação tomada foi marcar uma reunião com a administração para dialogar sobre a importância da biblioteca escolar e do apoio que deveria ser dado à equipe da unidade de informação. Queríamos incentivar os estudantes a ler, educar os estudantes, comprar livros de literatura e melhorar o relacionamento interpessoal da equipe da biblioteca com sua comunidade, neste caso a maioria, que era composta de adolescentes.
Por isso organizamos uma caixa de sugestões de títulos de livros que fossem adquiridos para o acervo. Depois de uma semana de sugestões coletadas, quase 100% das sugestões eram de livros de literatura, como Coleção Harry Potter, O mundo de Sofia, O pequeno príncipe. Os estudantes ficaram animados. Começamos a envidar esforços para a compra, mas fomos informados de que os livros de literatura não eram prioridade do campus e que deveriam esperar. Mas isso não nos desanimou: nosso objetivo era nos aproximar de nossa comunidade discente e incentivar o hábito da leitura; então tivemos a ideia de organizar uma campanha de arrecadação de livros de literatura.
Estávamos entrando no mês de junho, mês dos namorados. Usamos o tema “Tá a fim de um romance? Doe um livro!” para começar nossos trabalhos. O primeiro passo foi espalhar poemas por toda a biblioteca. Decoramos com corações e incentivamos a comunidade a participar da campanha. Foram enviados e-mails e publicamos chamadas nas redes sociais. O resultado foi um sucesso, e quase todas as obras da lista foram obtidas. Inserimos no acervo mais de 240 livros de literatura.
O acervo passou a ser procurado pelos estudantes, que iam em busca dos livros recebidos. Ganhamos o respeito e o apoio total da administração do campus, que percebeu a importância da literatura na escola; além disso, nossos estudantes agora tinham opção para ler, o que nos deixou gratificados. De uma mera prateleira de livros, agora tínhamos uma opção de mais de 250 títulos!
Considerações finais
Com essa atividade cultural, verificamos que, mesmo havendo concepções diferentes do papel que deva ter uma Biblioteca Escolar e da sua importância no incentivo à leitura, cabe ao bibliotecário escolar envidar esforços para modificar essa situação. Sendo possuidor do conhecimento do que as bibliotecas podem significar dentro do currículo das escolas, os bibliotecários, professores e toda a comunidade escolar podem desenvolver caminhos que levem à descoberta desse espaço como capaz de figurar como aquele onde o estudante pode procurar o acesso à cultura, à informação, ao lazer. Não há outro local na escola que rivalize com a biblioteca no oferecimento de possibilidades de crescimento intelectual. A própria sala de aula é incompleta sem o aporte da biblioteca.
A comunidade escolar precisa estar atenta à estrutura, ao atendimento, ao acervo, às práticas desenvolvidas na biblioteca, às parcerias que devem acontecer entre professores e responsáveis pelas bibliotecas escolares. As campanhas de arrecadação de livros têm o objetivo de sensibilizar a administração, de tirar o estigma de “caixa de livros”, lugar da cópia e de punição das bibliotecas escolares e buscar entender e valorizar o seu potencial de centro disseminador de cultura.
Diante disso, vemos a necessidade de incentivar a cultura na escola por meio da leitura como uma das formas de combater o sistema de exclusão e alienação, sobretudo pela falta da leitura na vida dos estudantes, condicionados que estão a buscar informação onde ela já vem “mastigada”, ou seja, na televisão e na internet. Torna-se necessário o entendimento do valor do livro, da pesquisa, da diversidade cultural, da dinamização do currículo, da importância da dinamização da biblioteca em prol de uma cultura ampla e motivadora, tanto na vida dos estudantes como dos profissionais da educação. Estes e em especial os bibliotecários devem conhecer e entender a importância do currículo e da cultura dentro da escola.
Em um país formado historicamente por diferentes culturas, surge a questão: será que não há espaço dentro dos currículos escolares e das bibliotecas escolares para programas que visem à valorização cultural das comunidades por meio da leitura? Acreditamos que sim; como educadores, devemos buscar um currículo não excludente, que não esteja voltado exclusivamente para o mercado de trabalho, mas também para o respeito e a valorização da cultura da população que está presente nas escolas.
Referências
CANDAU, Vera Maria; MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa. Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, 2007.
CAMPELLO, Bernadete Santos. Letramento informacional no Brasil: práticas educativas de bibliotecários em escolas de ensino básico de Minas Gerais. Tese (doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2009.
GASQUE, Kelley Cristine Gonçalves Dias. Letramento informacional: pesquisa, reflexão e aprendizagem. Brasília: Faculdade de Ciência da Informação, Universidade de Brasília, 2012.
MILANESI, Luís. Biblioteca. São Paulo: Ateliê, 2002.
HÜBNER, Marcos Leandro Freitas. A biblioteca universitária na formação acadêmica: história da Biblioteca Central da Universidade de Caxias do Sul e sua relação com a aprendizagem e o sucesso acadêmico. Dissertação. Caxias do Sul, 2014. Disponível em: https://repositorio.ucs.br/jspui/bitstream/11338/674/1/Dissertacao%20Marcos%20Leandro%20Freitas%20Hubner.pdf. Acesso em: 16 jul. 2017.
OLIVEIRA, Greissi Gomes; AMARAL, Roniberto Morato do. Mapeamento de processos em bibliotecas: um estudo de caso em uma biblioteca do Instituo Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. In: XVII SNBU – Seminário Nacional de Bibliotecas Universitárias, Gramado. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2012.
Publicado em 17 de outubro de 2017
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