A mitologia e a tragédia como formas de pensar a educação
Enock da Silva Peixoto
Professor da rede pública estadual (RJ), licenciado em Filosofia (Unisal) e em Pedagogia (UNIRIO/Cederj), mestre em Educação (UNIRIO)
Introdução
Este artigo aborda a relação entre mitologia e educação. É o primeiro de uma série de textos que serão elaborados sobre o tema. Em todos os casos, o propósito é destacar como a mitologia é íntima ao processo de educar. Diante das diversas narrativas mitológicas existentes, geradoras de várias civilizações, iniciamos pela mitologia e tragédia gregas, extremamente influentes em nossa cultura. Evidentemente, não será possível retratar as inúmeras narrativas mitológico-trágicas que influenciaram a Grécia Antiga, e isso exige que nos limitemos a apenas uma história; entretanto, ela traz um panorama de como os mitos eram compreendidos em geral e como eles serviram para orientar o espírito grego. Além disso, podemos compreender como eles trazem luz à nossa própria forma de pensar a vida.
Sendo assim, a tragédia Édipo-Rei orientará a analise neste primeiro texto; apeteço, num momento posterior, analisar mitos africanos e indígenas brasileiros.
Mito e tragédia são a mesma coisa? Na versão de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet (1977), são linguagens diferentes. No período histórico no qual predominou a tragédia, havia uma relação com a história e a tradição dos mitos antigos, mas eram os valores da pólis que estavam em debate, e não mais o herói solitário era o destaque.
Considerando essa diferença, vamos tratar a tragédia como uma das formas nas quais os mitos são repensados e utilizados dentro de um contexto social.
O tema Mitologia está situado entre aqueles que devem ser trabalhados com discentes no 2º ano do Ensino Médio, segundo o Currículo Mínimo no Estado do Rio de Janeiro. Alguns cuidados precisam ser tomados, entendo, para aprofundar com os alunos essa questão. Uma delas é destacar que a Mitologia não é inferior à Filosofia, tendo se estabelecido como um saber menor em determinado momento e sendo suplantada posteriormente. Embora essa visão positivista do mito tenha prevalecido durante muito tempo, após os estudos de filósofos como Hegel e Nietzsche, de historiadores-helenistas como Jean-Pierre Vernant, do psicanalista Sigmund Freud ou do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o mito passou a ser repensado como um lócus específico de conhecimento que mesmo na Antiguidade absorvia elementos racionais; por sua vez, a Filosofia abarcava vários elementos da narrativa mitológica.
Outra questão que se impõe é tentar mostrar a seriedade da Mitologia, pois não se trata apenas de “historinhas” fantasiosas que serviam ou servem para o entretenimento do leitor; trata-se de uma perspectiva da vida, uma linguagem que tenta, de modo muito singular, interpretar os fenômenos complexos da existência. É fundamental ainda situar outras mitologias, para além da greco-romana, no roteiro da discussão sobre os mitos, pois pouco se sabe, dentro de nosso contexto cultural e escolar, sobre a mitologia africana, indígena-brasileira, asiática etc.
Estamos diante de uma gama enorme de conhecimentos que muitas vezes fica suplantada pela visão eurocêntrica do mito, que incontestavelmente mantém influência significativa na cultura ocidental e na base estruturante da Filosofia, mas não é a única leitura possível da realidade mitológica e não é a única que fulgura entre nós (considerando mais especificamente o Brasil).
Diante dessas questões, oriundas da aplicação das aulas sobre Mitologia, das demandas que surgem ao pesquisar o tema e do feedback com os alunos, serão elaborados alguns textos que podem contribuir para debater sobre o assunto. O estudo não é de um especialista, tal qual um helenista, um estudioso da cultura africana ou indígena, mas de alguém que tem se ocupado mais detalhadamente sobre o tema, objetivando, portanto, partilhar com colegas professores as reflexões e dúvidas sobre uma temática tão intrigante, pois, em última instância, a Mitologia é um problema diretamente relacionado à vida humana e, se assim o é, é necessariamente uma questão educativa.
Uma contextualização necessária
A palavra mito vem do grego mythos. Segundo Marilena Chauí (2000), deriva dos verbos mytheyo, que significa contar, narrar, falar algo para outrem, e de mytheo, que significa conversar, contar, anunciar etc. O termo está relacionado a narrativas realizadas por poetas ambulantes que serviam para orientar durante séculos uma sociedade que não tinha a racionalidade filosófico-científico-tecnológica como parâmetro. Os aedos e rapsodos eram os poetas ambulantes responsáveis por transmitir ao povo os desejos e orientação dos deuses, tendo um lugar social de enorme significação. As histórias eram contadas oralmente, passadas de geração em geração, sendo sedimentadas na vida e na consciência das pessoas.
Homero e Hesíodo são os principais poetas que deixaram para nós essas histórias. Elas foram registradas na Ilíada e na Odisseia, do primeiro, e em Teogonia e Os trabalhos e os dias,do segundo. Outros autores também foram importantes no processo de transmissão desses mitos e são responsáveis por diversas versões de uma mesma história. Os mitos narram a gênese e as aventuras dos deuses e dos homens, nas quais não havia uma concepção de transcendência divina deslocada essencialmente do mundo humano. São uma infinidade de relatos de amor, de ódio, de traição, de bondade, de perversidade, coragem, heroísmo; todos contêm um fundo educativo, ou seja, destacam um modo de pensar a formação humana e de oferecer para a existência algum sentido.
Neste texto vamos analisar apenas a história Édipo Rei, que, diferentemente das histórias épicas presentes nas obras citadas, se trata de uma tragédia situada aproximadamente quatro séculos depois, por volta de 427 a.C.
Como destacado anteriormente, não se trata de uma história mitológica tal qual aquelas oriundas dos poetas ambulantes. Aquelas tinham como uma de suas características fundamentais a ação e vontade direta dos deuses agindo sobre a natureza e a vida humana. A tragédia é uma peça utilizada para ser apresenta no teatro, fruto da mente criativa de um autor; no caso específico, de Sófocles, mas ela traz proximidade com os mitos antigos; podemos sustentar que se trata de uma releitura dos mitos anteriores, mas influenciada pelo contexto de guerra e de construção da democracia no qual viveu seu criador.
Diante de tantas interpretações sobre esse enigmático texto, procuraremos destacar uma visão mais existencial sobre ele, tendo como base o propósito deste trabalho, que é relacionar mitologia e educação. Neste primeiro momento, vamos resumir os pontos centrais da tragédia em questão e em seguida destacar a interpretação política do filósofo francês Michel Foucault. O propósito é evidenciar, mesmo que sinteticamente, uma das diversas e originais interpretações da peça sofocliana, atentando para a sua influência ainda presente na atualidade. O terceiro passo será mostrar de que modo esse mito está associado a uma concepção ampla de educação, que extrapola aquilo que denominamos educação formal, ou seja, mais do que uma educação para a vida; uma educação na vida.
A tragédia Édipo-Rei
A cidade de Tebas era governada pelo Rei Laio, que era casado com Jocasta. Laio consultou o oráculo de Delfos e este afirmou que ele não deveria ter filhos; se isso ocorresse, sua vida incorreria em desgraça: ele seria assassinado pelo filho e este casaria com Jocasta. O rei desobedeceu ao oráculo e teve um menino, mas, com medo de morrer, ordenou o abandono da criança em uma montanha com os pés perfurados para que morresse. Da ferida oriunda dos pés da criança emergiu o nome do menino: Édipo, ou seja, pés inchados. O menino foi encontrado por pastores que ficaram com pena de deixa-lo morrer e o levaram para o rei de Corinto, Polibo. O menino foi criado com as honras de um descendente de uma majestade.
Édipo, depois de crescido, consultou o oráculo de Delfos e soube que seu destino era matar o pai e se casar com a própria mãe. Para fugir desse fardo, ele deixou Corinto e foi para Tebas, pois estava convicto de que Laio e a esposa eram seus pais legítimos e não desejava se insurgir contra eles. Na viagem, encontrou-se com a carruagem de Laio, que pediu passagem, Édipo não o atendeu, eles entraram em luta; excetuando-se apenas um, todos os servos do rei, inclusive o próprio, foram mortos por Édipo.
A viagem prosseguiu e no caminho, na entrada de Tebas, Édipo encontrou-se com a Esfinge, um monstro com parte do corpo leonina e outra parte, humano-feminina. Ela devorava aqueles que não decifrassem o seu enigma: qual é o animal que pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois e à tarde três? Édipo respondeu prontamente que era o homem, pois na infância engatinha, na fase adulta anda sobre os dois pés e na velhice necessita de uma bengala, o que simbolizaria o terceiro pé. A Esfinge ficou furiosa por ter seu enigma descoberto e se matou. Édipo foi louvado pelo povo como novo rei, por tê-los libertado do jugo da Esfinge, e se casou com Jocasta. Eles tiveram vários filhos e viveram em paz por um tempo.
Ocorreu, entretanto, uma peste em Tebas; Édipo consultou o oráculo para saber as razões de tal desgraça estar afetando a cidade; ficou sabendo que a peste era consequência da morte de Laio e só teria fim após o assassino ser descoberto e castigado. O personagem central da história descobriu, após investigação, que se tratava dele mesmo; por causa disso, realizou o ato extremo de cegar-se. Sua mãe, Jocasta, suicidou-se.
Michel Foucault: entre muitas interpretações possíveis
O filósofo francês Michel Foucault (2003) analisa a peça de Sófocles adotando como fio condutor as práticas jurídicas presentes na Grécia Antiga; para tal, ele circunscreve a interpretação baseado na sua concepção de saber e poder. O que Sófocles descreve é um modelo de prática jurídica que já fazia parte do contexto social grego, presente, por exemplo, na Ilíada, na disputa entre Menelau e Antíloco. Nesse julgamento, o primeiro acusa o segundo de trapacear em uma corrida de carruagens e convoca o outro a jurar diante de Zeus se logrou ou não, o que exige a confissão de Antíloco. Há, já nesse momento da história grega, uma estrutura investigatória que impõe a presença de testemunhas e provas. Um modelo jurídico que perdura até os dias atuais.
Em Édipo Rei essa busca da veracidade dos fatos por meio de provas e testemunhas é muito mais sofisticada, segundo Foucault, pois o testemunho não é de apenas uma pessoa, como ocorrera na Ilíada, mas de várias. O filósofo denomina como “meias verdades” esse esforço para encontrar a verdade edipiana. Tirésias foi o sábio cego que revelou que Édipo matou o pai. O oráculo de Delfos fez a mesma revelação; cada um revelou o fato a partir de suas “meias verdades”, revelaram apenas de forma enigmática o ocorrido. As duas outras testemunhas que surgem são dois escravos. O primeiro avisa que o pai adotivo de Édipo morrera, o que tranquiliza o rei, retirando de suas costas o peso de ter matado o pai. Mas o pastor de ovelhas, outra testemunha, apresenta o passado sombrio de Édipo, que havia sido entregue à própria sorte para morrer pelos pais verdadeiros, Laio e Jocasta. Jocasta, enfim confirma a história e o inquérito se fecha. Fica provado que o rei de Tebas é parricida e incestuoso. O filósofo francês assim comente este episódio da peça sofocliana:
O ciclo está fechado [...]. Como se toda essa longa e complexa história de criança ao mesmo tempo exilada e fugindo da profecia, exilada por causa da profecia, tivesse sido quebrada em dois, e todos esses fragmentos repartidos em mãos diferentes. Foi preciso essa reunião do deus e do seu profeta, de Jocasta e de Édipo, do escravo de Corinto e do escravo de Cinterão para que todas essas metades e metades de metades viessem ajustar-se umas às outras, adaptar-se, encaixar-se e reconstituir o perfil total da história (Foucault, 2003, p. 37).
Foucault destaca que o fundamental na tragédia pode ser simplificado no seu nome: Édipo Rei, pois não se trata da história de alguém que matou o pai e se casou com a mãe, mas de alguém que detém o poder. Todo o jogo simbólico em torno da peça ocorre por causa das relações de poder. Os dois campos que revelam a presença do poder e também do saber, são o testemunho das pessoas que são chamadas a interferir no caso. Cada testemunha tem uma verdade singular sobre a história e cada uma delas contribui para o desfecho da celeuma em questão: a peste que acomete Tebas, cuja origem é o assassinato de Laio.
O outro lado da concepção de poder é aquela que se manifesta no rei. Segundo Foucault, ele foi o sábio que derrotou a Esfinge e considera que seu poder é legítimo, por isso não quer perdê-lo. Trata-se de um tirano que quer a todo custo manter-se no cargo. Édipo é o representante do poder central, do poder piramidal, mas para o filósofo essa não é a única forma de poder; este ocorre de forma relacional, está em todos os lugares, e as testemunhas representam esse poder circular que derrubou e aniquilou o poder central.
Édipo-Rei e a educação
O enigma da Esfinge é um dos pontos fulcrais do mito. Ele retrata a dinâmica do próprio fluir da existência, a infância, a fase adulta e a velhice. Pelo fato de ser capaz de decifrar o que parece óbvio, mas para o que a maioria das pessoas não está atenta, Édipo mereceu o poder de substituir o rei e, ao mesmo tempo, abriu o caminho, mesmo sem saber, para encontrar-se com seu destino. O enigma da Esfinge é o enigma da vida, da potência que se impõe ao existir. Édipo desvendou o enigma, mas em tal momento ainda não se uniu a ele como parte integrante desse devir, que naquele contexto queria dizer: não há como fugir do destino!
Mas é importante que tenhamos cuidado ao interpretar como os gregos compreendiam o destino; este não funcionava como uma fatalidade. Atesta isto a interpretação de Karl Reinhardt ao afirmar que, tanto para o poeta trágico Sófocles como para os gregos, “destino não é em circunstância alguma o mesmo que predeterminação, mas um desdobramento espontâneo de uma potência divina (daímon), mesmo quando o destino já tenha sido predito” (Reinhardt, 1978 apud Leite, 2008, p. 14).
Um dos ensinamentos didáticos que o personagem indica é também que, apesar do destino, da aceitação do necessário, é possível trilhar por caminhos singulares. Nascer, crescer, morrer está no curso natural da existência, mas é possível que incluamos nesse percurso algo de original, de próprio. Embora matar o pai e se casar com a mãe fosse para ele brutalmente inevitável, era possível pelo menos tentar traçar outro caminho. A bengala surgirá para aqueles que tiverem a sorte ou o azar de chegar à velhice, mas esse destino inevitável não deve ser aceito passivamente, pois, embora não possamos mudá-lo, podemos tentar conduzi-lo com autonomia.
A tragédia visa destacar que a força bela e brutal da vida se impõe sempre. Nesse contexto, entendemos vida como porvir, potência, força criativa, o elã vital que perpassa todos os seres da natureza e mantém a existência em seu curso, embora isso ocorra sempre com tensão. Édipo ensina a criar perspectivas para sair do itinerário que já parece traçado, definido. De certo modo, o fim certo fica modificado mesmo que o enredo pareça não ter mudado. A tragédia parece mostrar que: a vida é isso aí, começa com os dois pés e, no caso humano, termina com três; vai passando do máximo de energia ao seu definhamento com o tempo, mas mesmo assim podemos e devemos interferir no seu decurso.
A peça não é apenas uma tragédia do destino, mas também da identidade pessoal: a busca pelas origens e significados de nossa vida, um balanço entre um único e vários “eus”, o reconhecimento das vastas áreas escuras acerca de quem nós “realmente” somos e um esforço pra explorar o mistério essencial do nosso ser. Ela dramatiza a dor solitária da autodescoberta, como Édipo separa seu verdadeiro eu de um eu ilusório (Segal, 1998 apud Leite, 2008, p. 13).
A cegueira desesperada e voluntária do personagem central da peça é um ato que aponta que, pelo menos naquele instante, ele foi autor do seu destino. Na realidade, toda a história demonstra um percurso sempre singular, e essa autoflagelação parece coroar a autonomia pessoal. Conforme comentário de Gonçalves (2001), Hegel considera que há nesse momento uma aceitação da culpa e ela é um reconhecimento do próprio destino pela ação. Essa ação não é uma manipulação divina, mas própria. Comenta o filósofo:
Ele, todavia, reconhece como seu o todo desse delito e se pune como assassino do pai e como incestuoso, embora não tenha residido em seu saber o querer assassinar o pai nem desposar a mãe. A consciência e a totalidade autônoma do caráter heroico não quer dividir a culpa e não sabe nada dessa contraposição das intenções subjetivas e do ato objetivo com suas consequências (Hegel apud Gonçalves, 2001, p. 197).
Na interpretação do filósofo alemão, mesmo sem ter consciência prévia do seu ato, o herói o assume, pois o sujeito não transfere para outrem o que fez, transfere o que faz completamente para si (Hegel apud Gonçalves, 2001, p. 197). Afirmar as ações passadas e presentes é um modo de assumir também o destino, a responsabilidade plena pela vida. O destino radicalmente trágico do personagem, que tem a mais profunda dor física e moral, termina com o esforço de dar dignidade ao existir.
Édipo em Colono, outra peça de Sófocles, que, junto com Antígona,completa uma trilogia, aponta a vida errante e sofrida do herói, mas, diferentemente do que ocorrera em Édipo Rei, mesmo cego o personagem parece enxergar com mais profundidade o real. Agora ele respeita os oráculos e consegue prever os fatos que ocorrerão. O sofrimento, a velhice, a maturidade são sinais de que não adianta forçar, ultrapassar o decurso natural do existir. Se o Édipo jovem sofreu por causa de sua impetuosidade, ele não errou, pois viveu conforme a sua consciência, a ponto de na maturidade admitir que não fora culpado dos erros de sua juventude (Édipo em Colono, 2012). Aquele homem que teve o poder do reinado em suas mãos tinha uma visão de mundo mais curta do que este que, agora cego, consegue traçar com mais precisão o seu destino, e a vida para Édipo termina assim como começou: dando forma própria ao existir. A frase final do texto destaca que agora não faz mais nenhum sentido lamentar: “Agora basta; não há mais motivos para insistir nessas lamentações. Tudo está decidido para sempre” (Édipo Rei, 2012, p. 195). Mas tudo se encerra apenas no final; enquanto há vida, Édipo ensina, é necessário prosseguir.
Considerações finais
O objetivo central deste texto foi atentar para o caráter educativo dos mitos, sustentando sobretudo a sua forma de ler a vida. Eles compreenderam o modo diferente de como os antigos analisavam o próprio existir, traziam em si um esforço por entender o mundo, de provocar no homem a pergunta sobre si mesmo e sobre o que o circunda. No caso de Édipo, para além das reducionistas interpretações apenas morais da história, parece que Sófocles quis tratar do próprio espírito da alma grega, que estava ocupada sobretudo com o bem-viver. A tese de que o herói deveria aceitar passivamente o seu destino é o pior dos cenários para interpretar a obra, pois isso levaria à fatal consequência do parricídio e do incesto, embora o problema do destino estivesse sempre posto, sendo inevitável considerar a sua presença e a sua força naquela cultura.
É debatido no texto um problema da mais elevada relevância moral: a relação com os pais, acentuando o máximo de ultrapassagem possível, da razoabilidade da convivência familiar. A total violação da ordem cosmológica estabelecida, que não devia ser traída, a despeito do furor dos deuses, ficou drasticamente acentuada; mesmo assim, o herói afirmou a vida, a existência que ele mereceu ter.
Entre tantas análises possíveis, Sófocles aponta para algo bem simples e preciso: embora haja forças inevitáveis, que extrapolam totalmente a nossa condição de mudar o seu rumo, sempre é possível fazer a pergunta sobre si mesmo: quem sou eu? E não se deixar determinar totalmente pelo destino. Édipo Rei trata de uma educação para a vida, parece indicar questões como esta: apesar da dor, do sofrimento, das incertezas, das angústias da existência, qual é a melhor forma de viver?
O corpo de Édipo, que numa cultura da culpabilização dos atos humanos poderia ser classificado como maldito, como demolidor da moral, como corruptor, é absorvido pela terra como abençoador. A morte do herói é nobre porque a sua vida foi nobre, porque ele soube traçar para si um horizonte. Em uma existência sem sentido, o herói conseguiu desvirtuar essa terrível lógica, dando razões a um existir trágico. Mesmo se Édipo tivesse trilhado outro caminho, uma trajetória diversa da que escolheu, mesmo assim, teria encontrado o seu destino. O primordial, então, é que tomemos decisões sobre nós mesmos, sobre os rumos que devemos seguir, pois são elas que podem, de algum modo, nos tornar singulares. O itinerário natural de nascer, crescer, reproduzir e morrer permanecerá se impondo, mas nossa vida é o conteúdo que se preenche nessa trajetória educativa e existencial, que é inevitavelmente de agruras, incertezas, cegueiras e traições, mas também de alegrias, contentamentos, festa, ou seja, é a tragédia da vida!
Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
FOUCAULT, Michel. Conferência II. In: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2003.
GONÇALVES, Marcia Cristina Ferreira. O belo e o destino, uma introdução à filosofia de Hegel. São Paulo: Loyola, 2001.
LEITE, Lettícia B. R. Édipo-Rei: refletindo sobre a anagnórisis no âmbito da trama sofocliana clássica (Brasil) Universidade Paris-Ouest, 21.1, p. 71-89, 2008.
REINHARDT, Karl. Sophocles. Oxford: Basil Blackwell, 1978.
SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo-Rei, Édipo em Colono, Antígona. Trad. introdução e notas de Mário da Gama Kury. São Paulo: Zahar, 2012.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica d’Ávila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
_______; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia da Grécia Antiga. Trad. Anna Lia A. de Almeida Prado, Maria da Conceição M. Cavalcante e Filomena Yoshie Hirata Garcia. São Paulo: Duas Cidades: 1977.
Publicado em 31 de outubro de 2017
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