Relendo imagens, pensando representações juvenis
Vanessa de Andrade Lira dos Santos
Professora de Artes Visuais (Faetec/Seeduc-RJ), mestre em Educação, Cultura e Comunicação (FEBF/UERJ)
Falar a respeito de imagens parece mais confortável quando partimos de um escopo teórico, que utilizamos como rede de apoio que baliza tudo que nos arriscamos a analisar. Falamos de suas relações com aspectos teóricos, de seus conteúdos históricos e das conexões que produzem quando chocadas umas com as outras. O desafio proposto aqui vem com a seguinte questão: e quando as imagens, como produções juvenis, nos arrebatam antes dos textos que poderiam “justificá-las”? Deixemos claro o caráter experimental das leituras que se seguirão a partir das imagens.
A atividade proposta aos alunos foi de produzirem releituras de obras de arte. À proposta em si não é possível conferir nada de inovador; o que se pretendeu foi inicialmente um exercício do olhar. Esse exercício poderia ser feito a partir de uma infinidade de imagens e de fontes. Poderia seguir um roteiro delimitado a priori, poderia partir de uma temática coerente com as diversas realidades presentes no contexto escolar. No entanto, iniciar um contato com imagens de obras de arte sem temática previamente definida foi uma experiência de introdução às aulas de Artes Visuais.
Nesses momentos, ao escolher atividades e maneiras de intermediá-las, os questionamentos do que é relevante ou não para os jovens insistem em intensificar-se. Mas, considerando a crença na necessidade de possibilitar uma diversidade de propostas, das mais básicas às consideradas mais contemporâneas, é possível encarar a releitura como uma experiência que pode ocasionar um exercício mais amplo do que a simplicidade que supõe.
Reproduções de obras de diferentes artistas foram postas como opções para observação e posterior releitura dos alunos. Não seguimos uma lógica temporal, apenas nos apropriamos de todas as imagens de obras disponíveis para o uso.
Tanto em boa parte da rede pública quanto no próprio cotidiano de muitos desses jovens inseridos nela, a apropriação do que é disposto se mostra como realidade inseparável das possibilidades de investigação que se apresentam como disponíveis. Dessa forma, não podemos ignorar essa situação dentro do espaço escolar, mas é preciso viabilizar nossa prática a partir do que se tem ao redor como instrumental.
Cabe ressaltar que essa reflexão parte de um pequeno recorte de uma gama de trabalhos produzidos por três turmas do 9º ano do primeiro turno. A escolha da reprodução da obra e das quatro releituras produzidas a partir dela se deu pela observação dos trabalhos finalizados. Diante do montante de trabalhos produzidos, os alunos reconheceram a variedade de diferentes releituras da mesma obra, selecionando-as como referências da atividade geral.
A obra que serviu como referência para o trabalho é Rapaz com cachimbo, feita em 1905 por Pablo Picasso. Não discutiremos aqui o que poderia ou não estar representado na imagem; interessa a maneira como os jovens reconfiguraram a imagem inicial e como, a partir de um mesmo referencial, é possível vislumbrar a diversidade de produções resultantes. As releituras deram-se com a proposição de manter o posicionamento inicial do jovem retratado na obra, reconfigurando e contextualizando sua natureza nos desenhos produzidos.
A própria atividade do desenho nos remete a uma natureza orgânica e artesanal do trabalho, tarefa nem sempre encarada positivamente pelos alunos dessa faixa etária (entre 14 e 16 anos). Alguns jovens encaram essa atividade como uma referência ao universo infantil, criando certa resistência em aceitá-la como possibilidade de experimentar habilidades frustradas ao longo da vida escolar.
Além da constatação dessa resistência inicial, ora justificada pela falta de coordenação para exercer tão tarefa, ora questionada por seu propósito duvidoso ao se tratar de adolescentes e não crianças, torna-se perceptível um desconforto que vai além das primeiras impressões. Alguns alunos insinuam certo constrangimento ao “se expor” produzindo um desenho.
Após as primeiras aulas, desenvolvendo aproximação com os alunos, costumo deixar clara a seguinte proposição: ao criar, deixamos, com mais ou menos intensidade, um pouco de nós nesse vestígio que é o trabalho resultante. Nele não findam nossas intenções, nem cabe uma ideia inteira; ele vira a parte que sobra da costura entre pensamento, sensação e memória. Na experiência do desenho, esse pouco de nós é talvez ainda mais perceptível, já que, além da imagem produzida, e de tudo que ela carrega como relações possíveis, temos o gesto pessoal impregnado a partir da matéria, gesto que se mostra intensamente nessa simples atividade de releitura.
Ainda que consideremos a habilidade como um instrumento importante para a produção de um desenho, já que ele é resultante de uma tradução do que se inicia no olhar, atravessando a cognição e os sentidos, é possível perceber que sua manifestação vai além dessa constatação inicial. Habilidades técnicas e inventivas cruzam-se com experiências pessoais e coletivas, trazendo para a superfície do papel resoluções desse espaço que ultrapassam fórmulas ou regras estéticas.
A partir dessas reflexões iniciais, lançamos nosso olhar de fato para os desenhos de quatro alunos, que aqui identificaremos como Paulo, Patrícia, Mateus e Moisés.
Figura 1: Rapaz com cachimbo, 1905, Pablo Picasso
Figura 2: Releitura de Paulo.
Paulo produz sua releitura com certo grau de aproximação, preservando alguns detalhes da imagem observada, fazendo pensar no próprio sentido de reprodução e de semelhança. Seja nas dobras da roupa, seja na expressão facial, vemos o resultado de um olhar minucioso para a obra que serviu de referência. Cruzaremos a observação das imagens à proposição de Gagnebin (1993, p. 80), que trata de semelhança e reprodução, analisando sua reflexão:
Com efeito, tendemos demais a assimilar semelhança, similitude (Ä hn lichkeit) com reprodução (Abbildung), a pensar que a imagem de uma coisa é a sua cópia. Ou ainda a definir a semelhança em termos de identidade, dizendo que dois objetos são semelhantes quando apresentam certo número de mesmos traços. Benjamin tenta pensar a semelhança independentemente de uma comparação entre elementos iguais, como uma relação analógica que garanta a autonomia da figuração simbólica. A atividade mimética sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma imitação.
“Pensar que a imagem de uma coisa é a sua cópia” conduziria a um esvaziamento do sentido próprio do referencial e das imagens produzidas a partir dele. Essa atividade mimética de que trata Gagnebin carrega em seu cerne, em maior ou menor grau, as experiências que trazem o rastro do passado e as perspectivas do novo às produções humanas. Podemos supor, ao olhar para a imagem produzida por Paulo, que sua feitura atravessou um pedaço de tempo e que esse processo acarretou uma variedade de pensamentos e sensações. No entanto, nunca saberemos de fato o que foi produzido em Paulo para além da imagem resultante que observamos. Assim, a releitura jamais encerraria em si mesma o acontecimento que culminou nela, dando à atividade mimética um caráter processual que extrapola sua natureza como princípio de reprodução.
Figura 3: Releitura de Patrícia.
O “rapaz com cachimbo” de Patrícia adquire uma fisionomia bem diferente da imagem referencial; ganha uma máscara em seus olhos e dois acompanhantes inusitados nos ombros. Uma relação sutil entre representações do “bem” e do “mal” se faz ao redor da figura principal; assim, a imagem passa a carregar uma metáfora de forças opostas.
A releitura provém muito mais das reflexões de Patrícia, instigadas pela imagem em referência, do que dela em si. Esse caminho que o processo criativo faz até culminar na imagem resultante é um percurso de infinitas vias, e os embates que se dão no silêncio desse acontecimento são impulsionados por memórias e trajetórias, que se cruzam com a experiência do presente.
A imitação é essa vida secreta e veicular das formas. O sensível exprime metafisicamente essa capacidade secreta de absoluta transmissibilidade e de infinita apropriabilidade das formas. A imagem não é, assim, apenas o absolutamente transmissível, mas também o infinitamente apropriável (Coccia, 2010, p. 59).
Figura 4: Releitura de Mateus.
Mateus reconfigura drasticamente a imagem observada, coloca-a de fato em outro tempo. Utilizando referências imagéticas da atualidade, transforma o “rapaz com cachimbo” de um século atrás em um jovem que poderíamos encontrar nas esquinas do nosso tempo. O boné e as marcas impressas nele, as letras no casaco e o cordão de diamante nos remetem ao consumo e ao status tão impregnados na sociedade atual.
Torna-se clara uma das tantas possibilidades de contextualização a partir de uma mesma imagem, e essa interpretação traz os símbolos que são repetidos no universo de Mateus e de tantos outros jovens. Marcas e estilos orientam a forma como muitos jovens se apresentam no mundo, ao mesmo tempo que expõem uma reflexão latente sobre as visões que produzem sobre ser e ter.
As formas de expressão dos jovens produzem símbolos que se renovam, em uma relação mútua entre tendências que o mercado apresenta e as maneiras de viver e de se fazer ver dessas juventudes. Assim, o discurso de via única, em que os jovens são influenciados exclusivamente pelo que é produzido a partir do mercado, limita e torna superficial qualquer leitura sobre suas escolhas.
Quando Mateus desenha marcas na roupa e nos adereços da figura que retrata, ele de fato localiza sua representação em um tempo e imprime determinado valor cultural à figura. Mas, se pensarmos nas estratégias de mercado que partem das representações juvenis como foco de produção, é possível identificar uma via de mão dupla, em que os jovens são consumidores e, ao mesmo tempo, referenciais que movimentam esse mercado produtivo.
Na escola, esses jovens desfilam suas referências visuais numa variedade que multiplica a lógica do se sentir comum. E as mesmas peças, os mesmos objetos, as mesmas formas de configurar esteticamente os slogans que carregam em seus corpos deixam de ser “mesmas” na medida em que dialogam com suas maneiras próprias de se movimentar, de se expressar e de imprimir sua presença no mundo.
Figura 5: Releitura de Moisés.
Moisés desvencilha-se da forma de representação “limpa” e ordenada da obra de referência trazendo uma carga expressiva para o desenho que remete ao próprio gesto como característica que confirma a presença física do criador na imagem. O caráter artesanal do desenho se faz presente, a força que Moisés imprime em cada traço, a intensidade maior ou menor de resolver cada parte do trabalho não se perdeu, ao menos totalmente, com qualquer ato de correção que possa ter acontecido ao longo do processo de produção do trabalho. O tempo objetivo gasto ao fazer o desenho não pode ser contabilizado em seu resultado, mas a expressão desse tempo e da mão de quem o produziu aparece como rastro no que nos é visível.
A imagem da obra utilizada como referência para o trabalho já é em si uma releitura de outra realidade. Não é de fato o “rapaz com cachimbo”; não sabemos nem se o rapaz e o cachimbo existiram de fato. Não sabemos se, caso tenham existido, são representados com certa aproximação da realidade. Independente disso, por ser uma pintura, resultado de material impregnado a uma superfície, já é outra coisa, carrega uma significação que o real não contém.
Por sua vez, o desenho de Moisés também é outra coisa, descolada da obra em referência e ainda mais distante da realidade que a inspirou. Seu desenho não é “expressão codificada de um pensamento ou de um sentimento”, e se ele já não é uma tradução do que acarretou o gesto inicial, nossa reflexão sobre o desenho se apresenta definitivamente como outra coisa que não um discurso definitivo sobre o que vemos.
Permitir-se lançar e repetir olhares sobre as imagens pode ser uma chave para resgatar ao menos os vestígios do “que se agita em meu frasco” (Barthes, 1984, p. 24). É “o que se agita” que possibilita se revisitar, já que a produção de saberes sobre si e sobre o outro se intensifica a partir de revisitações. Revisitar as imagens produzidas pelos jovens permite redefinir a experiência do tempo, resgatar sentidos que permanecem empilhados nas camadas sobrepostas de memórias.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Do conceito de mimesis no pensamento de Adorno e Benjamin. Perspectivas, São Paulo, v. 16, p. 67-86, 1993.
Publicado em 14 de novembro de 2017
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