Polifônicos e politônicos: um estudo de caso sobre diálogo tônico
Mônica Peregrino Bali
Programa de Pós-Graduação em Psicomotricidade - Educação e Clínica (IBMR)
Letícia Vargas de Oliveira Brito
Programa de Pós-Graduação em Ciências do Exercício e do Esporte (UERJ)
Cristie de Moraes Campello
Universidade Aberta da Terceira Idade, Centro Cultural (UnATI/Coart-UERJ)
Introdução
A proposta do presente estudo parte de um enfoque biopsicossocial da Psicomotricidade utilizando o conceito de flutuação tônica. O objetivo é proporcionar estímulos sonoros a indivíduos idosos e avaliar a conexão entre sensação, percepção, emoção e tônus muscular. Partiu-se da hipótese de que o conceito do diálogo tônico transpassaria os estágios de desenvolvimento e se manifestaria no corpo idoso. O método utilizado foi estudo de caso experimental de corte transversal com a amostra (n=21) selecionada por conveniência; alunos da UnATI/Coart da UERJ participantes da oficina Psicomotricidade Imagem e Memória assinaram um termo consentindo participar da aula experimental. A intervenção realizada foi uma atividade de prática respiratória, seguida de roteiro sonoro que proporcionava estímulos de afeto positivo/negativo e permeava a memória afetiva/emocional. Logo após, foi realizada a aplicação dos questionários, autopreenchidos, seguida de troca de experiências pessoais ao grupo. O questionário consistia de perguntas abertas para o registro da memória afetiva/emocional que se apresentou no corpo físico como variação tônica. O registro audiovisual de toda a intervenção também foi realizado. As experiências descritas pelos alunos após a intervenção coincidem com a hipótese descrita no objetivo. Os alunos relataram experiências que pressupõem a conexão entre estímulo auditivo, afeto positivo/negativo e memória. A avaliação qualitativa da corporeidade pela pesquisadora também mostrou essa conexão. Embora as análises qualitativas indiquem esse resultado, o estudo de caso tem limitações, como uma amostra muito pequena para extrapolações estatísticas inferenciais ou maiores considerações de resultados. Embora a literatura indique a conexão entre corpo e estímulos sensoriais em estágios iniciais do desenvolvimento humano, mesmo após o desenvolvimento da linguagem e o envelhecimento, essa conexão permanece sensorial tônica. As respostas afetivas positivas/negativas são promovidas de acordo com a influência da memória e do afeto do estímulo também em idosos.
Diálogo tônico foi definido por Wallon (1957) como a comunicação não verbal entre mãe e bebê. Ajuria Guerra (apud De la Taille; Oliveira; Dantas, 1992) definiu o diálogo tônico como uma comunicação forte e primitiva que se faz por intermédio de atividade tônica e postural sem intermediação da linguagem verbal. Portanto, o diálogo tônico se equipara a uma linguagem corporal com a ausência da comunicação verbal.
Flutuação tônica é uma manifestação biológica e social que se apresenta em decorrência de uma manifestação emocional (Lapierre; Aucouturier, 1988).
A memória faz parte da vida, lembrar e esquecer faz parte da memória. Cheiros, sons, paladares, gostos, emoções, toques, tudo isso traz marcas, cria memórias. O que está em jogo é o que guardamos e o que jogamos fora do baú da memória. Quais as marcas, as lembranças, as histórias que trazemos do passado e atualizamos no presente, possibilitando a metamorfose de memória ressentidas em criação de novas memórias (Campello, 2008).
A partir do diálogo tônico, desenvolvemos o diálogo polifônico, que foi inicialmente criado para um formato de oficina e corresponde a um roteiro sonoro para fazer uma experiência da conexão entre o diálogo tônico e a flutuação tônica.
A possibilidade de observar o corpo não só como executor de movimentos, mas como um condutor de histórias vividas, de sensações e expectativas sobre esse corpo, sujeito, e entendê-lo como uma “caixa de anima” (Brandão, 1987) me possibilita adicionar afeto (do latim affectio) ao tratamento. “A emoção esculpe o corpo, imprime-lhe forma e consistência”; por isso Wallon a chamou de atividade “proprioplástica” (Galvão, 1995).
A proposta do presente estudo parte de um enfoque biopsicossocial da Psicomotricidade utilizando o conceito de flutuação tônica. Impulsionada por conceitos wallonianos comumente aplicados à educação e às crianças, este experimento propõe-se verificar a permanência de registro de memória e manifestações emocionais também em idosos. Criar uma relação entre os diálogos polifônicos (da prática/roteiro sonoro), uma “ponte” ao diálogo tônico, à comunicação não verbal, conceito descrito por Wallon.
Consideramos que esses elementos estarão presentes nos estágios de desenvolvimento também descritos por Wallon. São eles:
- Impulso Puro – Atividade reflexa
- Afetivo Emocional – Pura emoção
- Sensório Motor – Motricidade voluntária. Atividade simbólica
- Projetivo – Conhecer objetos
- Personalismo – Formação do Eu
- Adolescência – Socialização, Grupo.
Considerou-se, portanto, o corpo do idoso sob a ótica da Gerontologia, da Fisiologia com uma visão biopsicossocial, um corpo vivo, ativo, com seus registros físicos, emocionais e culturais.
Criou-se a hipótese de possíveis ressignificações dessas memórias e seus registros por meio do contato com o roteiro sonoro. Haveria a presença de flutuações tônicas?
Objetivo geral
O objetivo geral deste estudo foi proporcionar estímulos sonoros a indivíduos idosos e avaliar a conexão entre sensação, percepção, emoção e tônus muscular.
Partiu-se da hipótese de que o conceito do diálogo tônico transpassaria os estágios de desenvolvimento e se manifestaria no corpo idoso.
Objetivos específicos
Observar e correlacionar o impacto da atividade sensorial com a memória afetiva/emocional no indivíduo idoso.
Relacionar estímulos sensoriais atuais com a memória corporal, a presença de alternâncias tônicas/emocionais (flutuação tônica), perpassando o período pré-sensório motor até a maturidade.
Método
Um estudo de caso experimental de corte transversal com a amostra (n = 21) selecionada por conveniência. Alunos da UnATI/Coart da UERJ participantes da oficina Psicomotricidade imagem e memória assinaram um termo consentindo participar da aula experimental, coordenada pela mestra Cristie de Moraes Campello.
A intervenção realizada iniciou-se com uma prática respiratória, seguida de audição do roteiro sonoro. Teve-se como objetivo proporcionar estímulos de afeto, com variáveis e suas possíveis manifestações emocionais.
Considerou-se como hipótese a presença de manifestações emocionais e em seguida observar o quanto elas permeavam a memória afetiva/emocional dos idosos. Logo após a audição, foi realizada a aplicação dos questionários autopreenchidos, seguida de troca de experiências pessoais com o grupo.
O questionário consistia em perguntas abertas para o registro da memória afetiva/emocional, buscando avaliar se ocorreria no corpo físico uma variação tônica.
Foi realizado o registro audiovisual de toda a intervenção. Esse registro tem duração de 2’26”. O conteúdo foi editado com o objetivo de não dar exposição demasiada dos alunos participantes (https://vimeo.com/160656385).
Questionário
A que lembranças os sons remeteram você?
Com quais sons você mais se identificou?
Quais os sons mais perturbadores?
Para você, o que foi mais difícil vivenciar?
A vivência remeteu você a uma época ou a uma pessoa?
Resultados
As experiências descritas pelos alunos após a intervenção coincidem com a hipótese descrita no objetivo. Os alunos relataram experiências que pressupõem a conexão entre estímulo auditivo, afeto e memória (flutuação tônica, registros físicos/emocionais via memória física de sensações provenientes de vivências sonoras), além de resultados como relatos de resgate de vivências e memória que possibilitaram resgate e ressignificações. A avaliação qualitativa da corporeidade feita pela pesquisadora também mostrou essa conexão, assim como os registros visuais. Embora as análises qualitativas indiquem esse resultado, o estudo de caso tem algumas limitações, como o fato de ser uma amostra muito pequena para extrapolações estatísticas inferenciais ou maiores considerações de resultados.
As respostas do questionário foram descritas na Tabela 1, de forma a permitir melhor avaliação qualitativa das questões. Como foi possível observar, houve predominância de respostas com referências à infância e/ ou ao passado.
É importante considerar o viés “roteiro sonoro”, ou seja, os elementos sonoros previamente elaborados apresentaram conteúdo referente à época ou período de infância dos alunos presentes, com máxima de 90 e mínima de 60 anos.
Tabela 1: Resultados do questionário |
|||||
Respostas (indivíduos) |
a) A que lembranças os sons remeteram você? |
b) Com quais sons você mais se identificou? |
c) Quais os sons mais perturbadores? |
d) Para você, o que foi mais difícil vivenciar? |
e) A vivência remeteu você a uma época ou a uma pessoa? |
1 |
vivências do cotidiano |
os de acolhimento e desenho animado |
repórter, chuva, trovão e falas de advertência |
trovão e medo |
época e pessoas |
2 |
infância, adolescência |
todos, várias épocas da minha vida |
nenhum |
vivi com atenção e tranqüilidade |
pessoas e amigos de infância e adolescência |
3 |
infância, juventude, momentos felizes |
as que remeteram aos musicais |
não houve |
não houve |
diversos momentos da minha vida. Maravilhoso. |
4 |
minha infância |
cantigas de roda |
trovão e tempestade |
o medo |
a uma época |
5 |
esperança, tempos de infância |
chuva |
nenhum |
a palavra saudade me tomou de emoção |
ao tempo que não para |
6 |
passado feliz |
desenhos animados |
nada me perturbou |
tudo foi bom |
pessoas e épocas maravilhosas |
7 |
infância |
os de maior ênfase, de movimento rítmico |
as falas...enfadonhas |
não houve dificuldade |
a infância |
8 |
a um passado feliz |
com todos |
não houve |
saber que o passado não volta |
lembranças do Natal |
9 |
infância |
músicas alegres |
chuva e trovoada |
a trovoada |
a vida, que, como a música, traz recordações boas e agitadas |
10 |
infância |
das brincadeiras de roda |
nenhum |
sem difíceis, senti mansidão |
a uma pessoa que amei muito |
11 |
ao passado |
músicas de infância |
o som da chuva |
ao primário, colegas que falavam das mães e eu perdi a minha com 3 anos |
toda a infância, pai |
12 |
infância, família |
todos |
nenhum |
não houve dificuldade |
a uma época boa |
13 |
infância |
música, assovio |
não houve |
não houve |
ao meu primeiro amor, meu marido |
14 |
infância, libertação |
desenho animado, repórter |
buzinas |
em cada época vivi as dificuldades e venci os obstáculos |
época de mais respeito e dignidade e as crianças eram crianças com mães para educar |
15 | infância | cantigas de roda | nada perturbou | a infância foi muito importante | a uma época em que era eu mesma |
16 | época em que era criança | cantigas de roda e brincadeiras | nenhum | nada foi difícil | época de infância |
17 | passado, infância | cada um, uma época diferente | os sons me fazem bem | todos, vivenciar o passado | a uma pessoa que me deixou muito feliz |
18 | ao passado. Ouvia meu pai tocar piano | o mar | nenhum | nada | ao meu pai |
19 |
infância, saudade, amor distante |
chuva, voz, saudade |
ruídos, vozes agressivas |
a carta do Josué |
lembranças, saudades |
20 |
vivências de criança |
cantigas de roda |
nenhum |
dificuldades da vida com meu pai e irmãos |
sim |
21 |
lembranças do passado |
todos |
nada perturbou |
nada |
viajei para o meu passado |
14 infância ou passado |
6 cantiga de roda/3 música |
14 nenhum, nada |
10 nada / 2 trovão |
9 época específica |
|
5 passado |
5 todos |
2 vozes |
2 dificuldades / 2 passado |
6 pessoas específicas |
|
1 infância + passado |
3 desenho animado |
1 buzinas |
1 saudade /1 medo |
1 tempo / 1 momentos |
|
1 cotidiano |
2 chuva |
4 trovão, tempestade |
1 carta do Josué |
1 lembranças, saudades /1 sim |
|
1 mar / 1 movimento rítmico |
1 infância / 1 primário |
1 passado / 1 vida e música |
Conclusão
As respostas afetivas, com manifestações emocionais positivas/negativas são promovidas de acordo com a influência da memória, do afeto e do estímulo também em idosos, embora a literatura indique a conexão entre corpo e estímulos sensoriais em estágios iniciais do desenvolvimento humano, somente antes do desenvolvimento da linguagem. Destaca-se, portanto a importância da qualidade na abordagem tanto verbal quanto física em relação aos idosos.
Sugere-se uma abordagem mais atenta quanto aos estímulos em atividades ocupacionais, recreativas e de recuperação ou manutenção das capacidades funcionais do idoso.
Espera-se que este estudo prático experimental contribua de forma a mobilizar profissionais da área da saúde e educacional na promoção de maior atenção a esse segmento social, em crescente número na nossa sociedade.
Devemos considerar o avanço da medicina, com a evolução de exames complementares, aumento nos conhecimentos alimentares e suportes evolutivos que amenizam o avanço do tempo em relação ao envelhecimento do corpo e efeitos do tempo sobre ele. Registramos que ainda é necessária uma revolução biopsicossocial para que seja reconhecido esse corpo idoso como um corpo vivo, potente, capaz, digno de abordagens afetuosas e respeitosas.
Referências
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. II. Petrópolis: Vozes, 1987.
CAMPELLO, C. O ressentimento, o esquecimento e o riso: as três metamorfoses da memória dos idosos numa perspectiva nietzschiana. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Memória Social: UniRio, 2008.
CARLOS, Flávia dos Santos; OLIVEIRA, Célia de Paula Virginio de; SAMPAIO, Jaina Aparecida. Um estudo sobre o afeto no aluno das séries iniciais do Ensino Fundamental. Pindamonhangaba: Fapi – Faculdade de Pindamonhangaba, 2012.
DE LA TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS. Piaget, Vigotsky e Wallon – teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992.
GUETTO Filmes. Polifônicos e politônicos. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: https://vimeo.com/160656385.
LAPIERRE, A.; AUCOUTURIER, B. A simbologia do movimento – Psicomotricidade e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino-Português. 3a ed. Porto: Marânus, 1945.
WALLON, Henry. Evolution psycholigique del´enfant. Paris: Colin, 1957.
Publicado em 07 de fevereiro de 2017
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