Uma reflexão sobre o ensino de combinatória usando modelagem matemática

Patrícia Nunes da Silva

Professora associada (Instituto de Matemática e Estatística – UERJ)

André Luiz Cordeiro dos Santos

Professor adjunto (Departamento de Matemática do Ensino Superior - Cefet/RJ)

Alexandre de Souza Soares

Professor associado (Departamento de Matemática do Ensino Superior - Cefet/RJ)

Introdução

A análise combinatória é a parte da Matemática que trata essencialmente da contagem da quantidade de elementos de conjuntos finitos, em geral definidos de forma a atender certas condições, as quais aqui serão chamadas de condições de fronteira.

Um exemplo típico de problema em análise combinatória é saber qual o número máximo de clientes que podem ser atendidos por um serviço de telefonia fixa, supondo que cada número de telefone seja formado por oito dígitos quaisquer dentre . É possível, ainda, introduzir uma condição de fronteira a esse problema: quantos destes números não são iniciados pelo prefixo 2498?

Outro problema de combinatória que atrai a atenção de muitas pessoas, por razões evidentes, está ligado à probabilidade de ganhar um prêmio em jogos de loteria. Para o cálculo dessa probabilidade, deve-se determinar quantos elementos o espaço amostral deste experimento (sorteio) possui ou, em outras palavras, quantos são os possíveis resultados do jogo de loteria.

No mundo comercial, em uma sorveteria que ofereça 50 sabores de sorvete e que disponha de um gerente de marketing criativo, que possui conhecimento de combinatória, é possível fazer uma boa propaganda do negócio: “Em três bolas de sorvete, mais de vinte mil sensações!”. De fato, se calcularmos de quantos modos é possível escolher três bolas de sorvete, permitindo repetição de sabor, chegamos ao surpreendente número de 22.100 combinações entre os sabores, tornando-seclaro qual foi o objetivo do gerente.

Há, portanto, diversos contextos em que nos deparamos com a necessidade (ou interesse) de contar elementos de um conjunto. Normalmente, os exemplos citados há pouco são resolvidos com a utilização de fórmulas ou recorrendo a representações pitorescas que facilitem uma eventual aplicação do princípio multiplicativo. Essas estratégias reforçam um hábito de tratar tais problemas caso a caso e tornam imperceptíveis estruturas matemáticas subjacentes ao processo de contagem.

Para lidar com problemas combinatórios, é interessante determinar um método adequado e, em certa medida, geral. Segundo nossa convicção, isso é possível e consiste da análise da situação-problema em discussão, da proposição de um modelo matemático correspondente a essa situação e da validação da resposta encontrada a partir do processo de resolução gerado pelo modelo matemático. A modelagem torna o processo de contagem mais transparente e aprofunda a compreensão do problema.

Modelos matemáticos

Segundo alguns estudos (Miranda Pinheiro, 2008; Silva Costa, 2013), a abordagem tradicional da combinatória, apesar de muito difundida na comunidade escolar brasileira, é traumática para muitos professores de Matemática e grande parte dos alunos. Entretanto, é importante ressaltar que esse não é um problema de âmbitonacional: apontar uma razão que explique o desolador cenário do ensino de combinatória é uma questão internacional e desafiadora para a qual muitos pesquisadores procuram uma resposta (McFaddin, 2006; Clarckson e Presmeg, 2008).

Neste artigo, conjecturamos que as dificuldades sobre o ensino da combinatória são classificadas quanto à natureza em três categorias: inerentes ao próprio tema, ligadas aos ciclos didáticos viciosos e relativas à formação docente.

Uma característica peculiar da análise combinatória é que ela geralmente é desenvolvida a partir de situações-problema extraídas do dia a dia. Seus problemas têm enunciados simples e não necessitam de prévio conhecimento técnico para serem compreendidos. Um momento de reflexão mostra que resolver um problema de combinatória é o primeiro momento em que alunos (e por que não professores?) são desafiados, secretamente, a fazer algo incomum em sua rotina: modelar matematicamente uma situação observada!

Mas o que é modelagem matemática? Modelar matematicamente consiste em traduzir simbolicamente uma realidade, isto é, descrever uma situação (ou fenômeno) observada usando linguagem matemática. Uma boa discussão sobre esse tema pode ser vista em Biembengut (2009).

É importante ficar claro que os alunos, sem aviso prévio, são apresentados a modelos matemáticos de grande impacto para o mundo ao nosso redor: a lei da gravidade, devida a Isaac Newton, assim como o modelo atômico atual, devido a Rutherford, dentre outros, são exemplos de modelos matemáticos. Sob esse ponto de vista, para eles não é novidade lidar com modelos matemáticos; no entanto, são modelos prontos que não deixam rastros sobre como foram desenvolvidos.

E o que há de complicado em modelar matematicamente? A dificuldade em modelar matematicamente, apriori, poderia ser proveniente apenas da falta de hábito e/ou adequado estímulo a esse fim. Porém este panorama, acreditamos, é mais grave: tal conjuntura está associada a uma total falta de senso acerca da importância, do significado e das implicações de saber associar uma realidade a um modelo matemático. Professores de Matemática, infelizmente, não sabem – ou talvez a minoria deles saiba – o que isso significa!

A escola brasileira, no que diz respeito à Matemática, é refém da automatização de procedimentos, que possui – ninguém duvida – relevante importância no processo de aprendizagem. Todavia, alguma atenção deveria ser despendida na tentativa de, quando conveniente, estabelecer contrastes entre o que é de natureza realista (realidade) e o que é de natureza abstrata (teoria). Questionar, por exemplo, um aluno de Ensino Médio se existe “movimento retilíneo uniforme”. Provavelmente ele não saberá a resposta e tem razão para isso: seu professor nunca chamou sua atenção para o fato de que tal movimento é teórico (idealizado), não sendo possível observá-lo no dia a dia.

Há ainda outro fator que pode desencadear mais complicações nesse cenário. Ao tratar os assuntos da Matemática da escola brasileira de nível médio, adota-se a estratégia de praxe, que é apresentar conceitos, axiomas, teoremas, enfim, o arcabouço teórico relativo ao assunto em foco. Finalmente, quando possível, são propostasaplicações em contextos interdisciplinares.

As características intrínsecas da combinatória permitem dizer que, em vez de fórmulas a serem decoradas e aplicadas a alguns tipos de problemas, os alunos devem ser encorajados a definir um modelo matemático representativo da realidade de interesse, que lhes permita a partir daí proceder com os necessários cálculos. A oferta de algumas estruturas matemáticas que representem certas realidades estudadas servirá de referência para os agentes envolvidos nesse contexto, que gradativamente ganharão segurança para modelar e resolver os diversos problemas de contagem que venham a enfrentar.

A modelagem matemática deve ser feita identificando, com linguagem matemática adequada, o objeto matemático que será usado para representar a situação observada. Esse caminho pode parecer complicado num primeiro momento, mas precisa ser percorrido. Ademais, a capacidade de representar matematicamente é uma etapa inicial necessária para o efetivo entendimento do problema a ser resolvido. A supressão dessa etapa ou a dificuldade de identificá-la podem ser elencadas como obstáculos para o aprendizado da combinatória.

Alguns exemplos de modelagem matemática em combinatória

Vamos considerar algumas situações-problema e construir modelos matemáticos correspondentes a elas sem, no entanto, nos preocupar em exibir suas soluções.

Situação-problema (1)

Uma escada possui  degraus. Uma pessoa atinge o último degrau subindo um ou dois degraus por vez. De quantos modos essa pessoa pode chegar ao último degrau?

Devemos perseguir uma representação matemática do problema apresentado. Uma estratégia natural é começar a pensar, concretamente, em algumas possibilidades: subir toda a escada avançando um degrau por vez ou subir toda a escada avançando dois degraus por vez e tentar observar padrões. Um pouco mais de observação mostra que serão necessários, no máximo, vinte movimentos (subindo um degrau por vez) e, no mínimo, dez movimentos (subindo dois degraus por vez). Além disso, há um invariante nesse processo: sempre subir toda a escada. Isto é, em todas as possíveis subidas admissíveis sempre são percorridos vinte degraus. Surge assim uma possível proposta de modelo:

Modelo matemático

Uma sequência  no conjunto é uma subida admissível se a equação

for satisfeita. Naturalmente, há uma restrição para o inteiro positivo : . Neste contexto, cada  representa o número de degraus subidos no -ésimo movimento feito por quem sobe a escada (isto é, sobe-se um degrau se e sobem-se dois degraus se ). O inteiro positivo  representa o número total de movimentos utilizados até que se atinja o último degrau da escada. Observa-se que o valor de  pode mudar de acordo com a estratégia de subida adotada.

Apresentamos alguns exemplos de sequências admissíveis para uma escada com  degraus:. Em contrapartida, as sequências ,  e  não são admissíveis. Assim, a formulação matemática (e genérica) correspondente ao modelo proposto para o problema é:

Problema matemático

Dados  e , determinar a quantidade de elementos do conjunto

.

A situação-problema (1) foi escolhida propositadamente, por não se enquadrar em categoria alguma no rol de fórmulas prontas vistas nos livros de combinatória em geral. Vejamos, agora, uma situação mais usual.

Situação-problema (2)

Um painel (intacto) deve ter cada uma de suas faixas pintadas com as cores azul, branca e vermelha. Quantas configurações distintas são possíveis se  faixas devem ser azuis,  devem ser brancas e devem ser vermelhas?

Novamente iniciamos o processo pela observação do problema proposto com o intuito de identificar padrões e estruturas que permitam sua descrição em linguagem matemática. Aqui é preciso decidir a (única) cor que cada uma das dez faixas receberá, e isso sugere estabelecer uma relação funcional que associa uma faixa a uma cor. Além disso, é preciso considerar as condições de fronteira exigidas no problema: três faixas devem ser azuis; quatro devem ser brancas e três devem ser vermelhas. Na relação funcional a ser definida, essas exigências se traduzem em: a imagem inversa da cor azul possua três elementos; a imagem inversa da cor branca, quatro; e a imagem inversa da cor vermelha, três elementos. Assim, é possível propor o seguinte modelo:

Modelo matemático

Uma função  é uma configuração admissível se e  ( denota o número de elementos do conjunto ).

Nesse contexto, o conjunto  representa cada uma das faixas do painel e o conjunto  representa as cores disponíveis. O valor “” designa a cor da -ésima faixa.

Assim, a formulação matemática correspondente ao modelo proposto para o problema é:

Problema matemático

Determinar quantas funções  satisfazem as condições

 e .

Ressaltamos que um modelo não é necessariamente único e que não há uma regra fechada para sua escolha. Isso significa que uma situação-problema pode ser interpretada sob diferentes pontos de vista.

Considerações finais

Sob a perspectiva apresentada, trocamos um problema apresentado num contexto real por um problema puramente teórico. Mas qual a vantagem disto?

Há, pelo menos, duas vantagens imediatas. A primeira delas está ligada à em geral dificultosa classificação do problema combinatório: arranjo, permutação, combinação ou partição? Simplesmente, segundo a ótica apresentada, essa questão não é mais preponderante!

A segunda vantagem desta proposta é que ela permite, com certa facilidade, estabelecer que problemas aparentemente distintos obedecem a um mesmo modelo matemático, sendo, portanto, estruturalmente equivalentes. Há, ainda, vantagens ligadas ao processo de resolução gerado pelo modelo proposto, mas isso requer a formalização de alguns elementos teóricos, os quais não são objeto de nossa presente discussão.

O caminho alternativo para o ensino de combinatória aqui apresentado tem sido objeto de estudo de alguns alunos (professores atuantes no Ensino Médio) do curso de mestrado profissionalizante em Matemática (Profmat) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estudos comparativos entre a abordagem tradicional e a abordagem proposta estão sendo desenvolvidos e os resultados parciais são bastante promissores.

Referências

BIEMBENGUT, M. S. 30 anos de modelagem matemática na educação brasileira: das propostas primeiras às propostas atuais. Alexandria Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, v.2, nº 2, p.732, jul. 2009.

CAMERON, P. Combinatorics: topics, techniques, algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

CLARCKSON, P.; PRESMEG, N. Critical Issues in Mathematics Education. Spring, 2008.

McFADDIN, R. J. Combinatorics for the third grade classroom. 2006. 85f. Dissertação. ETSU. Tennessee.

MIRANDA PINHEIRO, C. A. O ensino de análise combinatória a partir de situações-problema. 2008. 164f. Dissertação. Universidade do Estado do Pará. Pará.

SILVA COSTA, E. R. Uma proposta de ensino de análise combinatória para alunos do Ensino Médio. 2013. 107f. Dissertação. Universidade Federal de Lavras. Minas Gerais.

Publicado em 07 de março de 2017

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.