Cidadania como devir: Estado x escola x criança

Karla J. R. de Mendonça

Pedagoga (PUC-PR), mestranda no Programa de Pós-Graduação de Sociologia (UFPB)

Pensando na escola e na educação formal como contexto institucional com inúmeras atribuições, esperanças e reflexos frente à sociedade brasileira, podemos problematizar e relacionar à frase de Paulo Freire (2000, p. 67): “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Ainda dentro dessa mesma reflexão, Marshall (1967, p. 73) ressalta que “a educação das crianças está diretamente relacionada à cidadania... A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil”.

A educação pública é um direito social garantido e oferecido gratuitamente pelo Estado desde a Constituição de 1988, e nela recai o reconhecimento e o desenvolvimento dos outros direitos: políticos e civis, partindo da visão de que sua função é a formação de sujeitos e futuros cidadãos capazes de exercer seu papel e conviver civilizadamente em sociedade, premissas encontradas nos escritos de Freire (1967) e Marshall (1967).

Historicamente, a educação formal a partir da infância vem com o intuito de preparar futuros adultos para conviver em sociedade, como afirma Marshall (1967, p. 73): “o direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação é moldar o adulto em perspectiva (...), direito de o cidadão adulto ter sido educado”.

A ideia de infância como fase de vida que deveria ser orientada para a construção de um sujeito produtivo para a sociedade vem desde a colonização, com a educação missionária e catequista dos jesuítas, desenrolando-se em um processo que varia de acordo com as concepções dominantes de cada época, como afirma Carvalho (2002) em relação à educação primária:

Após a expulsão desses religiosos em 1759, o governo dela se encarregou, mas de maneira completamente inadequada. Não há dados sobre alfabetização ao final do período colonial. Mas se verificarmos que em 1872, meio século após a independência, apenas 16% da população era alfabetizada, poderemos ter uma ideia da situação àquela época. É claro que não se poderia esperar dos senhores qualquer iniciativa a favor da educação de seus escravos ou de seus dependentes. Não era do interesse da administração colonial, ou dos senhores de escravos, difundir essa arma cívica (2002, p. 23).

A educação pode ainda ser reconhecida como arma cívica pelo Estado nos dias de hoje? Até que ponto os direitos civis, sociais e políticos são respeitados e legitimados desde a fase de vida infantil em nossa sociedade, considerando essas crianças não apenas como futuros adultos produtivos, mas também como sujeitos sociais no presente?

Em grande parte da nossa história, boa parcela da população não teve os direitos sociais, políticos e civis efetivados; o sentido de cidadania também foi construído baseado em desigualdades. As desigualdades em relação às oportunidades de trabalho, saúde, propriedade e educação são apenas algumas vertentes que perpassam as camadas menos favorecidas econômica e culturalmente, levando assim a situações de exclusão.

A escola, como instituição que une em seu espaço toda essa diversidade, é organizada pelo Estado para desenvolver esse senso de identidade e unidade nacional, apresentando uma política universal de Escola para Todos com o esforço de garantir a igualdade de direitos a todos os cidadãos, como um fundamento que atribui à educação o sentido de ser uma arma para corrigir as injustiças sociais.

O relatório Educação para todos no Brasil 2000-2015 (2014) foi construído a partir de um encontro em Dakar em que 164 países assumiram o compromisso de perseguir seis metas de educação para todos até 2015; tais metas são relacionadas ao cuidado e à educação na primeira infância; educação primária universal; habilidades de jovens e adultos; alfabetização de adultos; paridade e igualdade de gênero; e qualidade da educação. Ali ressalta-se a preocupação com o adentramento da população menos favorecidas economicamente na escola, com crianças em situação de risco, com a garantia de excelência para todos, de forma a dar a todos resultados reconhecidos e mensuráveis, especialmente na alfabetização, matemática e habilidades essenciais à vida (MEC, 2014).

O que chama a atenção nesta citação é a marca da relação entre o mercado e a educação, determinando a união entre o público e o privado para a garantia desses direitos e o progresso econômico da sociedade. De acordo com Abranches (1987, p. 13), “as políticas sociais envolvem necessariamente intervenções independentes do mercado (...) se for privatizar-se, deslocando o foco de seus objetivos e comprometendo-se o qualitativo de forma específica: o ser voltada para o social”.

A relação apontada no relatório remete à nossa política neoliberal, em que investir em políticas sociais por parte apenas do Estado é desfavorável para seu desenvolvimento. É uma política de caráter globalizado, com medidas políticas de ajustes conjunturais e estruturais não só na esfera econômica, mas também na social, considerando propostas de reforma do Estado aliadas a programas de alívio da pobreza (Soares, 2001).

O que se constrói simbólica e estruturalmente na sociedade é que o bem-estar social pertence apenas ao âmbito do privado, pois qualidade só é oferecida àquele que pode pagar escola, saúde, habitação, cultura etc., enquanto a população que se encontra em condição de pobreza continua dependendo de um sistema público deficitário; essa condição é ingenuamente apreendida pelas pessoas das classes menos favorecidas economicamente e reproduzida por elas como uma desvantagem por terem nascido pobres.

Nascer em um grupo identificado como pobre, marginal e sem educação, com uma cultura inferior – nos termos de Jessé Souza, (2009) na ralé –, já é determinante do insucesso desde o nascimento?

Como Estado e mercado necessitam de “conhecimento útil” para se reproduzir [...], apenas os indivíduos, ou melhor, as classes sociais que têm acesso e possibilidade de “incorporar” esse conhecimento útil é que efetivamente possuem alguma chance de acesso a todos os bens materiais e ideias monopolizados por Estado e mercado (Souza, 2009, p. 120).

Dentro dessa ótica, nascer nesse mundo invisibilizado e renegado quanto à sua cultura e formas de existência, pode influenciar diferentes escolhas e processos sociais na vida dos indivíduos, fadados ao fracasso social ou a escolhas consideradas menos favorecidas, com menos status em relação às classes hegemônicas; essa condição é relacionada por essas classes favorecidas a uma responsabilidade individual, pois o caminho para um futuro promissor é escolha de cada um, é o que Souza (2009) reflete como “ideologia da meritocracia”.

Os recém-chegados à vida social dependem das políticas relacionadas principalmente a educação, saúde e assistência social. São protegidos e seus direitos regulamentados a partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), porém as crianças em situação de pobreza, segundo muitas pesquisas, têm esse direito violado ou não conectado a todas as situações de pobreza e desigualdades em que essas crianças se encontram; passar a existir em sociedade como indivíduo de direitos é uma luta constante, as crianças e suas famílias encontram-se em situação de subcidadania (Souza, 2009).

O acesso ao “capital cultural” referido por Jessé Souza (2009) é para as classes mais favorecidas economicamente, ao mencionar as heranças de valores familiares e escolares como elemento diferenciador entre as classes. Essa é uma das predeterminações que a criança atravessa durante o período da infância, em que aprende conceitos e modos de vida que se mostram distintos entre as situações econômicas da sociedade.

O significado de estudo, trabalho e cultura são diversos, de acordo com o contexto social durante a infância; até mesmo os sentidos de proteção, cuidado e valorização pessoal são característicos do grupo e de como ele se identifica socialmente, como afirma Jessé Souza (2009, p. 18): “Afinal, o processo de competição social não começa na escola, como pensa o economicismo, mas já está, em grande parte, pré-decidido na socialização familiar pré-escolar produzida por ‘culturas de classe’ distintas”.

A infância como construto cultural é um período de aprendizagens que vão desde os conhecimentos sobre o mundo ao redor, o senso de moral e valores reconhecidos em seu contexto social até o desenvolvimento cognitivo e do corpo físico em sua totalidade; em uma sociedade capitalista, a criança é vista como um projeto para o futuro, para o mercado de trabalho; tendo toda uma vida pela frente, deve-se protegê-la para a manutenção de uma sociedade ativa no futuro; a criança é percebida como potencial trabalhador eficaz, com foco no progresso do país.       

O Programa Bolsa Família, desde sua implementação em 2003, modificou consideravelmente as estruturas familiares, apesar de não ser caracterizado como direito, mas um benefício dentro de uma política voltada ao combate da situação de pobreza e extrema pobreza; apesar de contribuir com a permanência da criança na escola, esse adentramento e frequência no ambiente educacional foi realizado de forma desintegrada com a ampliação do número de vagas, de docentes, de materiais físicos e humanos para que essas crianças fossem recebidas com eficácia pelas escolas e todo o seu contexto.

A escola, “pensada abstratamente e fora de seu contexto, [é transformada] em remédio para todos os males de nossa desigualdade” (Souza, 2009, p. 17). Nesse contexto, a cidadania, sendo construção de uma identidade social, de fazer parte de uma nação e assim possuir direitos e deveres, partindo do pressuposto de que ela começa a ser garantida e moldada também dentro dos espaços escolares com o acesso à educação formal, encontra-se de forma “regulada” para as classes populares.

Essa seleção, que se demonstra excludente e desigual, configura que “um sistema escolar pretensamente universal sustenta a mitologia do mérito, escondendo as profundas diferenças de oportunidades que existem desde a creche” (Cattani; Kielling, 2007, p. 177). Acaba que as hierarquias educacionais são também reflexos das hierarquias sociais; mesmo oferecendo escola para todos, é um sistema em que escola pública de baixa qualidade são para as pobres, escola e universidade pública de qualidade são adentradas pelas classes média e rica.

É o que Freitas (2009, p. 301) descreve como “a crueldade da má-fé institucional”, pois o Estado se posiciona para “garantir a permanência da ralé na escola, sem isso significar, contudo, sua inclusão efetiva no mundo escolar, pois sua condição social e a própria instituição impedem a construção de uma relação afetiva positiva com o conhecimento”.

Amparar as famílias e atender a suas necessidades em seus diversos contextos (educacionais, sociais, culturais, habitacionais, de saúde e lazer) tendo a situação da pobreza como multidimensional é proporcionar às crianças um ambiente afetivo, protegido e estimulador para que elas vivenciem todas as linguagens expressadas e aprendidas nas relações entre os grupos e espaços em que se socializam, durante esse período cultural em que se encontram na infância.

Segundo os autores da Sociologia anteriormente citados, a educação formal para a sociedade se faz necessária para que o futuro adulto cidadão com identidade moldada e remoldada constantemente dentro de um espírito de nação atue de forma crítica na sociedade em relação à cobrança e à prática de seus direitos civis, sociais e políticos, apesar de se deparar com um Estado coercitivo, tendo concebido o máximo de conhecimentos no decorrer da vida.

Volta-se à discussão do fato de que para as pessoas se reconhecerem como cidadãs de direitos e deveres e que possam conviver civilizadamente em sociedade necessitam passar pela educação formal, e esta é reconhecida pelo Estado como um direito de sua responsabilidade a ser efetivado e pela família cumprido o dever; para isso deve proporcionar espaços, materiais e profissionais que efetuem essa tarefa.

A socialização iniciada ao nascer, com a educação familiar, com o convívio com vizinhos, parentes, outras crianças, animais, natureza e objetos, dentro da escola e em outros contextos, faz parte da identidade de cada sociedade que se organiza, porém nos centros urbanos a escola é o espaço presente durante toda a vida do indivíduo, principalmente na infância, pois “lugar de criança é na escola”. Por isso bebês na Educação Infantil não têm só os pais e avós como referência, mas também as professoras e os outros bebês que se relacionam dentro de um pequeno espaço, que já se chama escola, com sala de aula, sala de dormir, sala de assistir a televisão, sala ou móveis específicos para as refeições e o parquinho como espaço externo, quando existe.

Garantir às crianças seus direitos desde o nascimento, como sujeitos e protagonistas das suas aprendizagens e atuação na sociedade, não é só protegê-las das situações de risco e da violência, é mais ainda reconhecê-las como cidadãs com direito à liberdade de se expressar, ler e estar no mundo de acordo com suas especificidades e particularidades, de afirmar sua diversidade étnica, religiosa e de gênero, de viver sua ludicidade em um ambiente social seguro integrador.

Uma escola estimuladora em todas as áreas científicas e culturais tende a ser um espaço onde todos esses direitos são refletidos e experenciados pelas crianças e suas famílias; não sendo um aparelho reprodutor das desigualdades da sociedade e das premissas economicistas do Estado, apresentaria um contexto realmente socializador e educacional na categoria formal ou não formal, atendendo a todas as diferenças e diversidades, combatendo as desigualdades simbólicas ou econômicas de classe.

Referências

ALMEIDA, M. E. Proteção social e desigualdade no Brasil. Cadernos de Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 17, nº 60, 2012.

CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil, o longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

CATTANI, A.; KIELLING, F. A escolarização das classes abastadas. Sociologias, Porto Alegre, ano 9, nº 18, p. 170-187, 2007.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Apresentação de Ana Maria Araújo Freire. Carta-prefácio de Balduino A. Andreola. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

FREITAS, L. A instituição do fracasso – a educação da ralé. In: SOUZA, J. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. Cap. 12, p. 281-304.

REGO, W. L. Aspectos teóricos das políticas de cidadania: uma aproximação ao Bolsa Família. Lua Nova, São Paulo, v. 73, p. 147-185, 2008.

MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MEC. Orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Organização de Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica, 2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/ensifund9anobasefinal.pdf. Acesso em 1 jul. 2016.

SPOZZATI, A. Modelo brasileiro de proteção social não contributiva. Paper formulado para a ENAP - Escola Nacional de Administração Pública. 2009.

SOARES, L. T. Os custos sociais do ajuste neoliberal no Brasil. Buenos Aires, CLACSO, 2001.

SOUZA, J. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

TAVORALLO, S. Quando discursos e oportunidades políticas se encontram: para repensar a sociologia política da cidadania moderna. Novos Estudos Cebrap, nº 81, 2008.

Publicado em 02 de maio de 2017

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