Práticas educacionais voltadas ao ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica
Sáran Vasque de Oliveira
Doutoranda em Letras Vernáculas, Literaturas Portuguesa e Africanas, bolsista Capes/UFRJ
Introdução
De 2013 a 2015, sob orientação da professora Dra. Tania Maria Nunes de Lima Camara, fui integrante, como aluna de graduação, do projeto intitulado “Práticas sociais da expressão linguística e práticas escolares: leitura, produção textual e ensino”, vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) do curso de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Fundamentado na leitura e análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental II, bem como na discussão de um corpus crítico seleto voltado ao ensino de Língua Portuguesa, o plano de trabalho do qual fiz parte tinha como escopo examinar a abordagem conferida a poemas em manuais didáticos adotados em escolas públicas do Rio de Janeiro, bem como engendrar práticas pedagógicas que viessem a contribuir para uma formação discente eficaz no que tange à aprendizagem da língua materna.
Desse modo, depois de uma análise investigativa de alguns manuais, constatamos que, inversamente ao que é prescrito nos Parâmetros Curriculares Nacionais, muitos livros escolares didáticos não oferecem tratamento pedagógico que contemple a poesia em seus aspectos intrínsecos, assim como não proporcionam uma abordagem instrutiva de modo a colaborar para uma formação de alunos-leitores que sejam qualificados a “reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias” (Brasil, 1998, p. 27).
Assim, examinando a abordagem conferida aos poemas em alguns manuais de Língua Portuguesa, verificamos que, além da inexpressividade quantitativa do gênero poema nesses manuais, esses suportes didáticos pouco ou quase nada contribuem para o desenvolvimento da capacidade leitora, do gosto estético e do aperfeiçoamento da língua materna pelos discentes da Educação Básica. Ademais, verificamos que poucos são os poetas que aparecem com certa regularidade nesses livros, uma vez que delimitados escritores são “cativos no panteão dos autores sempre visitados” (Pereira, 2004, p. 177), o que acaba por limitar o entendimento da amplitude do fazer literário e da poesia de língua materna, como comentam Soares e Vieira:
Uma seleção limitada de autores e obras resulta em uma escolarização inadequada, sobretudo porque se forma o conceito de que leitura são certos autores e certos textos, a tal ponto que se pode vir a considerar como uma deficiência da escolarização o desconhecimento, pela criança, daqueles autores e obras que a escola privilegia (...) quando talvez o que se devesse pretender seria não o conhecimento de certos autores e obras, mas a compreensão do literário e o gosto pela leitura literária (Soares, 1999 apud Véras et al., 2009, s/p).
Os nomes mais encontrados nesses manuais são: Manuel Bandeira, Mário Quintana, Mário de Andrade, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, o que é abordado desses autores são aqueles poemas mais simples e que apresentam maior facilidade de interpretação. Raramente são questionados aspectos mais ousados e profundos de autoria desses poetas (Vieira, 2015, p. 79).
No entanto, para além da insignificante assiduidade de poemas e de poetas nos guias escolares, o que acreditamos, de fato, comprometer a aprendizagem eficiente de todos os aspectos relativos à competência linguística, relaciona-se maximamente às atividades avaliativas sugeridas por esses manuais. À vista dessas considerações, concordamos com Alves (2003) quando afirma que a apreciação do poema se resume, basicamente, a três critérios qualitativos: interpretação textual, inspiração para criação poética e, com maior incidência, estudos gramaticais.
O problema da escolha dos poemas, no plano geral das obras, está ligado aos núcleos temáticos, à possibilidade de maior exploração de aspectos gramaticais, interpretação textual e sugestões de criação. Portanto, a seleção dos poemas muitas vezes obedece a critérios que passam longe do valor estético. O ludismo sonoro, por exemplo, um atrativo para leitores mais jovens (e para qualquer leitor), quase nunca persiste nas escolhas (Alves, 2003, s/p).
Nesse aspecto, julgamos que exercícios que se restringem apenas à contemplação da forma do gênero e não ao valor estético do poema não proporcionam quaisquer atrativos e não despertam no aluno a “paixão” ou a fruição decorrentes da interação com o texto literário, assim como não ensejam o entendimento de que é possível, por meio da apreciação de recursos e de especificidades linguísticas inerentes ao poema, aprimorar a capacidade idiomática. Em razão dessas reflexões, julgamos ser relevante e pertinente a concepção de novos procedimentos metodológicos no que tange ao ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental II.
Metodologia
O método utilizado em nosso estudo consistiu, num primeiro momento, em analisar minuciosamente alguns manuais didáticos de Língua Portuguesa adotados em escolas públicas do Rio de Janeiro, tendo em vista a abordagem do poema nesses manuais escolares destinados ao segundo ciclo do Ensino Fundamental. Para tanto, foram investigadas algumas obras principalmente sob a ótica dos exercícios sugeridos para o gênero em questão e, em um segundo momento, depois de apurar que os manuais, em certo sentido, propõem atividades que conjecturamos ineficientes para o desenvolvimento da língua, elaborar e sugerir propostas metodológicas de modo a aproximar o educando do texto literário, mormente do gênero poema, com pretensões de incitar nessa coletividade escolar específica “o gosto estético, a sensibilidade” (Silva, 2014, s/p) leitora e o aprimoramento linguístico, uma vez que entendemos que o contato com o poema “pode contribuir de forma satisfatória para o desenvolvimento da imaginação, da sensibilidade, da criatividade e das potencialidades linguísticas do aluno” (Sousa, 2013, p. 36).
De modo a reiterar o que afirmamos, examinamos em algumas obras as atividades propostas para o poema Cidadezinha qualquer, de Carlos Drummond de Andrade. Feito isso, ratificamos que os exercícios contemplam muito mais os aspectos formais e gramaticais do poema, já que as análises se limitam à versificação, à formação de palavras e à fonética, por exemplo.
Ainda que a discussão desses conceitos seja relevante para o estudo escolar, acreditamos que o exame do poema não pode se restringir a tais aspectos. Nesse sentido, de modo a exemplificar o que acreditamos ser uma abordagem produtiva desse gênero, transcrevemos a poesia abaixo para, em seguida, sugerir algumas práticas metodológicas que sustentamos ser mais significativas.
Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
(Carlos Drummond de Andrade, 2012, p. 57).
Refletindo, então, sobre quais seriam as atividades pertinentes ao aperfeiçoamento da língua materna e à percepção de que o texto poético é, em boa medida, resultado das escolhas linguísticas do escritor, elaboramos algumas propostas de ensino: ler em voz alta o poema, discutir os sentidos que se podem extrair dessa construção literária, ressaltar a posposição do termo “qualquer” no título do poema, destacar a dimensão da pontuação divergente em cada estrofe e comentar a monotonia do lugar, sublinhada, por exemplo, pela repetição sintática exposta na segunda estrofe.
Assim, acreditamos que tais práticas sugestionadas, que muito se diferem de exemplos extraídos de livros didáticos, podem contribuir para um estudo atento às construções linguísticas do poema e, igualmente, colaborar para a construção de significados do texto literário, resultando, portanto, em um ensino-aprendizagem proficiente, como também entende Pereira.
Proponho uma desmobilização geral quantos às regras instituídas e conceitos tradicionais, colocando no lugar o “papo” sobre o texto, a “conversa despojada”, a “troca de sensações deflagradas pela leitura”, o que levará ao conhecimento, ao desapego de crenças e preconceitos, não de modo superficial e aleatório, mas como resultado da intimidade pouco a pouco estabelecida (Pereira, 2004, p. 177).
Objetivos pretendidos
Quanto ao objetivo geral, podemos dizer que esse projeto de pesquisa pretendeu elaborar estratégias de ensino de Língua Portuguesa que pudessem colaborar para a formação de leitores capazes de compreender, por meio de estudos de poemas, que leitura, literatura e língua fazem parte de um todo significativo e, portanto, devem ser examinados em uma perspectiva indissociável. Quanto ao objetivo mais específico, apontamos a relevância e a necessidade de propor novas acepções aos meios de ensino de língua materna, sobretudo no que dizem respeito à aprendizagem da língua vinculada ao estudo do poema, uma vez que, como dito, entendemos que o estudo desse gênero perscrutando apenas os aspectos gramaticais não colabora para o aperfeiçoamento do vernáculo português e, igualmente, não favorece a formação de leitores habilitados a depreender as sutilezas, as singularidades e os sentidos inerentes às construções linguístico-literárias, como recomendam os PCN.
Considerações finais
A utilização de poemas em exemplares escolares apenas como pretexto para diversos estudos gramaticais tem sido preocupação frequente de diversos profissionais das letras. Isso evidencia a necessidade de complementar os suportes didáticos oferecidos pelas instituições de ensino com atividades que possam promover a formação de leitores habilitados a reconhecer a amplitude e os pormenores das diversas criações literárias. Entendemos, então, serem fundamentais propostas educativas engendradas em uma perspectiva sensibilizadora, de maneira que os alunos venham a perceber o poema também como resultado de operações linguísticas, capaz de deflagrar, além da fruição, o senso crítico-reflexivo, uma vez que “o próprio poema é admirável (...) porque realiza magistralmente aquilo que prescreve. Não é no que diz, mas em como diz o que diz que reside sua poesia” (Cicero, 2012, p. 64).
Nessa ótica, ao refletir sobre a formação linguística discente, concordamos com Camara (2005, s/p) quando afirma que “a linguagem – especificamente a língua portuguesa – deve servir de ferramenta no desenvolvimento da percepção, da leitura da realidade circundante”; entendemos que a linguagem deve ser compreendida como um instrumento capaz de apreender o real e de comunicar. Daí a relevância de nosso projeto que objetivou, sobretudo, pensar em novos modelos de ensino de língua que integrassem tais reflexões.
Referências
ALVES, José Hélder Pinheiro. Abordagem do poema:roteiro de um desencontro. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora. O livro didático de Língua Portuguesa: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC, 1998.
CAMARA, Tania Maria Nunes de Lima. Gêneros textuais, pontuação e ensino. IX Congresso Nacional de Linguística e Filologia. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/9/09.htm. Acesso em: 19 fev. 2018.
CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. O texto literário na escola: perspectivas de abordagem. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar; SIMÕES, Darcilia (Orgs.). Língua e cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Europa, 2004.
SILVA, Jacilda Carmen da. Poesia para alfabetizar. 2014. Disponível em: http://www5.seduc.mt.gov.br/Paginas/Poesia-para-alfabetizar.aspx. Acesso em: 10 fev. 2018.
SOUSA, Patrícia de Farias. Poesia, ensino e formação de professores: vivências com vozes da lírica feminina. Dissertação (mestrado em Linguagem e Ensino). Universidade Federal de Campina Grande. Campina Grande, 2013.
VÉRAS, Ana Flávia Teixeira et al. O papel da poesia na formação de leitores. 16º Congresso de Leitura do Brasil. São Paulo, 2009. Disponível em: http://alb.com.br/arquivomorto/edicoes_anteriores/anais16/sem08pdf/sm08ss01_03.pdf. Acesso em: 09 fev. 2018.
VIEIRA, Daniel Oliveira. A abordagem da poesia nos livros didáticos de português. Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, 2015. Disponível em: http://revista.fametro.com.br/index.php/RDA/article/view/76. Acesso em: 19 fev. 2018.
Publicado em 05 de junho de 2018
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