A interdisciplinaridade ao alcance de todos

Silvia Helena Mousinho

Coordenadora de Estágio Supervisionado dos cursos de licenciatura em Física e Matemática (Cederj/UAB) e Pedagógicas (UERJ), mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH-UERJ), graduada em Física (UFRJ) e especialista em Educação de Jovens e Adultos (PUC-Rio)

É preciso diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, até que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.
Paulo Freire

Introdução

Mudanças significativas nos campos do conhecimento têm apontado novos paradigmas que, nos dias de hoje, fornecem perspectivas transformadoras para pensarmos o ser humano nas suas mais diversas dimensões. Sob essa visão integradora, um conjunto de princípios, valores e parâmetros reconfigura novos referenciais, segundo os quais o ser humano é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico (Morin, 2003). Mas essa unidade complexa da natureza do homem é desintegrada na educação por meio das disciplinas, instituídas no século XIX com a formação das universidades modernas.

No início da década de 1970, a interdisciplinaridade surgiu como uma possibilidade de romper os limites inerentes à divisão em disciplinas, propondo diversos níveis de integração do conhecimento. A cada dia, mais educadores têm sido confrontados com a necessidade de ampliar sua prática educativa experimentando novas formas de organizar os conteúdos e os currículos, integrando diferentes áreas do saber. Qual professor, em algum momento, não se deparou com a precariedade de conteúdos curriculares e planos de curso preestabelecidos em sua vida cotidiana?

Segundo Piaget (1973), a interdisciplinaridade é uma forma de pensar.>O enfoque epistemológico de Piaget (1973) propunha a interdisciplinaridade como a possibilidade de intercâmbio mútuo e a integração recíproca entre várias ciências. Frigotto (2008) afirma que a questão da interdisciplinaridade se impõe como necessidade e como problema fundamentalmente no plano material histórico-cultural e epistemológico. Jantisch propõe “a interdisciplinaridade como meio de autorrenovação e como forma de cooperação e coordenação crescente entre as disciplinas” (apud Fazenda, 2011, p. 38). Como observa Gusdorf (1976, p. 26), "a exigência interdisciplinar impõe a cada especialista que transcenda sua própria especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para colher as contribuições das outras disciplinas". Japiassú (1976, p. 74) considera que “a interdisciplinaridade se caracteriza pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração de um projeto de pesquisa”.

As visões desses autores, dentre as de muitos outros, evidenciam e são indicativas de uma mudança de paradigmas. Desde que a interdisciplinaridade aparece como preocupação humanista, além da preocupação com as ciências, todas as correntes de pensamento se ocuparam com essa questão (Gadotti, 1999), o que nos leva a crer que não podemos conter as manifestações interdisciplinares, não podemos enclausurá-las, enfim, não podemos ignorá-las e muito menos discipliná-las.

Formando/informando o educando: a arte da (trans)formação

A educação formativa e emancipatória rompe as fronteiras demarcadas pela disciplinarização. Uma aula de qualquer disciplina pode e deve ter abertura para tomar qualquer direção, atravessando diferentes campos de conhecimento sem identificação com apenas um deles. Essa interdependência leva à imprevisibilidade que desmitifica a obrigatoriedade de seguir apenas por caminhos predefinidos. É no espaço sagrado de nossa sala de aula que enveredamos magicamente por todos os lugares imagináveis e inimagináveis que a mente humana pode alcançar.

As transformações que buscamos na educação visam novos modos de entender e compreender a realidade, o que nos confronta com questionamentos e o encaminhamento em direção à ruptura dos modelos vigentes, que já se mostraram pouco eficazes e inviáveis para lidar com as questões do mundo atual; que “transbordam conteúdos informativos em prejuízo dos formativos e fazem com que o estudante saia da graduação com "conhecimentos" já desatualizados, insuficientes para uma ação interativa e responsável na sociedade como profissional ou cidadão” (Fazenda, 2011).

Promover “a integração e a articulação dos conhecimentos em um processo permanente de interdisciplinaridade e contextualização” (Brasil, 1996), além de respaldar todas as áreas de conhecimento, é imprescindível para uma educação que valorize as sensibilidades pessoais e os princípios básicos de convívio humano em sociedade.

As contribuições de educadores, filósofos e pensadores há aproximadamente meio século atestam que a interdisciplinaridade surge como parte da evolução histórica do desenvolvimento do conhecimento. Em um colóquio ocorrido na Bélgica, em Louvain, em 1970, “a necessidade da interdisciplinaridade foi tida como incontestável” (Fazenda, 2002, p. 29).

Ao longo da história, podemos evidenciar a influência do modelo científico na educação e perceber a existência de um diálogo interativo entre as teorias de aprendizagem e as teorias do conhecimento. A mecânica clássica e o procedimento analítico, oriundos do modelo newtoniano-cartesiano, tiveram seu campo de validade nos séculos XVIII e XIX. As concepções de uma nova Física despontaram no século XX com a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica. Novas percepções da realidade contribuíram para que filósofos, cientistas e pesquisadores de vários campos apontassem a premência de uma reforma paradigmática. Quando Heinsenberg enunciou o Princípio da Incerteza, desafiando um dos pilares da Física clássica ao considerar a existência de uma relação indissociável entre sujeito, objeto e processo de observação, isso significou, sem dúvida, como assinala Moraes (1996), uma colaboração essencial para o resgate do ser humano, com base em uma visão da totalidade: aquele ser que aprende, que é atuante na sua realidade, constrói o conhecimento não apenas usando o seu lado racional, mas também utilizando todo o seu potencial criativo, o talento, a intuição, o sentimento, as sensações e as emoções.

Hoje, na segunda década do século XXI, talvez caiba uma pergunta: qual ciência não é humana?

A interdisciplinaridade pretende superar a visão fragmentada e especializada em direção à compreensão da interdependência e da complexidade dos fenômenos da natureza e da vida. “A real interdisciplinaridade é antes uma questão de atitude, supõe uma postura única diante dos fatos a serem analisados, mas não significa que pretenda impor-se, desprezando suas particularidades” (Fazenda, 2011, p. 59). Fazenda afirma ainda que a interdisciplinaridade “não é uma categoria de conhecimento, mas sim de ação” (Fazenda, 2008, p. 28), ou seja, por isso é que podemos nos referir à interdisciplinaridade como nova atitude diante do ato de conhecer.

De fato, não se pode negar as contribuições e o desenvolvimento que as disciplinas trouxeram e continuam a trazer para as ciências e para a humanidade, com as especializações e a divisão do trabalho. Mas é importante reconhecer que, ao longo das últimas décadas, os complexos de inter-multi-trans-disciplinaridade realizaram e desempenharam um fecundo papel na história das ciências (Morin, 2002), rompendo o isolamento entre as disciplinas. Esses prefixos são a nossa referência para o entendimento primordial de que estamos diante de novos princípios organizadores do conhecimento. É preciso encarar a necessidade de rever o papel da Universidade, na formação dos futuros professores, considerando que

o retalhamento das disciplinas torna impossível apreender “o que é tecido junto”, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo. Portanto, o desafio da globalidade é também um desafio de complexidade. Existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade (Morin, 2002, p. 14).

A interdisciplinaridade acontece da necessidade sentida pelos professores e alunos de explicar, compreender, intervir, mudar, prever algo que desafia uma disciplina isolada e atrai a atenção de mais de um olhar, talvez vários. Ou seja,

o que se pretende na interdisciplinaridade não é anular a contribuição de cada ciência em particular, mas apenas uma atitude que venha a impedir que se estabeleça a supremacia de determinada ciência em detrimento de outros aportes igualmente importantes (Fazenda, 2011, p. 59).

Interdisciplinaridade e contextualização: uma relação indissociável

Sabemos a importância de desenvolver temas ou abordar questões que promovam a contextualização, possibilitando a organização dos conteúdos de modo a lhes conferir significado ao invés de tratá-los por meio de dados abstratos. Um estudo com projetos promove uma crítica da realidade, pois oferece subsídios para que possamos reconhecer que é necessário incorporar e articular diferentes áreas de conhecimento para compreender as questões do mundo contemporâneo. Isto implica uma educação escolar comprometida com a formação cidadã, em que  a escola tem a responsabilidade não de apenas constituir-se em um espaço de reprodução, mas também em um espaço de transformação. Nesse sentido, a escola é parte integrante da sociedade, em que educadores e educandos estabelecem uma relação precípua rumo à formação cidadã.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o modo como se dá o ensino e a aprendizagem, ou seja, as opções didáticas, a metodologia, a organização do tempo e do espaço configuram a experiência educativa, ensinam valores, atitudes, conceitos e práticas sociais. Por meio deles pode-se favorecer em maior ou menor medida o desenvolvimento da autonomia e o aprendizado da cooperação e da participação social, fundamentais para que os alunos se percebam como cidadãos. Para tal, o currículo ganha abertura e flexibilidade, expressas na aquisição de novos temas de acordo com as realidades sociais locais, contribuindo assim para uma visão contextualizada.

A contribuição da escola, portanto, é desenvolver um projeto de educação comprometida com o desenvolvimento de capacidades que permitam intervir na realidade para transformá-la. Um projeto pedagógico com esse objetivo poderá ser orientado por três grandes diretrizes:
• posicionar-se em relação às questões sociais e interpretar a tarefa educativa como uma intervenção na realidade no momento presente;
• não tratar os valores apenas como conceitos ideais;
• incluir essa perspectiva no ensino dos conteúdos das áreas de conhecimento escolar (Brasil,1998, p. 24).

No universo educacional,todos os elementos que o integram são imprescindíveis para uma educação plena que valorize as sensibilidades pessoais e os princípios básicos de convivência em sociedade. A formação da personalidade de um indivíduo é um processo cotidiano e permanente, e é no ambiente escolar, pelas vivências cotidianas nesse microcosmo, que o aluno incorporará princípios básicos de solidariedade, justiça, tolerância, amor e respeito pelos direitos e deveres. Futuramente, reproduzirá essas posturas na sociedade e no mundo em que vive. Portanto, é fundamental contemplar os currículos com questões relevantes para uma educação que possibilite aos alunos o uso dos conhecimentos escolares em sua vida fora da escola.

Os PCN apontam a importância dos temas transversais nesse sentido, mostrando um conjunto de assuntos que proporcionam a inserção de questões sociais no currículo escolar com a perspectiva de uma prática pedagógica interdisciplinar.

Na prática pedagógica, interdisciplinaridade e transversalidade alimentam-se mutuamente, pois o tratamento das questões trazidas pelos temas transversais expõe as inter-relações entre os objetos de conhecimento, de forma que não é possível fazer um trabalho pautado na transversalidade tomando-se uma perspectiva disciplinar rígida. A transversalidade promove uma compreensão abrangente dos diferentes objetos de conhecimento, bem como a percepção da implicação do sujeito de conhecimento na sua produção, superando a dicotomia entre ambos. Por essa mesma via, a transversalidade abre espaço para a inclusão de saberes extraescolares, possibilitando a referência a sistemas de significado construídos na realidade dos alunos (Brasil, 1998, p. 30).

Para fins ilustrativos: por exemplo, ao desenvolver uma atividade sobre energia não podemos deixar de abranger questões relacionadas ao consumo, ao meio ambiente, à saúde; enfim, é essencial uma abordagem que propicie ao aluno reconhecer a complexidade do tema e a necessidade de recorrer a diversos campos de conhecimento para uma compreensão maior da realidade que o envolve. Embora o conhecimento da área específica possibilite que saibamos calcular o consumo dos aparelhos que possuímos e, assim, contribuir para economizar eletricidade e dinheiro, o estudo da energia não se restringe à sua dimensão física, mas direciona esse conhecimento para que possamos compreender que o aumento do consumo de energia elétrica nas residências tem provocado aumento na construção de usinas hidrelétricas. Que, embora elas não poluam o ar, são responsáveis por desastrosos impactos ambientais por conta da grande quantidade de água a ser utilizada para a sua manutenção. E que a alternativa proposta, de construção de usinas nucleares, pode ser uma ameaça para a vida do homem, como o desastre de Chernobyl,  e devido à dificuldade de armazenamento do lixo radioativo.

Por fim, fica claro que as áreas ou disciplinas específicas e os temas transversais, quando bem articulados, apresentam uma relação fundamentalmente complementar. É de suma importância dizer que, ao trabalhar com temas transversais, estamos contribuindo para a formação cidadã, uma vez que as questões que os norteiam envolvem múltiplas dimensões da vida social: o ambiente, a saúde, o trabalho, o consumo, a cultura, a sexualidade, a ética. Podemos concluir que o objetivo maior dos temas transversais é desenvolver no aluno a capacidade de assumir posturas diante das questões que interferem na vida coletiva, superar a indiferença e intervir de forma responsável, isto é, desenvolver um trabalho educativo que possibilite uma participação social dos alunos (Brasil, 1998).

À guisa de conclusão

Fizemos aqui algumas considerações sobre a interdisciplinaridade no intuito de uma maior compreensão de seu significado e importância; que elas possam ser relevantes para o confronto com as resistências e que elas conduzam sempre a indagações como: qual é a concepção dos educadores sobre a interdisciplinaridade? Qual o maior impedimento para a realização de um trabalho interdisciplinar? Quais as principais dificuldades para a ruptura dos modelos vigentes? Como é se reconhecer realizando um trabalho tradicional, guiado pelo paradigma linear/cartesiano nos dias atuais? Na universidade, ante o respaldo da interdisciplinaridade nos incisos da lei, como se pronunciam os professores, os gestores educacionais, as associações científicas?

Talvez mais importante que as respostas para essas questões sejam a inquietação e a mobilização efetiva resultantes delas...

Referências

BRASIL. Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

BRASIL. MEC. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998a.

BRASIL. MEC. Secretaria de Ensino Médio e Técnico. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC/SEMT, 1999.

FAZENDA, Ivani C. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia. São Paulo: Loyola, 2011.

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______. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 15ª ed. Campinas: Papirus, 2008.

FAZENDA, Ivani et al. Interdisciplinaridade no ensino superior: análise da percepção de professores de controladoria em cursos de Ciências Contábeis na cidade de São Paulo. Avaliação, Campinas/Sorocaba, v. 16, n. 3, p. 499-532, nov. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-40772011000300002&script=sci_arttext. Acesso em: jun. 2014.

FRIGOTTO, G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais, Unioeste, Foz do Iguaçu, v. 10, nº 1, p. 41-62, 1º sem. 2008.

GADOTTI, Moacir. Interdisciplinaridade – atitude e método. Instituto Paulo Freire, Universidade de São Paulo. 1999. Disponível em: http://siteantigo.paulofreire.org/pub/Institu/SubInstitucional1203023491It003Ps002/Interdisci_Atitude_Metodo_1999.pdf. Acesso em: jun. 2014.

GUSDOF, Georges. Prefácio. In: JAPIASSÚ, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

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MORAES, M. C. O paradigma educacional emergente: implicações na formação do professor e nas práticas pedagógicas. Em Aberto, Brasília, ano 16, n. 70, abr./jun. 1996. Disponível em: http://twingo.ucb.br/jspui/bitstream/10869/530/1/O%20Paradigma%20Educacional%20Emerg%C3%AAnte.pdf. Acesso em: maio 2014.

MORIN, E. Cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

PIAGET, J. Problemas gerais da investigação interdisciplinar e mecanismos comuns. Lisboa: Bertrand, 1973.

Publicado em 19 de junho de 2018

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