God of War, mitologia e filosofia

Fábio Souza Lima

Filósofo, historiador, professor e amante de games

Não é a barba que faz o filósofo.
Thomas Fuller (século XVII)

Diante do estrondoso sucesso de God of War, devemos nos indagar o porquê de essa franquia fazer tanto sucesso entre nós que amamos games. Naturalmente você já deve ter assistido a dezenas de vídeos que focam nas cenas rápidas, violentas, sensuais, nas técnicas, texturas, jogabilidade etc. Bom, isso por si só já faz do jogo uma experiência legal. Mas existem outros jogos com qualidade técnica igual ou parecida que não nos encantam tanto. A questão, portanto, é saber o que faz de God of War um game tão interessante.

God of War é uma das franquias mais vendidas no mundo, chegando a ser apontado como carro-chefe do console Play Station, da Sony. Aguardado por milhões de fãs desde que foi apresentado o seu trailer na Electronic Entertainment Expo, a E3, de 2016, o game construído pelo estúdio Santa Mônica teve o lançamento do quarto jogo da série marcado para abril de 2018.

Ora, todos sabem que o jogo se concentra em uma relação nada amistosa entre o protagonista Cratos e os deuses do panteão grego; agora esse relacionamento parece estar se expandindo para o norte, em direção aos deuses da mitologia nórdica. Mas qual a nossa relação com os mitos? Um dos mitólogos mais conhecidos do mundo, o norte-americano Joseph Campbell, em entrevista ao jornalista Bill Moyers, disse que se fosse perguntado sobre se deveríamos nos ocupar dos mitos ele respondeu: “Vá em frente, viva a sua vida, você não precisa de mitologia”. No entanto, logo depois, Campbell sugeriu: “cuidado, pois, um mito, com a introdução apropriada, pode capturar você!”.

É neste ponto que milhões de gamers em todo o mundo estão: capturados pela mitologia de God of War, em que um personagem, por causa de seus dramas pessoais, em um intenso processo de catarse, destrói tudo que encontra pela frente no que diz respeito a um mundo governados pelos deuses, enquanto constrói uma sólida empatia com os jogadores que decidem participar dessa aventura.

Algumas pessoas, ao terminar os jogos de God of War, se perguntam se Cratos realmente existiu na mitologia grega. Essa pergunta faz muito sentido, pois os jogos apresentam mais de uma dezena de entidades de que todos nós já ouvimos falar, enquanto coloca como protagonista alguém até então pouco falado, mas não completamente desconhecido. Na mitologia grega, Cratos é filho de Pallas (a titã da batalha e da guerra) e Estige (uma entidade do submundo, também conhecida como o rio da invulnerabilidade) – o que, convenhamos, explicaria muita coisa em God of War. Cratos também tinha como irmãos Zelos (que encarnava a rivalidade), Nike (uma representação da vitória; sim, você está certo em relacionar à marca de tênis Nike) e Bia (representação da força). Esse pessoal tranquilo, “gente boa”, que, imagino eu, deve ter tido brigas homéricas nas suas reuniões familiares, ficou ao lado de Zeus durante a Titanomanquia, a guerra entre os deuses e titãs pelo controle do universo. Com o final do evento e a vitória dos deuses, Cratos e Bia se tornaram guardas pessoais de Zeus, sendo Cratos diversas vezes citado como a personificação do poder de Zeus e Bia como a força do rei dos deuses.

Platão, ao escrever Protágoras (321D), cita um dos mais famosos ardis do titã Prometheus. Nessa história, Prometheus invadiu o palácio de Zeus, onde também residiam Hefesto, o deus que construía os armamentos dos deuses, e Athena, a deusa da sabedoria e da estratégia de guerra, passou pela sua terrível guarda, isto é, Cratos e Bia, e roubou o fogo dos deuses apenas para levar aos humanos. Eita cara corajoso, esse Prometheus!!!

Bom, a esta altura você já deve ter notado que essa história é um pouquinho diferente da do game, não é? Mas espere mais um pouco e já já falaremos sobre isso. Sabemos dessas histórias, pois, além de Platão, Cratos é citado também na Teogonia, de Hesíodo, nas obras de Pseudo-Apolodoro e Pseudo-Hyginus, além da obra de Ésquilo, em Portadores da Libação e em Prometheus acorrentado, escritas entre os séculos VI e V a.C. Nesta última, depois de Prometheus ser preso, Cratos e Bia ficaram responsáveis por levar o titã para a sua condenação: ficar aprisionado a uma rocha e ter o seu fígado devorado diariamente por uma águia. Zeus havia decidido, definitivamente, se vingar do titã da pior maneira possível. Cratos, por sua vez, provavelmente, muito p* da vida por ter sido enganado por Prometheus, ficou o tempo todo instigando Hefesto a apertar cada vez mais as correntes do preso. Hefesto lamenta a pena imposta ao titã, chamando Cratos de impiedoso e insolente. Cratos responde ao deus coxo com uma ameaça pelo simples fato de ele simpatizar com Prometheus.

E olha que o mais engraçado é que em God of War 2 o Cratos tem a coragem de perguntar ao titã quem o colocou naquela situação... Erro da produção do game? Não necessariamente... Talvez você esteja pensando, ‘poxa, as origens de Cratos no game e na mitologia são um tanto diferentes’. E perguntando: ‘será que o personagem do jogo ainda pode ser considerado um personagem mítico do panteão grego?’ A resposta é: sim! Mas, para entender isso, precisamos compreender algumas características que todo mito apresenta: todo mito tem característica explicativa ou simbólica, sempre de maneira fantástica, estando diretamente ligado ao sobrenatural.

Para fugir um pouco dos games e partir para o cinema, encontramos, por exemplo, um mito bem interessante no filme A Vila, de 2004, dirigido por M. Night Shyamalan. No filme, uma aldeia é retratada com uma série de famílias vivendo no século XIX. A população está muito bem... Tudo muito bom, vivendo sob regras rígidas que, em síntese, determinam que, haja o que houver, as pessoas que vivem ali não podem sair dos limites da cidadela, sob pena de criaturas terríveis as atacarem e matarem. Aliás, essas criaturas até visitam a região à noite apenas para impor uma espécie de toque de recolher para os jovens da cidadela. O problema é quando a curiosidade de alguns jovens resolve testar essa história tida como verdade absoluta. Temos aí três pontos a serem considerados: primeiro, a verdade absoluta é também uma das características de um mito! Segundo, normalmente o mito é contado por alguém de alto respeito dentro da comunidade: um sacerdote, um ancião ou mesmo os pais da sua própria família. Terceiro, considerar que, apesar disso tudo, sempre existem jovens dispostos a testar se aquelas terríveis histórias contadas pelas respeitáveis figuras da aldeia são mesmo verdade... E é aí, meu caro jovem, que você entra, pois, segundo a filósofa Hanna Arendt, o jovem carrega o pathos da novidade, isto é, a sede pelo novo, pelo excesso, pelo assujeitamento, pela paixão, pela curiosidade, pela dúvida... E é justamente nesse momento que pode nascer a Filosofia. Mas disso trataremos melhor em outro momento. Por ora, devemos dizer que, sim, a história contada em A Vila é para aterrorizar os jovens e, sim, ela é muito parecida com a história original e aterrorizante de Chapeuzinho vermelho, época em que essas histórias eram contadas para “educar” ou traumatizar as crianças e impedir que elas entrassem nas florestas sozinhas. Ah, se você for maior de 18 anos, recomendo a leitura dos contos de fadas em suas versões originais... São de arrepiar.

Outra coisa que devemos destacar em um mito é que ele não necessariamente segue uma lógica. Afinal, você consegue conceber uma relação amorosa entre Crono, daquele tamanhão, e a Reia que aparece no God of War 2? Aliás, para você tem algum sentido alguém viver dentro da barriga de outro alguém, como viveram os irmãos de Zeus? E como a titã Gaia, com aqueles dedos enormes, iria conseguir cuidar de um bebê? Aqui, aliás, aparece mais uma característica interessante relacionada aos mitos: eles podem variar de acordo com o tempo histórico e a região onde são contados. Por exemplo, enquanto em algumas versões o bebê Zeus fora cuidado por uma cabra chamada Amalteia, em outras foi cuidado por uma ninfa conhecida como Adamanteia ou ainda poderia ter sido cuidado por Melissa ou Cinosura. A versão admitida pelo game é que o rei dos deuses fora criado por Gaia, o que, convenhamos, faz muito mais sentido para o enredo de God of War. Seguindo esse caminho, essa escolha dos produtores do game não faz a menor diferença, desde que o sentido de “poder” de Cratos seja realmente mantido. Afinal, como os poetas gregos da Antiguidade passavam de cidade em cidade contando seus mythói, eles faziam como nós ainda fazemos hoje: quem conta um conto aumenta um ponto...

Por causa disso, você já deve ter ouvido falar que mito é também uma mentira (a imagem do Bolsonaro seria ótima), mas essa é uma interpretação mais moderna, ligada à ideia de que os deuses da Grécia clássica não existiam e que o deus cristão é o Deus verdadeiro. Nós devemos considerar que o mito tem uma origem pré-lógica, isto é, antes do desenvolvimento racional e lógico que encontramos na Filosofia. Isso quer dizer que, na Antiguidade, para explicar os diversos fenômenos naturais, como as chuvas, os raios, o calor, o frio, os terremotos, as erupções, o plantio no tempo adequado, a morte e a própria vida, eram necessárias histórias fantásticas contadas por pessoas mais velhas em que os deuses eram colocados como responsáveis por esses fenômenos.

A palavra mito, até os séculos V e IV a.C., tinha um peso diferente do que damos a ela hoje. Sua origem, do grego mythos, tem como significado narrar, contar, anunciar... O mito, portanto, constitui-se como uma narração da origem de alguma coisa ou de alguém. Essa narração é sempre de uma história sagrada, de um tempo primordial, contada aos ouvidos dos poetas por musas que, ao cantar, transmitiriam as verdades absolutas, isto é, os mythói. Em outras palavras: na Antiguidade, era necessário um narrador, um responsável por transmitir o conhecimento baseado nas histórias fantásticas de deuses e ao menos um ouvinte que acreditasse piamente nas palavras do seu interlocutor. Os narradores dessas histórias eram os poetas-aedo e os poetas-rapsodo. O primeiro, que teria presenciado os acontecimentos, era acompanhado de um instrumento musical chamado forminx; o segundo, que historicamente surgiu mais tarde, declamava poemas em pé, sem o auxílio de instrumentos. Nessa ordem, podemos considerar que o mito como poesia passava da musa para o poeta aedo e, mais tarde, para o poeta rapsodo. Esses poetas, portanto, eram homens considerados “escolhidos pelos deuses”, cujo pensamento não tinha compromisso com a lógica ou a razão humana, mas suas palavras tinham a força da verdade absoluta (dogmas), pois as coisas que eles diziam, os mythos, eram sagrados, incontestáveis, inquestionáveis.

Essas gêneses ou genealogias (origem das coisas) são chamadas de cosmogonias ou teogonias, pois se apresentam como uma tentativa de organização do surgimento de todas as coisas do mundo. As mais famosas obras são a Ilíada, de Homero, que viveu entre os séculos IX e VIII a.C., e a Teogonia, de Hesíodo, que viveu entre os séculos VIII e VII a.C. Titãs, deuses, semideuses e heróis frequentam esses poemas, sempre envolvidos em guerras e conflitos pessoais que ajudavam a explicar o cotidiano das diversas cidades gregas. E aí chegamos a mais uma característica do mito: ele também é, muitas vezes, usado para disseminar uma cultura, educar ou mesmo traumatizar alguém de maneira que interfira na sua formação.

Com o desenvolvimento da Filosofia nos séculos VII e VI a.C., os deuses não deixaram de ser citados, mas cada vez mais seus nomes passaram a ser ligados a novos conceitos construídos para erguer e manter a razão e a sociedade grega. Cratos, personificação do poder divino, é usado como termo que ao unir-se a “demos”, que significa “povo”, vai dar origem à famosa “democracia”. Podemos entender melhor isso a partir da definição contemporânea que o filósofo Foucault deu para o termo poder: é a capacidade, legitimada ou não, de impor vontades, verdades e ações. Dessa maneira, temos também autocracia (baseado na personalidade ou no “eu”), aristocracia (ideia de que quem governa são os melhores) e plutocracia (exercício do poder pelos mais ricos), entre muitos outros...

Na medida em que a era arcaica da civilização grega termina e se inicia o período clássico, lá pelo século V a.C., o conceito que exprimia o ideal de formação social e educacional dos gregos originalmente estava contido no termo Aretê, que, em síntese, representava o conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais identificadas com os ideais de bravura, heroísmo, honra e glória em batalhas. Com o fim do período arcaico (entre os séculos VIII e VII a.C.), essa ideia de formação educacional do grego se alargou na mesma medida em que o conceito de Pólis exigia um novo tipo de cidadão, que, além das exigências físicas e morais, prestava-se também ao exercício e à participação nas decisões administrativas da cidade. Nesse período, o pensamento educacional dos pré-socráticos, desvinculando-se da esfera mítica e se aproximando da phyisis (natureza), cujos dados empíricos e de raciocínio se tornaram base de suas formulações filosóficas, contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento desse novo cidadão.

Voltando para a ideia de Cratos como mito: outro mitólogo conhecido, Jean-Pierre Vernant, aponta que, para Platão, as fábulas contadas pelas velhas avós eram escutadas ao mesmo tempo que se aprendia a falar, o que contribuía para moldar o quadro mental em que os gregos eram naturalmente levados a imaginar o divino e a pensá-lo, isto é, toda formação moral e cultural baseava-se nessas histórias. Para Aristóteles em A Poética, o mito, quando ligado à tragédia, é capaz de formar cidadãos fortes, capazes política, ética e fisicamente. Perceba aquela referência que fizemos no início, de que um mito, com uma boa introdução, pode nos influenciar, nos capturar.

Joseph Campbell ainda define o mito como “experiência de vida”! Bom, se o mito é uma história fantástica que nos entrega uma experiência de vida, conseguimos entender que entre o God of War 1 e o God of War 4 temos a mesma experiência cada vez mais imersiva, mais participativa, mais interessante.

Assim, o Cratos de God of War é uma releitura de um mito grego que mantém o básico de sua história: sua filiação divina, seu poder e sua potência. Por mais que haja diferenças entre as histórias gregas antigas e versão contemporânea para esse personagem, devemos considerar que Cratos, mesmo se encaminhando para um conflito iminente contra os deuses do panteão nórdico em God of War 4, continua sendo um mito! Aliás, as migrações de deuses de um panteão mitológico para outro também aconteciam, mas esse é um assunto para outro momento. Por ora, vale chamar a atenção da barba grande, rústica e fechada do mito Cratos, que, apesar de legal, não faz dele um filósofo!

Referências

ARENDT, Hannah. A crise da educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1998.

HESÍODO. Teogonia: os trabalhos e os dias. São Paulo, 2014.

HOMERO. Ilíada. São Paulo: Melhoramentos, 1981.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Publicado em 03 de julho de 2018

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