As fake news e o ensino de Ciências e Biologia

Telma Temoteo dos Santos

Doutoranda em Ensino em Biociências e Saúde (IOC/Fiocruz), professora de Ciências e Biologia na Educação Básica, tutora presencial no curso de Ciências Biológicas (UERJ/Cederj) no polo Resende

No ensino de Ciências, alguns autores têm relatado como os estudantes apresentam dificuldades na transposição dos conhecimentos científicos apreendidos na escola para resolver e compreender situações cotidianas, sendo, portanto, necessário, segundo Freire (2014) “uma educação que tentasse a passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica”. Por outro lado, professores denunciam que, frente ao currículo posto, à organização das disciplinas, a avaliações externas e internas, a condições de trabalho precárias, emergem barreiras que imobilizam as ações interdisciplinares e contextualizações no ensino (Krasilchik,1988; 2000; Libâneo, 1994; 2012; Freire, 1996; Arroyo, 2010; Morin, 2013).

Em adição, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998) indicam que a prática pedagógica deve promover a inserção do aprendizado da escola no cotidiano dos estudantes, tendo em vista que

mais do que em qualquer época do passado, seja para o consumo, seja para o trabalho, cresce a necessidade de conhecimento a fim de interpretar e avaliar informações, até mesmo para poder participar e julgar decisões políticas ou divulgações científicas na mídia.

Dessa forma, a presente proposta teve como objetivo principal discutir temas da Biologia do Ensino Médio com base na investigação das fake news (notícias falsas). O público participante compreendeu os alunos de três turmas do Ensino Médio (1º ao 3º ano) de um colégio particular situado no município de Resende/RJ.

Desenho metodológico

A proposta de trabalho surgiu da identificação do interesse dos estudantes em questionar a veracidade de algumas notícias publicadas nas redes sociais e aquelas veiculadas na televisão. Uma situação recorrente nas aulas de Biologia era os alunos apresentarem dúvidas sobre algum áudio, notícia televisionada ou sobre alguma informação transmitida por amigos ou familiares. Pensando na perspectiva dos temas geradores de Paulo Freire, na qual os temas trabalhados nas aulas são aqueles identificados por meio do diálogo e escuta, foi proposto aos estudantes o trabalho de investigação sobre as fake news. O trabalho iniciou-se com a turma do 1º ano, e as demais turmas (2º e 3º anos), ao saberem do projeto de investigação, também se interessaram em realizá-lo. Os alunos nomearam o projeto como “Desmascarando as fake news”.

O trabalho foi dividido nas seguintes etapas:

  1. seleção das notícias consideradas “duvidosas” veiculadas nas redes sociais, em sites de jornais, nos grupos do WhatsApp etc.;
  2. seleção dos temas centrais a serem investigados a partir das notícias encontradas; e
  3. publicação dos resultados (no dia da apresentação e elaboração de pôsteres).

Os alunos tiveram um mês para realizar a investigação e a análise das notícias.

Resultados e discussões

Os temas mais recorrentes apresentados nas notícias foram: vacinas, Aids/HIV, alimentos, sistema imunológico, sistema digestório, sistema endócrino, sistema nervoso, doenças dermatológicas, saúde/beleza e Zika (vírus e doença). Ao todo, foram encontradas e apresentadas 72 notícias, distribuídas em 25 grupos. Todos os grupos usaram computador e o programa Power Point, com tempo de apresentação de 10 minutos e cerca de 10 minutos de interação com colegas. Como professora, não intervim durante e após as apresentações, apenas mediei as discussões e fomentei outras questões para posteriores investigações dos estudantes.

Como observado no Quadro 1, nos caminhos metodológicos de explicar/contestar as notícias os alunos empreenderam estudos em diferentes áreas da Biologia, Ciências (incluindo a Física e a Química), Linguística e História, atendendo à perspectiva interdisciplinar do projeto.

Quadro 1: Exemplos de algumas fake news e os temas abordados pelos estudantes na apresentação do trabalho final

Fake News Local de divulgação Temas abordados pelos alunos
O perigo do micro-ondas para sua saúde https://portal2013br.wordpress.com/2016/04/03/o-perigo-das-microondas-para-sua-saude/ Radiação;
Células vermelhas e brancas na interação com a luz;
Alimentos e os polímeros usados nos micro-ondas; Hábitos alimentares.
Chá de graviola mata as células do câncer Áudio que circula em grupo do WhatsApp da família de um dos estudantes Fatores biológicos, sociais e ambientais associados ao câncer;
Biologia do câncer; Ervas medicinais;
Técnicas atuais de tratamento.
Açúcar e vinagre enganam o bafômetro Vídeo que circula em grupo do WhatsApp e disponível no Youtube Como o álcool é absorvido no nosso corpo;
Medição e
concentração de substâncias;
Sangue e células na interação com moléculas;
A questão social e o uso do álcool.

Fonte: Dados retirados dos trabalhos apresentados pelos estudantes.

Nas apresentações, dois tipos de fake news emergiram: as que eram totalmente inverossímeis, com textos de cunho alarmista e às vezes acompanhadas de fotografias que remetiam ao grotesco (embriões e indivíduos adultos resultantes de cruzamento interespécies), e outras que partiam de informações aceitas cientificamente. Porém, neste último caso, ou a explicação desviava dos fatos comprovados ou eram mescladas com informações falsas (os estudantes as chamaram de “colcha de retalhos”), de estudos em andamento ou especulativos, objetivando causar maior impacto nos leitores/ouvintes. Eis alguns exemplos:

I) Pigmentos alimentícios: os alunos apontaram que as matérias não citam os valores das concentrações mínimas e máximas tampouco os tipos de pigmentos, levando a generalizações;
II) Produtos naturais x Produtos químicos: complementando o exemplo, em geral as matérias indicam uso de produtos naturais (como chás, por exemplo) de forma contínua sem informar que esses produtos também possuem substâncias químicas e são totalmente desfavoráveis aos produtos químicos sintéticos, sem também informar que há valores mínimos e máximos no consumo que devem ser observados, assim como indicação e acompanhamento médico. Aliás, um ponto associado a esse exemplo também constatado pelos alunos é que em geral nessas matérias a classe médica e a academia em geral são colocadas como “vilões”, participantes de algum tipo de conspiração sociopolítica.

Algumas questões emergiram nas falas dos grupos, cabendo destacar:
1. Quem fala: os estudantes apontaram que nessas falsas noticias geralmente não há nome do redator, data da publicação ou instituição do redator. Outro ponto é que as referências científicas que são mencionadas ao longo do texto são apenas denominadas como “cientista de renome”, “pesquisador internacional” ou um “codinome”, sem a sua formação acadêmica.

2. De onde fala: os alunos apontaram também que nesses textos não há identificação do local de quem está defendendo a ideia. Quando querem tornar mais alarmista o texto, remetem a instituições reconhecidas, como USP, Unicamp e Harvard, dentre outras. Em um dos grupos um aluno investigou a instituição mencionada e ela sequer existia; em outro, a instituição referida na verdade era um grupo de ioga com endereço na Ásia.

3. Como fala: a linguagem foi outro ponto destacado. As notícias falsas apresentam erros normativos/gramaticais da língua, tom alarmista e sempre destacam os termos “morte”, “não há cura” e “milhares de vítimas”, entre outros.

4. Ausência de referências: não há menção a outros estudos já realizados, tampouco apresentam outros pontos de vista sobre o mesmo tema.

Considerações finais

O trabalho de investigação sobre as fake news possibilitou que os estudantes se tornassem protagonistas da ação de aprendizagem. Observei também que, como partiu dos alunos a escolha das notícias e a posterior pesquisa para investigar a veracidade dos temas, eles se envolveram mais com a aprendizagem. Outro ponto importante é que os estudantes empreenderam uma investigação minuciosa, passando por várias áreas do conhecimento, constatando que, para compreender determinado fenômeno, faz-se necessário realizar conexões e não cercear o conhecimento a uma disciplina. Com base nos resultados obtidos, esse trabalho irá permanecer como parte do programa da disciplina, sendo estendido e adaptado para as turmas do Ensino Fundamental 2.

Referências

ARROYO, M. Educação e exclusão da cidadania. In: BUFFA, E.; ARROYO, M.; NOSELLA, P. Educação e cidadania: quem educa o cidadão. 14ª ed. São Paulo: Cortez, 2010.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais. Brasília: MEC/SEF, 1998.

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Cortez e Moraez, 1979.

______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

______. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

KRASILCHIK, M. O ensino de ciências e a formação do cidadão. Em aberto, Brasília, ano 7, n. 40, out./dez. 1988.

______. Reformas e realidade: o caso do ensino de Ciências. Perspectiva, São Paulo, v. 14, n. 1, 2000.

LIBÂNEO, J. C. Tendências pedagógicas na prática escolar. In: _______. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São Paulo: Loyola, 1994.

______. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educ. Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, mar. 2012.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

Publicado em 25 de setembro de 2018

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