A ilusão referencial em São Bernardo: um recurso do autor ficcional

Samanta Samira Nogueira Rodrigues

Pós-Graduada em Literatura Brasileira (UERJ)

Os questionamentos que envolvem as ilusões referencial e autobiográfica no processo de produção literária são aqui utilizados como proposta para uma leitura do recurso do autor ficcional em São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953), publicada em 1934. Como fio condutor para essa reflexão, podemos pegar emprestada a de Italo Calvino sobre o processo criativo da fase realista de Balzac, imbuída de tentativas de cobrir espaço, tempo, existências e histórias por meio da escrita: no processo de escrita, não poderia acontecer tal como nos quadros de Escher quando, “numa galeria de quadros, um homem contempla a paisagem de uma cidade e essa paisagem se abre a ponto de incluir a galeria que a contém e o homem que a está observando”? (Calvino, 2007, p. 114).

Para lembrar: Maurits Cornelis Escher (1898-1972) foi um renomado artista gráfico holandês. Suas obras estão disponíveis na internet em http://www.mcescher.com/.

Com base nessa reflexão e para início de conversa, suponhamos dois desenhos para São Bernardo, objeto do presente estudo:

  1. São Bernardo como a “galeria de quadros” descrita por Calvino. A leitora ou o leitor como o homem que “contempla a paisagem de uma cidade” e essa cidade é a própria descrição de fatos presentes na obra; esses fatos incluem algum contexto de semelhança com a realidade do leitor e de repente esse leitor se percebe na narrativa. Posta assim, a figura do leitor é de contemplação a algo que dialoga com ele em dados momentos;
  2. Paulo Honório, personagem presente em São Bernardo, decide contar sua história e nesse exercício revisita fatos de sua vida, como que a contemplá-los; esses fatos, no processo de escrita, incluem essa figura que se propõe a escrever.

Ambos os cenários, assim como a questão suscitada por Calvino, apontam para uma representação, para um jogo de ilusão com efeitos de realidade, que indica o cenário, as personagens e ações executadas por elas, um cenário que absorve o próprio cenário e personagens. Embora essas representações pretendam aproximar-se de uma realidade, no primeiro exemplo o leitor em questão é passivo, se reconhece em alguns cenários descritos pela obra e acredita nela. No segundo exemplo, que pretende também ilustrar uma realidade, há um ponto de sua significação que será aqui destacado: é Paulo Honório quem conta a história ao leitor. Sua perspectiva é centrada em sua vivência, e isso inclui sua leitura e o significado que as ações têm para ele.

Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos. Incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras (...), extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço (Ramos, 2015, p. 87-88).

No realismo ficcional, conforme aponta Bosi (1975), “desnudam-se as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima; e buscam-se para ambas causas naturais (...) ou culturais (...) que lhes reduzem de muito a área de liberdade”. Ora, se a proposta realista objetiva a transparência, como pensar Paulo Honório como um personagem neutro de tais questões? A narrativa em primeira pessoa é uma marca dessa não isenção sobre os relatos. Pressupomos, pois, o afastamento do foco do realismo, pois a parcialidade advinda da figura de Paulo Honório como narrador afasta a objetividade requerida pelo movimento literário em questão, ao passo que impossibilita a análise de todo o cenário envolvido, no caso de São Bernardo, pela narrativa afetada pelos sentimentos do narrador, O pretendido programa realista de Paulo Honório é, assim, comprometido pelo processo de construção e desconstrução de suas narrativas sobre o vivido (Miranda, 1987).

De acordo com Lejeune (1998), a escrita autobiográfica não começa com o nascimento do autor, mas com o nascimento de seu discurso, chamado por ele de “pacto autobiográfico”. Sucede-se então que “a autobiografia não inventa; as memórias começam ritualisticamente por um ato desse gênero: exposição da intenção, circunstâncias em que se escreve, refutação de objetivos ou de críticas” (Lejeune, 1998, p. 49 apud Costa, 2014).

Cada capítulo de São Bernardo é um bloco do passado de Paulo Honório segundo sua própria leitura e/ou intencionalidade. Tais observações requerem do leitor criticidade para perceber a composição da obra como uma ilusão sobre a materialidade dos fatos, sobre o real. Cabe ressaltar que essa não é uma questão sobre a honestidade ou a falta dela na narrativa feita por Paulo Honório. Forjar histórias inventadas a partir de histórias verdadeiras que possam mobilizar sobretudo pelos elementos cotidianos, cenários e situações comuns a dadas realidades é uma estratégia de um trabalho feito pela encenação do autor, de sua ficcionalização, que não demanda a verdade dos fatos narrados.

Paulo Honório critica a forma de escrever afastada da linguagem falada, uma forma “cheia de besteiras”, como julgou a escrita de Gondim, contratado para cuidar da composição literária do projeto contratado. “Um artista não pode escrever como fala (...). Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia”, defende Gondim. Paulo Honório, entretanto, propunha, como processo de legibilidade do livro, uma linguagem simples. Essa linguagem, falada e capítulos depois posta na carta escrita por Madalena, tampouco o fez ter entendimento sobre os fatos. A inabilidade de Paulo Honório com as narrativas é afetada por seu modo de olhar para elas (Ramos, 2015, p. 08-09, 185).

De outra forma, coloca-se outra questão: teríamos na discussão sobre a linguagem o autor Graciliano Ramos utilizando-se do espaço do autor ficcional representado por Paulo Honório como um recurso para, inserido no pensamento modernista, criticar as regras até então seguidas pela literatura e introduzir discussões sobre tal linguagem? Se assim for, retornamos então à figura de Escher (1956) e inserimos, de forma não ingênua, Graciliano Ramos na imagem que introduz nossa discussão.

Referências

BAPTISTA, Abel Barros. O livro agreste. Campinas: Ed. Unicamp, 2005.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 2ª ed. São Paulo: Cultrix. 1975. Disponível em: http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/4763476.pdfhttp://static.recantodasletras.com.br/arquivos/4763476.pdf

CALVINO, Italo. Seis propostas para o novo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

COSTA, Cynthia. Tradução comentada de uma autobiografia: o eu em Une Année Studieuse, de Anne Wiazemsky. Belas Infiéis, v. 3, nº 1, p. 249-258, 2014. Disponível em: periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/download/11986/8389.

ESCHER, Maurits Cornelis. Print Gallery, 1956. Disponível em: http://www.mcescher.com/gallery/recognition-success/print-gallery/

MIRANDA, W. M. Contra a corrente: a questão autobiográfica em Graciliano Ramos e Silviano Santiago. 1987. 288 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - FFLCH-USP. São Paulo, 1987.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 97ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

Publicado em 23 de janeiro de 2018

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.