As aventuras de um químico desempregado

Esteban Lopez Moreno

Fundação Cecierj e Programa HCTE-UFRJ

Esteban L. Moreno

Parte I – Na academia de musculação

A primeira vez que visitei uma academia de musculação, ela me pareceu um dos ambientes mais estranhos possíveis. O vaivém dos pesos articulados por roldanas em cordinhas de aço, sustentadas por estruturas robustas e, ao final, movidas por seres humanos torneados ou ao menos bem-intencionados mais se assemelhava aos brinquedos dispostos para os pequenos roedores para se distraírem do estresse em suas jaulas, além de encantar as crianças. Não importa o que me dissessem, essas manobras repetitivas só poderiam ter sido fruto de uma mente maligna capaz de deter os esforços genuínos de nossa espécie para se tornar mais plena e livre de todos os seus grilhões. Dito de outra forma: eu jamais frequentaria tal ambiente, preferia me ater ao levantamento dos livros de Química Orgânica – costumam ser os mais pesados.

Gostaria de dizer que o tempo ou a sabedoria da idade, como dizem, me fez mudar de ideia, entretanto a verdade é que me vi obrigado a frequentar uma academia de musculação após uma internação hospitalar em função do estresse causado pelo desemprego. O veredito do médico foi taxativo: “Você precisa praticar exercícios físicos!”. Sim, você, leitor, tem razão, havia milhares de atividades físicas possíveis; escolhi justamente a academia de musculação. Deve ser coisa de desejo enrustido, sei lá... O preço era também o mais em conta.

Para a aula do primeiro dia, naturalmente tive que despender um considerável esforço para vencer os meus preconceitos. Deve ser bobagem minha, afinal, mas eis o resultado da primeira conversa:

– Olá, bom dia – falei acenando com constrangimento àquele que deveria ser o meu instrutor.

– Grruuunnch... – respondeu.

Minha hipótese sobre roedores estava se tornando mais certeira; talvez aquele mamífero passasse por algum processo de transferência de massa encefálica para os bíceps.

– Porra! – gritou logo após.

Ao menos conseguia falar como um humano, pensei. Então, com os dedos contorcidos, retirou da boca um dispositivo plástico colorido, que contrastava com o bigode bem comportado, estilo Freddie Mercury. Explicou-me, após um forte aperto de mão, que aquilo era uma proteção para os dentes e tinha ficado mal preso em seu aparelho; já era o terceiro que comprava.

– Entendo, entendo... – assenti com total desconhecimento de causa. E assim progredimos o nosso diálogo. Aprendi o que era “série” e várias sutilezas que acompanhavam os exercícios físicos nas engrenagens de aço. Tinha bastante ciência ali, afinal.

Com o tempo passei a conhecer outras pessoas curiosas, como um jovem pesquisador do IMPA, um dos maiores centros de Matemática do Brasil, que também fazia musculação por lá. Logo puxou papo comigo, de alguma forma percebeu que eu era afeito aos estudos (espero que não tenha sido por conta de minha musculatura esquálida). Sim, os nerds também fazem musculação.

Aos poucos compreendi que havia uma fauna variada naquele habitat, povoado de humanos com interesses afins. Alguns deles procuravam se reunir nos mesmos dias ou horários, revezando os mesmos equipamentos: as senhoras costumavam frequentar as bicicletas pela manhã durante o programa da Ana Maria Braga, os rapazes do supino com seus frasquinhos de amônia sempre ao final da tarde, as meninas da sexta-feira à noite também iam pela tarde, um pouco mais cedo, após a escola. Entretanto, por algum motivo, o grupo de que mais me aproximei foram os “Grunchs”.

Os “Grunchs” não eram muito diferentes dos demais habitantes masculinos da academia; pareciam apenas ser mais talentosos em conversar bobagens, particularmente sobre mulheres e futebol. Tinham um jeito em especial de rir, meio para fora, meio para dentro. Para minha surpresa, atrás da voracidade em aquilatar mais músculos eles pareciam todos boa praça, apenas, sei lá, tinham que manter aquela fama de ogro. Ao longo das semanas, fui aprendendo seus trejeitos, me incluindo nas conversas, mas de vez em quando me assustava a força de alguns comentários. Um deles saiu em função de algo que falei.

– Tendo comida em casa e contas pagas, as mulheres não têm o que reclamar – disse o Grunch 1.

– Sim, e têm que agradecer todos os dias! – completou o Grunch 2.

Não importa muito a ordem, Grunchs são Grunchs, e depois todos já estavam grunhindo juntos em alegria:

– Arghf, arghf, arghf...

Será que estavam falando sério? Em meus pensamentos, aquilo era uma aula de Pré-História. Imaginava-os arrastando suas mulheres pelos cabelos, como diz-se que teriam feito os Neandertais, e forçando-as a atender aos seus desejos mais primitivos. Entretanto, não sei bem, a sensação era de que em casa com suas consortes todos eram mansinhos e obedientes; ali era sua desforra imaginativa. Será?

Mas os Grunchs também por vezes (não muitas, mas há bons indícios de ocorrência) amam e demonstram interesse pelo conhecimento. Não demorou muito e descobriram que eu conhecia Química e providenciaram um pedido especial.

– Você precisa preparar um produto que faça com que a gente fique mais forte, mais rápido!

– É verdade, arghf, arghf… – grunhiram os demais.

Eu, que estava me esforçando para desenvolver a difícil arte de arfar, depois que vi os brilhinhos de todos os olhos se acenderem em minha direção, calei-me e pensei... Para onde devo fugir? Pense você, que conhece ou tem algum conhecimento de Química, o que proporia? Preciso encontrar uma solução! Vou pular para outra história antes de encerrarmos esta.

Parte II – Xampu

É curioso constatar como as pessoas leigas imaginam a atividade de um professor de Química: na segunda-feira, produzimos drogas psicotrópicas na aula de laboratório; na terça-feira, demos uma aula sobre explosivos; na quarta-feira, fizemos um vulcão de lava; na quinta-feira, preparamos uma bomba atômica; na sexta-feira, fabricamos álcool destilado e padecemos no final de semana de completa embriaguez. Não, não é exagero! Vou lhe dar um exemplo de meu convívio íntimo. Minha esposa, antes dessa honorífica posição, nos preâmbulos de nosso relacionamento, deu-me o seu xampu preferido para que eu refizesse a fórmula, já que não o encontrava mais à venda no mercado. Com muita insistência, tentei fazê-la compreender que a composição química não estava naquelas letras miúdas do rótulo, pois aquilo era uma descrição genérica e sem as relações quantitativas dos componentes. Além do mais, faltavam os mecanismos de preparação – que poderiam alterar drasticamente as propriedades do produto.

O amor tem dessas coisas: mesmo não sabendo como fazer, eu disse que faria. Pensei que bastava seguir alguma receita pronta, havia várias disponíveis e, afinal, era só uma mistura, não era necessária qualquer reação. Mas eu tinha que saber fazer aquele xampu, ele era o único no planeta Terra compatível com a queratina de seus finos cabelos. Minha honra química estava em jogo; como determinar a fórmula secreta daquele bálsamo sagrado?!?

Fora os gracejos, ela tem razão em suscitar uma solução fácil. Quem nunca assistiu às séries antigas, como Supermáquina ou MacGyver ou mesmo as mais modernas, como Breaking Bad ou CSI, nas quais se produzem resultados precisos com os restos de algum resto de um dejeto humano? São, na melhor das hipóteses, boas ficções, pois a maioria das análises químicas é extremamente dispendiosa em termos de tempo de preparo de amostra, calibração, ajustes de equipamento e análise dos resultados. No caso de uma análise orgânica, como o caso dos componentes do xampu, não era diferente. Entretanto, isso não importa; por que eu, professor de Química e ainda mais desempregado, não poderia ocupar o meu tempo fazendo o precioso eflúvio capilar?

Por isso, eu tinha que ter uma solução – e encontrei uma estratégia não muito afim à Química. Como todas as tentativas de encontrá-lo pela internet falharam, iria percorrer todas as lojas do Rio de Janeiro para encontrar; era definitivamente mais simples do que tentar refazê-lo. Depois lhe daria de presente e, para completar o blefe, acrescentaria uma ou duas linhas a mais em meu Lattes: “Pesquisador na área de cosméticos”.

Não, o xampu não era encontrável – ao menos neste sistema solar. A fábrica falira, pegou fogo ou mudou de nome, todos morreram intoxicados com glicerina ou sabe-se lá por quê. Não, não havia atendimento ao consumidor no rótulo, ninguém para ligar. Por muito tempo, o frasco permaneceu vazio na janela do banheiro. Todo final de tarde o sol batia-lhe em cheio, espargindo seus raios luminosos pela casa como um grande troféu de minha incompetência e nulidade química, já não bastasse o desemprego. Mas isso não ficará assim...

Parte III – De volta à academia

Nós, homo sapiens, tornamo-nos uma das espécies mais aptas a sobreviver ao deslocar uma parcela maior de energia produzida pelo nosso metabolismo (cerca de 25%) para o funcionamento do cérebro, depois de milhares de anos de uma incansável batalha evolutiva. Os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, não chegam a mais que 8%. Pouco mais de 50 anos de existência das academias de musculação fizeram com que boa parte desses 25% voltassem a ser investidos em nossos próprios músculos corporais. E, mesmo com este intento menos nobre, retornei à academia; levei o meu desafio resolvido debaixo do braço.

– Grunchs (lembre-se, todos se chamam Grunch) – disse-lhes em voz alta em um ímpeto de coragem – encontrei a solução que procuravam.

– Arghf, arghf, arghf… – balbuciavam e se contorciam em alegre tumulto.

Puxei da mochila um pacote e disse-lhes, triunfante:

– Ei-lo!

– Mas o que é isso?, – perguntou o alfa do bando (todos são alfas, não importa).

Antes de responder, arfei um pouco para dar uma sensação de pertencimento.

– Aqui dentro tem uma grande porção de um açúcar especial, chamado celulose.

Eles sabiam o que era açúcar, consumiam um suplemento alimentar que continha uma boa dose deles, em forma de lactose. O nome celulose pareceu-lhes, então, familiar.

– Há também um pouco de pigmento – continuei – nada realmente nocivo.

Os Grunchs podem ser incultos, porém não burros. Perceberam que algo diferente se passava. Tudo ficou claro para eles quando desembrulhei cuidadosamente o pacote.

– Vejam, vocês me pediram um produto químico para ficar mais forte e mais rápido; não há nada melhor do que um bom livro!

Eu não tenho certeza se compreenderam que um livro é essencialmente feito de celulose – o açúcar principal constituinte das madeiras – com o pigmento que compõe as letras, além de outros compostos em menor peso, e que a leitura poderia torná-los mais fortes, instruídos e bem resolvidos. Mesmo com a minha tentativa de convencê-los por mais algum tempo, não é difícil prever que os meus argumentos foram uma total decepção. No entanto, para minha surpresa, eles riram, mas de outro jeito. Entenderam a brincadeira e sentiram que aquilo era minha forma de estar com eles. Passei a me sentir mais livre e aprendi a compreender o corpo também como um xadrez, com suas articulações e movimentos sutis, outras vezes nem tanto, porém tão necessários para o nosso bem-estar e prolongamento da saúde.

Com efeito, mesmo anos após, por vezes continuo desafiando a gravidade ao suspender repetidamente aqueles frios e rebeldes pesos de ferro com um teor de carbono acima de 2,11%. Ademais e o melhor de tudo, nunca mais recebi uma encomenda de algum composto milagroso para o fortalecimento muscular.

Parte IV – A redenção do xampu

Ao fracassar na confecção do %¨$#& (i.e., xampu), meu ego atingira quase o zero absoluto, mas o três vezes grande Hermes veio ao meu socorro: recebi uma nova demanda de minha meiga e futura consorte. Pediu-me para limpar alguns dos seus antigos colares e brincos que estavam oxidados. Eram especiais e ela ficaria muito feliz se eu pudesse melhorá-los.

Isso eu sabia resolver, poderia recompor rapidamente a minha soberba Química! Notei que eram de alguma liga metálica, algo mais rude que o bronze, com algumas falsas gemas (jamais lhes digam que são falsas!) incrustadas. Um banho oxidante com uma solução de ácido fraco, como o ácido acético, seria suficiente para remover a pátina verde e lhes dar um novo brilho. E assim foi feito; bastou um dia para que perdessem boa parte das manchas e adquirissem um aspecto de quase novo. Eu fui aprovado! Meu futuro com ela estava praticamente garantido! Tive apenas como reclamação a insistência de algumas poucas manchas. Para que a solução fosse completa, joguei mais uma porção do “espírito de vinagre” no banho. Bastava deixar mais um dia de molho e pronto.

Veja bem, quando se está contente, bem... Se está contente, e o tempo passa, passa e não se sente. Por dolo – não culpa, juro! –, esqueci o banho por alguns dias ou semanas ou algo mais... Sou réu confesso, foi total amnésia, esquecimento, estresse, sei lá. Quando finalmente abrimos o frasco, as peças tinham se dissolvido parcialmente, apenas as pedrinhas permaneciam incólumes. A mim pareciam que tinham ganhado um novo status artístico, como uma obra arquitetônica de Gaudí ou uma pintura surrealista de Salvador Dali. Uma estética ímpar! Mas para ela foi assustador... Dizem que beleza não se discute. Não acredite nisso...

Devo ter, afinal, outras qualidades para minha esposa, pois, mesmo desempregado e tendo destruído suas joias e fracassado em seu xampu, estamos firmes e fortes há anos.

Acho que rola uma química especial entre nós.

Publicado em 23 de janeiro de 2018

Como citar este artigo (ABNT)

. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/18/2/as-aventuras-de-um-quimico-desempregado

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