Fragmentação da evolução histórica no sistema educacional brasileiro – caso da Educação de Jovens e Adultos
Manoel Messias Gomes
Mestre em Ciências da Educação (Instituto Superior de Educação de Brasília)
As ações educacionais no Brasil encontram-se vinculadas tanto ao sistema político social vigente quanto às concepções filosóficas sobre escola, conteúdos e métodos de ensino, percebendo-se que estes são manifestos em atendimento à ideologia da classe social dominante.
O sistema educacional brasileiro tem suas raízes históricas voltadas para a diferenciação das classes sociais que compõem a nossa sociedade. Historicamente, a educação tem sido o objetivo e o anseio de todas as classes sociais, mas na prática observa-se que a escola tem sido um local a que, na maioria das vezes, só os privilegiados que detém o poder tem tido acesso e permanecido, conseguindo conquistar posições hegemônicas.
Nesse sentido, a formação de professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA) é praticamente inexistente pelo fato de a EJA ocupar um lugar secundário no conjunto das políticas educacionais e por ter se constituído, ao longo dos anos, com práticas educativas fragmentadas. Tal fato poderia explicar por que, no decorrer de sua história, a EJA tem sido vista como uma modalidade de educação que não requer formação específica de seus docentes, deixando para o próprio educador a busca pela sua formação. Na prática, qualquer professor formado para lecionar no Ensino Fundamental ou Médio pode atuar nessa modalidade de ensino; de forma geral, eles não tiveram sequer uma disciplina ou discutiram em termos acadêmicos o ensino para a EJA.
Alguns autores, como Soares (2002), Paiva (2009), Ribeiro (2001), Machado (2002) e Freire (1981; 1986), afirmam que as instituições formadoras dos professores e as escolas precisam assumir o compromisso pela capacitação e atualização do profissional da EJA, que necessita de formação peculiar.
O interesse deste autor pelo tema – formação docente para a EJA – originou-se do seu contato com as turmas de EJA da escola na qual é docente no Ensino Médio. Dessa forma, objetiva analisar a formação docente do professor que atua na modalidade EJA.
A educação brasileira na fase da educação provincial
Durante a colonização, quando o processo educativo era ministrado pelos jesuítas, notava-se que eles ensinavam por meio do processo de evangelização, “catequizando” os índios e procurando tornar os escravos mais “dóceis” e sujeitos à servidão e à submissão, ao mesmo tempo que se encarregavam de implantar um sistema educacional voltado para os filhos da elite. Segundo Freitag (1980, p. 47), “os jesuítas, além de preparar os futuros dirigentes da administração colonial, formavam também os futuros teólogos, reproduzindo assim os seus quadros hierárquicos, bem como os educadores prática e exclusivamente em seu meio”. Nesse caso, o processo educativo era voltado para favorecer os filhos dos colonos brancos, com a finalidade de prepará-los para mais cedo ou mais tarde tornarem-se dirigentes.
Percebe-se que a Igreja Católica não só assumia sua hegemonia na sociedade civil como também era detentora de enormes espaços na sociedade política, verificando-se assim que o seu poder estava muito mais ligado ao Estado do que à própria Santa Sé. E isso se dava por meio de uma arma pacífica e silenciosa, que era a escola.
Mesmo depois da laicidade do ensino, com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal (1759), o elitismo prosseguiu. Aulas avulsas, fundo literário, os colégios e seminários tornaram-se os centros de divulgação e irradiação da ideologia das classes dominantes, dos colonizadores. Tudo que foi criado até a Independência foi dirigido aos filhos dos portugueses. Apesar de as reformas pombalinas terem uma visão crítica do sistema educacional vigente na época, a maioria de seus professores tinha formação jesuítica, contribuindo para o mesmo processo educacional.
O advento do Império independente, com a Constituição de 1824 que estabelecia a gratuidade da instrução primária e a criação de colégios e universidades, mudou o discurso, mas não mudou a prática, pois a educação como dever do Estado liberal, na prática, continuou a privilegiar a elite. Quem podia pagar estudava. Quem não podia, a coroa relegou às províncias a tarefa de educar. E foi nesse cenário que, de acordo com o Parecer CNE/CEM nº 11/00 que, a Constituição de 1824 reservou a todos os cidadãos a instrução primária gratuita (Art. 170, p. 32). Contudo, a titularidade da cidadania era restrita aos livres e aos libertos. “Num país pouco povoado, agrícola, esparso e escravocrata, a educação popular não era prioridade política nem objeto de uma expansão sistemática”. Se isso valia para a educação escolar das crianças, quanto mais para adolescentes, jovens e adultos. A educação escolar era “apanágio” de destinatários saídos das elites que poderiam ocupar funções na burocracia imperial ou no exercício de funções ligadas à política e ao trabalho intelectual. “Para escravos, indígenas e caboclos, além do duro trabalho, bastaria a doutrina aprendida na oralidade e a obediência aprendida na violência física ou simbólica”. Ainda de acordo com esse parecer, a situação não escapou da crítica de Machado de Assis:
A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; destes uns 9% não leem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. (...). 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa na Penha – por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado. (...) As instituições existem mais por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político (Machado de Assis, 1879, citado no Parecer, p. 13).
Ainda segundo esse Parecer nº 11/00, no famoso parecer sobre a reforma do ensino, assim se expressou Rui Barbosa sobre a relação entre o ensino e a construção da nação:
A nosso ver, a chave misteriosa das desgraças que nos afligem é esta, e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria. Eis a grande ameaça contra a existência constitucional e livre da nação; eis o formidável inimigo, o inimigo intestino, que se asila nas entranhas do país. Para o vencermos, releva instaurarmos o grande serviço da “defesa nacional contra a ignorância”, serviço a cuja frente incumbe ao parlamento a missão de colocar-se, impondo intransigentemente à tibieza dos nossos governos o cumprimento do seu supremo dever para com a pátria (Barbosa, vol. X, t. I, 1883, p. 121-122 apud Parecer nº 11/00, p. 14).
Apesar de toda falácia, percebe-se então que nenhum governo provincial teria interesse em alfabetizar índios, negros ou libertos pobres, enquanto os filhos dos senhores de engenho estudavam com preceptores padres, indo terminar seus estudos na Europa ou reservavam suas vagas no futuro Colégio Pedro II, escola oficial, que abria a porta para o ensino superior.
Até a Proclamação da República, índios, negros e mulheres sempre estiveram excluídos do sistema educacional, pois em uma sociedade dual (com dominantes e dominados), de economia agroexportadora dependente (economia colonial), não necessitam educação primária. Precisava-se tão somente organizar e manter a instituição superior para uma elite que se encarregaria da burocracia do Estado, com a função de perpetuar seus interesses e cujo diploma referendava a posição social, política e econômica a quem o possuía, garantindo pela educação a perpetuação das relações sociais de produção.
Os dados estatísticos do Império revelam que a população livre brasileira, em 1876, era de 8.419.672 habitantes e que para cada 100 brasileiros 78 eram analfabetos (Nova Escola, 1990, p. 11).
Análise superficial do modelo educacional na República Velha: um reflexo da EJA
Foram poucas as mudanças sofridas pela sociedade brasileira durante a Primeira República. A economia continuou agroexportadora; da monocultura açucareira passou-se à cafeeira, resistindo a qualquer transformação: nada de significativo no plano educacional. Para Severino (1986, p. 68), “o ensino continuou precário e voltado para atender aos interesses da elite”, fundado sobre um conteúdo literário, de inspiração europeia e voltado para o Ensino Superior, visto como via de ascensão social.
A dependência econômica em relação ao estrangeiro (Inglaterra) permaneceu a mesma, apesar da independência política de Portugal. O ensino permaneceu precário e voltado para o atendimento às elites. A força de trabalho escrava foi substituída pela mão de obra imigrante, quando no fim do Império se passou ao regime de trabalho livre (Freitag, 1980, p. 48). Não havia necessidade de qualificação da mão de obra imigrante, pois ela já veio qualificada para o tipo de tarefas que as espera (Freitag, 1980, p. 48), mas a estrutura social de dominadores e dominados permanece.
A primeira Constituição republicana, de 1891, retirou de seu texto a referência à gratuidade da instrução (existente na Constituição Imperial), ao mesmo tempo que condicionou o exercício do voto à alfabetização (Art. 70, § 2º). Esse condicionamento era explicado como forma de mobilizar os analfabetos a buscar, por sua vontade, os cursos de primeiras letras. Além disso, face ao espírito autonomista que tomou conta dos estados, a lei maior de 1891 se recusou ao estabelecimento de uma organização nacional da educação e deixou à competência dos estados (antes províncias) muitas atribuições, entre as quais o estatuto da educação escolar primária.
Segundo o Parecer CNE/CEB nº 11/00, no início da República, seguindo uma tradição vinda do final do Império, cursos noturnos de “instrução primária” eram propostos por associações civis que poderiam oferecê-los em estabelecimentos públicos desde que pagassem as contas do gás (Cf. Decreto nº 13, de 13/03/1890, do Ministério do Interior). Eram iniciativas autônomas de grupos, clubes e associações que almejavam de um lado recrutar futuros eleitores e de outro atender demandas específicas. A tradição de movimentos sociais organizados via associações sem fins lucrativos dava sinais de preenchimento de objetivos próprios e de alternativas institucionais, dada a ausência sistemática dos poderes públicos nesse assunto.
Na República, como na Colônia e Império, a educação continuava ligada aos interesses da elite agrária dirigente da época e de seus representantes e futuros dirigentes, logrando a constituição de um sistema de ensino secundário e superior em detrimento da expansão do ensino primário, deixando de fora do processo educativo a grande maioria da população que, como sempre, tem sido alijada de todo o processo de construção de sua cidadania.
A partir de 1890, com a criação do Ministério da Instrução, Correios e Telégrafos, percebe-se a visão distorcida da educação, na criação de um ministério que unia coisas impossíveis de serem tratadas da mesma forma. Um ano depois, o Ministério da Instrução se junta ao da Justiça. O Decreto nº 981, de 8/11/1890, que regula a instrução primária e a secundária no Distrito Federal, conhecido como Reforma Benjamim Constant, chama de exame de madureza as provas realizadas por estudantes do Ginásio Nacional que houvessem concluído exames finais das disciplinas cursadas e que desejassem matrícula nos cursos superiores de caráter federal. Mas esses exames poderiam ser feitos por pessoas que já tivessem obtido o certificado de conclusão dos estudos primários do Primeiro Grau (de 7 a 13 anos) e que estivessem preparadas para se submeter a esses exames reveladores da maturidade científica do candidato (Parecer CNE/CEB nº 11/00, p. 15).
Em 1891, o Governo iniciou a Reforma Benjamim Constant, tentando substituir o currículo acadêmico por um currículo enciclopédico com disciplinas científicas, organização dos ensinos primário, secundário, normal e a criação do Pedagogium. Entretanto, essas intenções, como sempre, ficaram no papel e, com a extinção do Ministério da Instrução, esfriou o entusiasmo pela educação após 1894.
A partir de 1911, o Governo Federal promoveu nova legislação: a Lei Orgânica Rivadávia Correia proporcionou total liberdade aos estabelecimentos de ensino. Desoficializou-se o ensino. Porém, em 1915, a Reforma Carlos Maximiano reoficializou o ensino, reformou o Colégio Pedro II e regulamentou o Ensino Superior. A Reforma Luiz Alves/Rocha Vaz procurou estabelecer uma legislação que permitisse ao Governo Federal uma ação conjunta com os estados para o atendimento ao Ensino Primário. Entre 1894 e 1917, houve um “afrouxamento” da discussão educacional e pedagógica no seio das elites. Em contrapartida, com o nascente proletariado (pela industrialização e a elevação do grau de urbanismo), desenvolveram-se experiências educacionais inovadoras e independentes do Estado. Trabalhadores socialistas criaram e mantiveram escolas operárias em seus sindicatos. Nessa década, as elites intelectuais brasileiras perceberam que 85% da população brasileira é de analfabetos e a República pouco (ou quase nada) havia feito em matéria de educação para transformar o antigo súdito em cidadão (Ghiraldelli Jr., 1987, p. 87).
Nos anos 1920, muitos movimentos civis e mesmo oficiais se empenharam na luta contra o analfabetismo, considerado um “mal nacional” e “uma chaga social”. A pressão trazida pelos surtos de urbanização, os primórdios da indústria nacional, a necessidade de formação mínima da mão de obra do próprio país e a manutenção da ordem social nas cidades impulsionaram as grandes reformas educacionais do período em quase todos os Estados. Além disso, os movimentos operários, fossem eles de inspiração libertária ou comunista, passavam a dar mais valor à educação em seus pleitos e reivindicações. O Decreto nº 16.782/A, de 13/01/1925, conhecido como Lei Rocha Vaz ou Reforma João Alves, citada anteriormente, estabelece o concurso da União para a difusão do ensino primário. Dizia o Decreto: “poderão ser criadas escolas noturnas, do mesmo caráter, para adultos, obedecendo às mesmas condições do Art. 25”. O tal art. 25 obrigava a União a subsidiar parcialmente o salário dos professores primários atuantes em escolas rurais. “Aos estados competia pagar o restante do salário, oferecer residência, escola e material didático”.
A presença significativa dos processos de urbanização, a aceleração da industrialização e a necessidade de impor limites às lutas sociais existentes provocam de um lado uma maior presença do Estado no âmbito da “questão social”; de outro, maior controle sobre as forças sociais emergentes e reivindicantes. A educação primária das crianças passou a contar com os avanços trazidos pelas reformas dos anos 1930, mas não fez da escolarização de adolescentes, jovens e adultos um objeto de ação sistemática. Surgiram as ligas de combate ao analfabetismo, materializando o entusiasmo pela educação, chegando-se a pensar na alfabetização como instrumento político, “no sentido de abrir espaços no poder” monopolizado pelas oligarquias agrárias.
A Constituição de 1934 reconheceu, pela primeira vez em caráter nacional, a educação como direito de todos e (que ela) deve ser ministrada pala família e pelos poderes públicos (Art. 149). A Constituição, ao se referir no Art. 150 ao Plano Nacional de Educação, diz que ele deve obedecer, entre outros, ao princípio do ensino primário integral, gratuito e de frequência obrigatória, extensivo aos adultos (§ único, A). A Constituição de 1934, então, pôs o ensino primário extensivo aos adultos como componente da educação e como dever do Estado e direito do cidadão. Segundo o Parecer CNE/CEB nº 11/00, o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, não defende só o direito de cada indivíduo à educação integral, mas também a obrigatoriedade que, por falta de escolas, ainda não passou do papel nem em relação ao ensino primário, e se deve estender progressivamente até uma idade conciliável com o trabalhador produtor, isto é, até os 18 anos. O Plano Nacional de Educação de 1936/1937, que não chegou a ser votado devido ao golpe que instituiu o Estado Novo, possuía todo o Título III da 2ª parte voltado para o Ensino Supletivo, destinado a adolescentes e adultos analfabetos e aos que não pretendessem instrução profissional e aos silvícolas (a fim de comunicar-lhes os bens da civilização e integrá-los progressivamente na unidade nacional).
O Escolanovismo do Governo Vargas
Foi a partir dos anos 1930 que as oligarquias agrárias perderam o monopólio do exercício do poder, abriram-se espaços para os tecnocratas, militares e empresários industriais, e o país passou a redirecionar suas atividades pelo processo de substituição de importações. Cresceu a urbanização, marcada pelo ciclo de migração no sentido Nordeste-Sudeste. O regime liberal instituído pela Constituição de 1934 teve curta duração, pois o governo desencadeou violenta repressão contra as esquerdas (Intentona Comunista), pondo fim ao regime constitucional, instituindo o Golpe de Estado de 1937, implantando a ditadura do Estado Novo. A Constituição outorgada de 1937 foi fruto do temor das elites frente às exigências de maior democratização social e instrumento autoritário de um projeto modernizador excludente.
O Decreto nº 4.958, de 14/11/1942, instituiu o Fundo Nacional do Ensino Primário, constituído de tributos federais criados para esse fim e voltado para a ampliação e a melhoria do sistema escolar primário de todo o país (§ único, Art. 2º). A União prestaria assistência técnica e financeira no desenvolvimento desse ensino aos estados, desde que eles aplicassem um mínimo de 15% da renda proveniente de seus impostos em ensino primário, chegando a 20% em cinco anos. Por sua vez, os estados se obrigavam a fazer convênios similares com os municípios, mediante decretos-lei estaduais, visando repasse de recursos, desde que houvesse aplicação mínima de 10% da renda advinda de impostos municipais em favor da educação escolar primária, chegando a 15% em cinco anos.
A Constituição de 1946 reconheceu a educação como direito de todos (Art. 166), e no seu Art. 167, II, dizia que o ensino primário oficial é gratuito para todos.
Publicado em 09 de outubro de 2018
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