A necessidade de inclusão de novas temáticas no ensino: um debate entre a sistematização e a não sistematização

Douglas Moraes Barroso

Mestre em Geografia (FFP/UERJ), professor da rede estadual do Rio de Janeiro

Bárbara Policarpo

Mestranda em Geografia (FFP/UERJ), professora da rede estadual do Rio de Janeiro

O mundo digital contemporâneo e a popularização das redes sociais têm tornado latentes manifestações de preconceito, discriminação, posicionamentos contrários aos direitos humanos, entre outros problemas agudos, ampliando o debate dessas questões. Nesse contexto, tem se intensificado o debate do papel da escola e sua função social; essa temática tem sido palco de embates tanto na academia quanto na sociedade. No campo acadêmico, esse debate está longe de ser unânime, sendo caracterizado por inúmeras posições distintas, disputas que passam por ideias tradicionais, críticas e até pós-críticas (Silva, 2010).

Esse debate, além do campo acadêmico, tem tido grande notoriedade na sociedade em geral e no interior das escolas, e desdobra-se em duas questões cruciais que se constituem problema deste trabalho. A primeira é: será que os conteúdos clássicos presentes na escola dão conta de constituírem-se como subsídios para que os alunos consigam compreender de forma crítica, fundamentada, a sociedade em que vivemos? Considerando que não, é necessário acrescentar outras abordagens ou conhecimentos para esse fim?

Para investigar essas questões a partir do ponto de vista de professores que atuam em escolas públicas, foi realizada uma pesquisa em duas escolas de municípios distintos da rede pública estadual do Rio de Janeiro. A ideia foi avaliar, com base no recorte deste trabalho, se os professores pesquisados achavam necessário acrescentar novos temas, questões e conteúdos com vista a construir um melhor entendimento da nossa sociedade em suas múltiplas escalas e de que maneira isso poderia acontecer.

Desenvolvimento

Foi analisado o cotidiano das escolas onde os pesquisadores lecionam e se utilizou o aporte de dados específicos de duas pesquisas de mestrado (Barroso, 2018; Policarpo, 2018) desenvolvidas na rede estadual do Rio de Janeiro. Os dados analisados derivaram-se de entrevistas semiestruturadas realizadas com dez professores no Colégio Estadual Doutor Feliciano Costa (P1), no município de Nova Friburgo, em novembro de 2017, e com sete professores do Colégio Estadual Rubens Farrulla, no município de São João de Meriti (P2). Foram selecionadas questões a respeito da prática docente dos professores envolvidos, articuladas ao conceito de saberes docentes (Tardif, 2014) como aporte teórico para pensar quais os saberes mobilizados pelos professores nas aulas como ponte para o desenvolvimento de estratégias para inclusão de novas temáticas.

Os conteúdos clássicos são suficientes?

Nas entrevistas, percebe-se que grande parte dos professores vê como insuficientes os conteúdos dispostos no documento curricular. Porém há certo consenso de que os conteúdos hoje privilegiados são suficientes para que os alunos entendam questões e problemas da sociedade na qual estão inseridos; há também sensíveis diferenças sobre o que deveria ser acrescido, e de que maneira.

Existe a argumentação de que é possível, com base em articulações e contextualizações, dar conta com o documento curricular atual. Para pensar essa questão foi perguntado se é possível relacionar a prática e questões concretas à maioria dos conteúdos presentes no currículo oficial e nos livros didáticos. Como resultado, 30% indicaram que sim e 10% apontaram outras respostas; mais da metade, 60%, afirmam que não. Uma análise primária do documento curricular aponta que o conjunto de temáticas citadas está pouco presente. Conceitos importantes estão presentes, porém são altamente dependentes de uma articulação bastante elaborada na intervenção pedagógica. Na escola concreta do quadro e giz vivenciada na prática, parece que muitas vezes o conteúdo é o ponto de partida e a causa final; sua finalidade, sua aplicação, seu sentido, sua contextualização são pouco explorados.

Para uma sociedade mais igualitária, menos preconceituosa e, sobretudo, para que os indivíduos possam entender os problemas da sociedade e construir suas ideias de forma fundamentada em evidências, entende-se que é fundamental a abordagem de temáticas como direitos humanos, diversidade, identidade, preconceito, questões ligadas à realidade social como violência urbana, debates políticos, problemas sociais, projetos de sociedade, inadequação do espaço urbano concreto.

A inclusão de temáticas tangentes à realidade concreta é imprescindível ao exercício da cidadania; todavia, a abordagem dessas questões esbarra na limitação dos currículos formais e das práticas de ensino. Essa dificuldade deriva muitas vezes ao não constituir o campo dos clássicos cristalizados nos currículos, ou por não ser do domínio de estudo direto das disciplinas escolares, o que tende a implicar a abordagem de forma marginal.

Adotando a perspectiva que entende como importante remodelagem e inclusão de diferentes temáticas no ensino, a grande questão que deriva é o debate entre a sistematização, ou seja, a inclusão nas estruturas como o documento curricular, e a posição contrária, focada nas ações individuais dos sujeitos. No espectro pós-crítico, autores como Macedo (2006) têm empenhado a defesa em prol da não sistematização, derivada de uma epistemologia pós-estrutural, que tende à rejeição de sistematizações, de modelos, da ideia de universais e de propostas globalizantes. Sem perder de vista a importância desse debate teórico, privilegiamos pensar essa questão com base no recorte concreto.

Centralização x Descentralização

Dos indivíduos que concordam com a importância da ampliação do que é abordado pelo ensino tradicionalmente, existem diversas posições de como isso deveria ser feito: inclusão no documento curricular oficial e contrárias à inclusão no currículo, a defesa de uma abordagem pelo PPP (projeto político-pedagógico) ou pela ação individual dos professores. Buscou-se investigar a viabilidade desses três pontos de abordagem a partir de algumas variáveis, limites e desafios.

O primeiro ponto avaliado refere-se à possibilidade de o projeto político-pedagógico ser o interlocutor  da inclusão de tais temáticas, garantido assim que cheguem à ponta da linha. O PPP é sem dúvida um elemento de vital importância e de profundo significado no contexto de uma escola democrática e dialógica. No entanto, tomamos como perspectiva analisar a questão à luz da concretude real encontrada nas escolas, o que pôs como desafio pensar a operacionalidade do PPP. Para tal foi perguntado na escola P1 se “o PPP das escolas funciona na prática”. Todos os entrevistados responderam que não. Aparentemente, parte considerável das escolas ainda não utiliza essa ferramenta de forma efetiva. Uma segunda questão é: mesmo sendo operante, cada escola abordaria de forma diferenciada as temáticas, o que continuaria incorrendo no risco de não garantir o acesso global e de forma equânime, mas que também se choca com as críticas endereçadas à centralização. De qualquer forma, parece crível que, nas condições atuais do universo pesquisado, o PPP está longe de ser operante na inclusão de temáticas, o que o inviabiliza como uma opção sólida.

Outro ponto a ser pensado foi a perspectiva que aposta na ação individual docente e rejeita qualquer forma de sistematização. Esse ponto de vista leva a pensar duas questões: primeiro, o peso do currículo nas temáticas que são abordadas; a segunda questão é a hipótese da inexistência de um documento curricular. O problema é que o professor ou aborda um assunto aleatoriamente que incorre em forma sem nenhum conteúdo ou, se estabelece um planejamento mínimo, incorre na prática de que ele está produzindo um documento curricular ainda que não oficial. Perguntado se “o professor é capaz e tem instrumentos para construir sozinho um documento curricular”, 30% responderam que sim, porém a grande maioria (70%) diz que não.

Cada professor fazer seu próprio currículo pode trazer vários problemas, seja por falta de solução de continuidade, por ausência de abordagem articulada e global, seja pelo risco de alguns assuntos serem abordados excessivamente e outros, em contraste, serem esquecidos; não há possibilidade de organização e distribuição, entre outros.

É possível observar que existe uma ideia de que o currículo não tem grande impacto no que é ensinado, daí a ideia de modificar, inserir novas questões de forma sistematizada é pouco relevante, sendo a atuação individual docente na seleção do que será ensinado vetor central. Perguntado “qual ou quais os elementos determinantes para o que o professor ensina na sala de aula”, mais de 80% apontaram o documento curricular oficial como variável de maior peso. Conclui-se que o peso do documento oficial não pode ser negligenciado e qualquer política educacional que vise ter alcance e contundência na totalidade social precisa chegar a ele.

Conclui-se que propostas não sistematizadas, dentro das condições materiais atuais, têm sérias limitações, o que indica pouca contundência. Embora possa ser questionável, é crível que o documento curricular é de grande impacto no que é ensinado, mesmo que alguns professores não o utilizem como referência – o que ao menos no universo amostral se mostrou muito raro. O documento curricular orienta, tem capilaridade e é um espaço privilegiado ao ser forte garantia de que algo chegue às diversas escolas da rede. Se é desejável que algo chegue a cada aluno da extensa rede de ensino nas condições atuais, não é possível discutir tal alijado do documento curricular. Discutir currículo, documento curricular traz algumas críticas, porque aponta-se que isso resulta em engessamento, em limitação da ação docente e das práticas educativas, por estarem presas ao que é determinado por esses documentos.

Esse problema é relevante, pois a autonomia docente é elemento importante para uma educação de qualidade. A partir dessa questão, perguntamos: será que a existência de um documento curricular engessa completamente a atividade docente? Incorre em um processo direto de ensino mediado somente pelos objetivos do conteúdo? O currículo apagaria a individualidade do professor?

Sistematização, “engessamento” e os saberes docentes

A P2 apontou que o documento curricular tem papel importante no planejamento das ações educativas; todos os professores indicaram adotar o Currículo Mínimo em seu planejamento didático. Apenas um professor relatou que não empregava sempre. Além do planejamento, o documento curricular tem impacto na prática; contudo, com uma ressalva importante: apenas 14% indicaram que o empregavam sem adaptações. Isso é importante porque, embora aponte que o currículo constitua-se como base, não incorre em reprodução mecânica ou em engessamento determinante. Os professores apontaram fazer adaptações e reinterpretações, o que, sem desidratar o papel do currículo, dá relevo aos saberes docentes, ao seu percurso e às experiências pessoais.

Quadro 1: Perfil de faixa etária e tempo de profissão dos entrevistados

  Prof. 1 Prof. 2 Prof. 3 Prof. 4 Prof. 5 Prof. 6 Prof. 7
Uso do livro didático Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Uso do Currículo Mínimo para planejamento Sim Sim Sim Sim Sim Às vezes Sim
Adoção do Currículo Mínimo Sim c/ adap. Sim c/ adap. Sim Sim c/ adap. Sim c/ adap. Sim c/ adap. Sim c/ adap.

Fonte: Pesquisa de campo (P2).

Outro aspecto a ser destacado é que, quando perguntamos “como a formação pessoal e profissional interferem em sua atuação como professor”, a maioria (86%) trouxe apontamentos da importância de vivências e experiências pessoais.

Não existe um caminho direto que vai do conteúdo ao aluno; sempre há mediação. Mesmo que ensinem o mesmo conteúdo, diferentes professores nunca irão ensinar da mesma forma. O professor não é uma entidade abstrata, é uma pessoa com uma história de vida, leituras de mundo, toda uma subjetividade que não cabe apenas nos seus saberes acadêmicos, o que dá relevo a importância dos saberes docentes.

O saber docente, de acordo com Tardif (2014), tem diferentes naturezas; advém dos conhecimentos científicos, saberes “eruditos” adquiridos a partir das disciplinas universitárias e currículos escolares ou dos conhecimentos técnicos, de saberes de ação e das habilidades de natureza artesanal – construídos a partir de larga experiência de trabalho.

O saber dos professores é a união entre as condições concretas nas quais seu trabalho se realiza, sua personalidade e sua experiência profissional. Assim, o saber dos professores transita entre o individual e o social, quem eles são e o que vivem, formando um todo em sua atuação profissional (Tardif, 2014). Com o intuito de sustentar tal perspectiva, o autor utiliza o que seria, de acordo com ele, "fios condutores" da atuação profissional; um deles é a relação entre saber e trabalho.

Saber e trabalho trazem a concepção do saber a serviço do trabalho; ou seja, os saberes mobilizados pelos professores no dia a dia têm estreita relação com o seu trabalho, com suas necessidades diárias; os saberes estão à disposição dos professores que irão mobilizá-los, dependendo do cenário que eles encontram. Tardif (2014) defende amplamente tal ideia, pois para ele ao trabalhar o professor aprende, algo prático que surge com o ato de trabalhar, que surge com a "necessidade".

Se o professor mobiliza seus saberes de acordo com sua prática, a possibilidade de desenvolver ações que atendam as necessidades dos alunos para além do saber científico, aquele que é selecionado como conteúdo único a ser ensinado na escola, é necessária e real.

O conceito de saberes docentes aqui é importante porque o debate da ideia de sistematização mostra que ela não necessariamente incorre na desconsideração da subjetividade na mediação da aprendizagem e torna pouco sustentável a ideia de um engessamento. Por outro lado, considerar os saberes docentes e os sujeitos concretos existentes não esvazia o impacto dos documentos curriculares, por exemplo.

Conclusão

Por um viés que se pauta na análise das condições da escola concreta, entende-se que, a partir dessa investigação, alguns apontamentos são possíveis. Em primeiro lugar, é necessário reafirmar a importância do professor e de sua autonomia, da construção dos projetos político-pedagógicos e sobretudo da construção conjunta de um currículo e de conhecimentos que integrem as ciências, escola, comunidade, alunos. O PPP e políticas de construção coletiva são importantes, porém o universo pesquisado mostrou que estão longe de ser algo funcional, o que indica a necessidade de se pensar o que está faltando, pensar caminhos para reverter esse quadro.

É preciso romper o modelo de imposição vertical que limita a escolha do que deve ser ensinado ao domínio dos “especialistas” e exclui os professores desse processo; sobretudo, é necessária uma educação orientada à construção de uma sociedade e uma vida melhor para as pessoas. Maior inclusão de assuntos, problemas e desafios da sociedade atual, destacando questões sociais, espaciais, políticas, identitárias, é fundamental para isso. Nesse sentido, aponta-se que, na estrutura atual da educação, a inserção dessas temáticas nos documentos curriculares, na base comum, é estratégia fundamental para que elas possam chegar à totalidade do público de estudantes pela capilaridade, peso e alcance que esses elementos têm. Da mesma forma, não parece razoável a crítica de que um documento curricular apaga a individualidade do professor porque todo conteúdo é sempre interpretado, (re)significado, mediado pelos saberes docentes, não existe transmissão direta.

Privilegia-se o espaço do currículo, porém como construção coletiva, que não deve ser fossilizada; a sociedade é dinâmica e a necessidade de atualização do mesmo frente aos desafios e questões que vão surgindo é constante.

Referências

BARROSO, D. Intelecção, leitura de mundo e o ensino de Geografia. 2018.

LOPES, A. C.; MACEDO, E. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

MACEDO, Elizabeth. Currículo como espaço-tempo de fronteira cultural. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 32, p. 285-372, maio/ago. 2006.

MOREIRA, Antonio Flavio; SILVA JUNIOR, Paulo Melgaço da. Conhecimento escolar nos currículos das escolas públicas: reflexões e apostas. Currículo sem Fronteiras, v. 17, n. 3, dez. 2017.

POLICARPO, B. Os professores de Geografia e os saberes docentes: um estudo das práticas curriculares. 2018.

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

Publicado em 27 de novembro de 2018

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