O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) de Geografia em uma escola pública em Campos dos Goytacazes

Ives da Silva Duque-Pereira

Professor de Geografia na rede estadual do Rio de Janeiro (Seeduc/RJ), mestrando em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas (UFF)

Edimilson Antônio Mota

Professor ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF), doutor em Educação (UFRJ)

Introdução

O presente trabalho relata a experiência, da perspectiva do professor supervisor, dentro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) na formação inicial de licenciandos em Geografia na UFF, tendo como locus de ação pedagógica o Colégio Estadual Dr. Thiers Cardoso. Há, no âmbito do Pibid de Geografia em Campos dos Goytacazes, preocupação em relação à construção identitária do negro no contexto do século XXI no que diz respeito à luta por direitos e reconhecimento de si como sujeito formador de uma sociedade heterogênea e multicultural. A ação/reflexão educativa no contexto escolar esteve voltada para o reconhecimento de uma identidade étnico-racial que permitisse o descortiçamento dos conflitos raciais vivenciados e a valorização do negro a partir de si, como sujeito detentor de direitos emancipatórios em uma sociedade excludente. Lutar contra o racismo é reconectar a escola com a sociedade em um contexto multicultural. É formar um sujeito plural que seja capaz de lidar com a fragmentação típica da sociedade contemporânea. Lutar contra o preconceito é descortinar as relações que se estabeleceram no passado, é conduzir a uma reflexão no espaço e tempo presentes e vislumbrar as muitas possibilidades do sujeito diante dessa complexa relação. Isso foi feito na forma de uma série de atividades em que o diálogo sobre o tema esteve presente todo o tempo; como forma de expressão, os alunos puderam construir mensagens em diversos formatos, como textos, quadrinhos e imagens.

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) tem por objetivo oferecer bolsas a alunos de licenciatura, articulando uma participação antecipada junto ao ensino público da Educação Básica. Esse vínculo é feito por meio de estágio em que professores da rede pública supervisionam o trabalho dos bolsistas; todos são coordenados por um professor da universidade. O presente trabalho se debruça sobre as atividades do Pibid com alunos de Licenciatura em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Campos dos Goytacazes/RJ.

O século XX foi marcado por rupturas em diversos contextos. A questão da identidade, do sujeito inserido na modernidade tardia, gerou discussões que encontram campo de desdobramento no dia a dia das escolas. Concomitantemente, essa questão identitária se estabelece em um espaço que é geográfico, manifestando no lugar de vivência dos alunos todos os conflitos inerentes a essa temática.

As questões raciais fazem parte de um amplo debate que encontra na educação formal uma oportunidade para o desenvolvimento de temas e elucidação de fatos. O trabalho do Pibid foi desenvolvido tendo como aporte a Lei nº 10.639/03, que versa sobre o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas e os conteúdos pertinentes da disciplina de Geografia que tratam as questões étnicas e raciais.

Incontestavelmente a escola faz parte do locus de lutas ideológicas que permeiam a sociedade, provocando tensionamentos visíveis. Freire (2011) já proferia a máxima de que educar é um ato político, pois estamos a todo instante lidando com ideologias que ora conflitam, ora caminham em conformidade com a reflexão produzida nas salas de aula. Cabe aos profissionais da educação conduzir conscientemente um debate para a formação cidadã dos alunos.

O Colégio Estadual Dr. Thiers Cardoso, em Campos dos Goytacazes/RJ, recebeu bolsistas pibidianos no 8º ano do Ensino Fundamental e 1º e 2º anos do Ensino Médio durante o ano de 2017. As atividades foram pensadas para serem desenvolvidas de acordo com o perfil dos educandos de cada série. O projeto envolveu a utilização do lúdico e da experimentação para a apropriação de conceitos e discussões. Música, quadrinhos, saída em campo, oficinas diversas como hip hop, capoeira, grafite e confecção de turbante foram algumas das estratégias utilizadas.

Leitura do mundo

Os paradigmas dominantes não conseguem lidar com o multiculturalismo por medo de deixar de ser dominantes. A conscientização e o saber lidar com a diversidade promove a verdadeira democracia. Quando se impede o multiculturalismo de agir, impede-se também a democracia de exercer sua plena autonomia de regência da vida nas sociedades. Por isso, quando se fala em educação há um embate, e os frutos multiculturais, como a Lei nº 10.639/03, são resultado de lutas históricas por setores conscientes da sociedade que se organizam.

A escola faz parte do locus de embates ideológicos e precisa observar suas dificuldades, superando-as. Candau (2008) chama a atenção para a dificuldade que a escola possui para lidar com a diferença, adotando o caminho mais fácil de homogeneização e padronização. Observa-se ainda uma escola desenraizada da sociedade, ainda conectada à antiga ideia de fabricar um sujeito moderno, centrado e único. Porém o mundo mudou e a escola ficou presa a antigos paradigmas.

Para Silva (2009), muitas identidades se estabelecem historicamente, buscando um apelo em determinado tempo para se afirmarem. Entretanto, a história é produzida em um espaço/tempo definido. Assim, não somente um ponto específico no tempo deve ser buscado para afirmar uma identidade histórica, mas também as relações concebidas no espaço.

A globalização permitiu o contato com as múltiplas representações identitárias ao redor do planeta, facilitando o processo de significação por meio do acesso aos símbolos existentes em culturas que são produzidas em espaços diversos. Esse contato fortaleceu o multiculturalismo, pois permitiu a associação livre entre sujeitos. Esse fortalecimento permitiu perceber que, se a identidade é relacional e marcada por diferença e exclusão, o racismo foi se constituindo como elemento de afirmação da sociedade brasileira como elite dominante europeia.

Em oposição a uma homogeneização cultural promovida pela globalização, o que se observa surgir é uma afirmação de identidades locais como forma de resistência. É o que Silva (2009) chama de identidade sustentada pela exclusão, marcada pela diferença. Dessa forma, os símbolos de resistência promovem uma significação que diz quem se é dentro de um contexto espaço-temporal. Essa marcação está presente nos movimentos negros de diversas formas, como a valorização do uso do cabelo no estilo black power, turbantes e a busca por grafismos africanos em peças de roupa, cartazes, tatuagens etc.

Diante desse quadro, a Geografia contribui para o debate quando estabelece categorias de análise em que o espaço geográfico é estipulado pelas relações sociais que se materializam no contexto em que está inserido. Essa dinâmica, que está presente no cotidiano dos alunos, deve provocar reflexões pertinentes acerca de temas diversos, inclusive os raciais.

Cada lugar vai ter marcas que lhe permitem construir a sua identidade. Um lugar é a reprodução, num determinado tempo e espaço, do global, do mundo. As relações não são pautadas pelo espaço, pela proximidade, pela contiguidade; muito pelo contrário, ultrapassam as distâncias lineares [...]. Cada fenômeno está articulado a complexas relações que acontecem em outros lugares (Castrogiovani, 2000, p. 109).

Com base no cotidiano, o lugar precisa tomar forma e entendimento de suas características e feições. É no contexto escolar que se provoca a reflexão acerca do lugar de vivência dos alunos, trazendo à luz o debate sobre o racismo. As marcas de identidade devem ser reveladas, e as relações devem ser elucidadas demonstrando as articulações existentes com o outro e as relações de poder que atuam ali. Ao tensionar essas questões, contradições surgirão, com o discurso dominante estando presente no discurso dos dominados. Por isso, não é incomum alunos negros com atitudes racistas, em que estão simplesmente reproduzindo suas vivências no espaço relacional com o outro.

Experiência com o Pibid

O trabalho com o Pibid foi realizado com onze bolsistas do curso de licenciatura em Geografia da UFF-Campos dos Goytacazes, cinco atuando no 8º ano do Ensino Fundamental, três no 1º ano do Ensino Médio e três no 2º ano do Ensino Médio. Cada um ficou responsável por acompanhar uma turma e houve um trabalho em equipe, formada de acordo com as afinidades estabelecidas entre os próprios bolsistas. Dessa forma, práticas e atividades eram pensadas em conjunto e aplicadas separadamente, tendo o apoio dos demais.

Uma vez por semana ocorre uma reunião com o professor coordenador, os professores supervisores e todos os bolsistas para a leitura e discussão de textos acadêmicos de base e de apoio, assim como planejamento e debate de ações. Essas reuniões foram essenciais para fornecer ferramentas teóricas e levantar debates pertinentes para que a prática fosse realizada com eficácia; elas também funcionavam como forma de mensurar e acompanhar todo o trabalho que estava sendo realizado.

No início se fez necessário um período de observação e ambientação em sala de aula, tanto para os bolsistas quando para professor e alunos. Nesse período se observou a importância do reconhecimento, da quebra do estranhamento, de haver elementos de fora no contexto escolar. Observou-se que estabelecer vínculos facilitou a dinâmica de interação entre turma e bolsistas quando foi necessária a atuação com as práticas pensadas.

O adolescente é um ser em formação no sentido mais amplo e em demasiados aspectos. A complexidade que se impõe ao trabalhar com alunos da Educação Básica é latente diante dos conflitos que surgem a todo instante. Sexualidade, drogas, violência, abandono, dificuldades cognitivas, exclusão social e racismo são alguns temas que transpassam o trabalho do professor na sala de aula. Os embates surgidos por causa de algum desses temas são constantes e exigem do profissional da Educação uma permanente reflexão e a aplicação de práticas pedagógicas que mais se adéquam.

Após observar, buscou-se traçar o perfil de cada turma, em uma tentativa de identificar a melhor maneira de trabalhar em cada situação. Com a proposta de discutir o racismo, tendo em vista as questões de identidade e as relações que se estabeleciam entre os próprios alunos, não restou dúvida de que as discussões a serem tratadas deveriam partir do cotidiano do educando.

Quanto às questões raciais, se faz necessário apontar as relações de dominação existentes entre as raças, desconstruindo um discurso culturalmente – e historicamente – estabelecido, possibilitando a manifestação de novas identidades tendo como base o multiculturalismo. Para que isso ocorresse, foi preciso levar o aluno a fazer uma leitura do seu mundo. Freire (2011) destaca que a leitura do mundo à volta dos alunos antecede a leitura da palavra escrita. Quando o educador atenta para a experiência existencial do aluno e não para a sua própria, terá resultados muito mais significativos.

Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar essa constatação evidente, enquanto educador ou educadora, significa reconhecer nos outros – não importa se alfabetizando ou participantes de cursos universitários; se alunos de escolas do primeiro grau ou se membros de uma assembleia popular – o direito de dizer a sua palavra. Direito deles de falar a que corresponde o nosso dever de escutá-los (Freire, 2011, p. 37,38).

A primeira dificuldade enfrentada foi a reprodução de um discurso dominante e a apropriação de uma identidade subserviente imposta ao negro, que é tido como inferior. “Lidar com o cotidiano é, em princípio, lidar com alienações superiores à necessidade bruta do alimento, da casa, transcendendo o nível estrito de sobrevivência” (Damiani, 2010, p. 163).

O primeiro passo foi uma tomada de consciência em que foi necessário pensar na formação da identidade do povo brasileiro, do negro e do branco especificamente, elucidando os paradigmas de dominação impostos. Foi preciso refletir sobre a formação do discurso racista que impregna a sociedade e a sua reprodução inconsciente, em uma tentativa de desvelar a naturalização do preconceito presente nas pequenas atitudes, como ofensas proferidas entre os próprios alunos.

Tendemos a uma visão homogeneizadora e estereotipada de nós mesmos, em que nossa identidade cultural é muitas vezes vista como um dado “natural”. Desvelar essa realidade e favorecer uma visão dinâmica, contextualizada e plural das nossas identidades culturais é fundamental, articula-se a dimensão pessoal e coletiva desses processos. Ser conscientes de nossos enraizamentos culturais, dos processos de hibridização e de negação e silenciamento de determinados pertencimentos culturais, sendo capazes de reconhecê-los, nomeá-los e trabalhá-los constitui um exercício fundamental (Candau, 2008, p. 26).

A partir desse momento, foi preciso atuar sobre as representações do outro para que uma identidade fosse reconstruída. Dessa forma, a diferenciação foi determinante para que houvesse identificação por meio de símbolos presentes no cotidiano vivido no lugar do educando. Para que isso ocorresse, foi pensado no lúdico e na experimentação como forma de alargar o campo de visão dos alunos.

Parte do 8º ano trabalhou com músicas que falassem a linguagem dos alunos e suas letras representassem seu cotidiano. A outra parte analisou histórias em quadrinhos em que a exclusão do negro foi sentida e ressaltada como resultante de uma ideologia dominante. No 1º ano, foi realizada uma saída de campo para uma fazenda colonial que hoje é museu e para um remanescente de quilombo no município de Quissamã/RJ. No 2º ano foi realizada uma série de oficinas, dentre elas grafite, dança hip hop, capoeira, confecção de turbante e roda de conversa sobre mulheres negras na sociedade.

O rapper chama a atenção por cantar com as gírias usadas pelos próprios alunos e com uma letra que fala do seu lugar; a oficineira, que é percebida orgulhosa em exibir uma textura de cabelo que é a mesma das colegas de sala; os movimentos de dança que revelam as mesmas expressões do baile funk do bairro; a história que conta a origem e as lutas do seu tom de pele, os grafismos que expressam o que palavras não conseguem e a conversa que coloca no centro personagens que antes estavam apenas no rodapé dos livros.

Essas atividades levam a uma descoberta de um “eu” que se reconecta com identidades escondidas pela cultura hegemônica.

Portanto, é importante promover processos educacionais que permitam que identifiquemos e desconstruamos nossas suposições, em geral implícitas, que não nos permitem uma aproximação aberta e empática à realidade dos “outros”. Os “outros”, os diferentes, muitas vezes estão perto de nós, e mesmo dentro de nós, mas não estamos acostumados a vê-los, reconhecê-los, valorizá-los e interagir com eles (Candau, 2008, p. 31).

Por fim, após um processo de experimentação e de colocação no lugar do outro, que em alguns casos é a si próprio – antes alienado –, os alunos produziram um texto que deveria expressar sua opinião sobre o racismo. Observou-se um interesse por grande parte dos alunos em expressar vivências e expor situações pessoais para enfatizar os argumentos postos.

Contudo, ainda assim, depois de todo esse processo, houve alguns casos em que se identificou a falta de interesse na participação, ao perceber redações plagiadas da internet. A hipótese levantada nesses casos foi de desinteresse por negação. Sabe-se que “a integração entre os diferentes está muitas vezes marcada por situações de conflito, de negação e exclusão, que podem chegar a diversas formas de violência” (Candau, 2008, p. 31). Dessa forma, constitui-se um desafio a ser enfrentado, alternativas a serem buscadas e práticas específicas exercidas no intuito de derrubar muros ainda erguidos contra o tema.

Conclusão

Há uma tripla vantagem no vínculo estabelecido pelo Pibid: cria-se uma associação entre a universidade e a escola pública, em que há troca de experiências e crescimento mutuo; há a oportunidade dos professores que estão longe da academia de voltar a ter contato com práticas e conceitos, assim como de ter acesso a novas maneiras de pensar e fazer a educação. Por outro lado, a experiência dos bolsistas ao estar diante da realidade em sala de aula faz com que sua formação seja enriquecida pela prática e pela experimentação; portanto, ao final do curso se tornarão profissionais melhores. Para a universidade que abriga cursos de licenciatura, é uma oportunidade de aplicar toda a teoria acerca de práticas pedagógicas e aferir sua eficácia.

O contato com o Pibid oxigena e impulsiona o pensamento do professor da Educação Básica em direção a novas maneiras de agir que são mais apropriadas à realidade vivida. É preciso conhecer para entender as múltiplas faces que surgem no contexto atual da educação. Ao se conhecer os alunos como seres múltiplos, com identidades cambiantes, pode-se direcionar ações pedagógicas mais eficazes na formação cidadã, pois dessa forma a escola estará andando em conformidade com a sociedade vigente, havendo assim um religamento entre escola e sociedade.

Referências

CANDAU, Vera. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.

CASTROGIOVANI, Antonio. Ensino de Geografia: práticas e textualizações no cotidiano. Porto Alegre: Mediação, 2000.

DAMIANI, Amélia. O lugar e a reprodução do cotidiano. In: CARLOS, Ana. Novos caminhos da Geografia. São Paulo: Contexto, 2010.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

MOTA, Edimilson. O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do ensino de Geografia. 2013.

SILVA, Tomaz (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2009.

Publicado em 06 de março de 2018

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