Sobre a humildade necessária para aprender e reaprender
Ailza de Freitas Oliveira
Doutoranda em Educação (PPGE/UFPB)
Fernando Antonio Abath Luna Cardoso Cananéa
Doutor em Educação (PPGE/UFPB)
Iniciando o diálogo
O conhecimento não é um dado nem acontece sem condição prévia; é um saber metódico e produto de um processo, representando uma forma de consciência sobre a realidade, e tem a linguagem como uma percepção da realidade que o medeia. Tal tese, que defenderemos ao longo deste ensaio, tem como pauta o conhecimento em sua vertente epistemológica, em que “o conhecimento entende-se como um ‘reflexo’ do mundo no ser vivo” (Pinto, 1979, p. 20), e a epistemologia, um ramo dos estudos filosóficos que buscam estudar o conhecimento a partir da sua origem, estrutura, métodos e validade; percebemos que “sem referência à epistemologia, toda teoria do conhecimento seria uma meditação sobre o vazio” (Japiassu, 1981, p. 50), por não tratar de comprovações válidas, metodológicas, estruturantes e originárias.
Numa concepção idealista do saber voltado ao pragmatismo mercantilista, na era da barbárie, conforme afirma Rouanet (1993), fragmentamos o conhecimento, anulando o espírito crítico que deveria habitar todo cientista, com sistematização, reflexão e criticidade. “É então que se percebe que a ciência constrói seus objetos, que nunca ela os encontra prontos. (...) Um conceito torna-se científico na proporção em que se torna técnico, em que está acompanhado de uma técnica de realização” (Bachelard, 1996, p. 77). Assim, método e técnica sistematizados são vitais para a existência do conhecimento. Dessa forma, “a epistemologia faz com que o objeto da história das ciências seja um objeto não dado, mas um objeto construído, um objeto cujo inacabamento é essencial” (Japiassu, 1981, p. 51). Esse inacabamento se pauta na consciência de que o aprender é processual, assim como são a ciência, o conhecimento e o que por ora afirmamos pela linguagem escrita neste ensaio. “No homem, tal característica consiste em que o conhecimento só pode existir como fato social” (Pinto, 1979, p. 18), encharcado de realidade (existência) e transmitido por intermédio da linguagem, como signo tricotômico, com significado, significante e referência.
Um aspecto que marca a construção do objeto das ciências e seu inacabamento é a mutação que tal objeto adquire diante das várias abordagens metodológicas. Isso comprova a influência da linguagem como mediadora na construção do conhecimento, bem como sua interferência no que é real para cada época, lugar e grupo social. Por isso os objetos da ciência transmutam de acordo com os métodos, por exemplo, quando nos referimos ao positivismo. “Com efeito, pode-se dizer, nesse sentido, que todo objeto de ciência é uma coisa” (Durkheim, 1999, p. XIII). Na fenomenologia, o objeto é o fenômeno, ou seja, “todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no médium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete” (Gadamer, 2012, p. 503). No método crítico-dialético, o objeto é descrito por Marx (1977) como as relações; e no pós-estruturalismo, o objeto é a complexidade. Assim, segundo Morin (1999, p. 284),
com efeito, os universais cérebro/espirituais do conhecimento só podem manifestar-se através das condições socioculturais singulares e particulares; mais ainda, o conhecimento humano nunca dependeu exclusivamente do cérebro; o espírito forma-se e emerge cérebro-culturalmente na e através da linguagem, que é necessariamente social e, via espírito (aprendizagem, educação), a cultura de uma sociedade imprime-se literalmente no cérebro, ou seja, inscreve nele os seus caminhos, estradas, encruzilhadas.
Selecionar para aprofundamento uma das formas metodológicas não é nosso objetivo neste ensaio, mas registrar a diferença do objeto, ou seja, do real, em cada vertente metodológica do conhecimento, reforça a nossa tese de que, por intermédio da linguagem o conhecimento é corporificado, uma vez que “A linguagem é a linguagem da própria razão” (Gadamer, 2012, p. 519); razão que nos permite perceber que “o conhecimento humano é ao mesmo tempo cultural, espiritual, cerebral e computante” (Morin, 1999, p. 247), ou seja, científico e contextualizado, abalizado e emocional.
Por isso, fundamentaremos nossos escritos em bases sedimentares nas ideias dos autores que constam no referencial, acreditando que “o intelecto não regulado e sem apoio é irregular e de todo inábil para superar a obscuridade das coisas” (Bacon, 1988, p. 17); tais ideias nortearão as nossas, compondo este artigo.
Para trilharmos o caminho traçado, discorreremos, neste percurso da linguagem escrita, pontuando o texto inicialmente onde apontaremos de que lugar social produzimos tais registros. Sendo assim, vale o registro consciente de que nosso texto de agora e todos os textos produzidos por todos os autores se constituem de um misto entre leituras diárias, de coisas, fatos, situações, textos, apontamentos, debates, diálogos, uma fusão de vozes que, refletidas, apontam para as compreensões agora explanadas. Embora nos seja atribuída a autoria, e a nós seja direcionado o possível sucesso ou fracasso do que aqui pontuamos, não podemos nos furtar a saber que tal construção se deu como resposta ao que coletivamente vivenciamos em estudos ao longo das etapas acadêmicas. Assim, nosso texto é coletivo, como é a construção do saber, do conhecimento, da ciência, do ser. A autoria compartilhada das ideias que agora expressamos nos remete ao fato de que
terei, entretanto, a satisfação de demonstrar, neste discurso, quais os caminhos que percorri e de apresentar a minha existência como em um quadro, para todos poderem julgá-la e para que, conforme a opinião geral que se tiver, adquira eu novo meio de me instruir, que ajuntarei àqueles que costumo usar (Descartes, 1978, p. 15-16).
Como todo texto, composto na colcha de retalhos que constitui as vozes que nos cercam, os saberes que adquirimos e as certezas temporais que defendemos estão aptas à dilatação de novas e até contraditórias certezas, conforme evolui nossa busca científica. Igualmente, percebemos, conforme afirma Grespan (2011, p. 292), que, “se reconhecemos não existir objetividade pura, mas apenas a perpassada pelas incontáveis subjetividades que convivem objetivamente no mundo”, então, “não há por que descartar a ideia mesma de verdade, que poderia ser definida como o acordo das subjetividades” (Grespan, 2011, p. 292). Possivelmente, o equilíbrio entre objetividade e subjetividade na pesquisa é a opção mais viável e próxima do acerto. Pois, como tudo, o conhecimento também é mutável.
Esse equilíbrio pode ser atingido na consciência de que “no nível pré-teórico em que escolhemos nossos objetos de estudo o bom senso e a intuição são tão fundamentais quanto, no nível teórico em que se realiza o estudo, o rigor e o espírito de objetividade” (Rouanet, 1993, p. 14) Reafirmado isso, sigamos na busca por aprender, tendo como plausível a afirmativa que apregoa que “meu pensamento claro e distinto serve-se sempre de pensamentos já formados por mim ou pelo outro e fia-se na minha memória, quer dizer, na natureza de meu espírito, ou na memória da comunidade de pensadores, quer dizer, no espírito objetivo” (Merleau-Ponty, 2006, p. 70). Conforme foi citado, nosso texto é oriundo do contexto de produção e do trilhar coletivo entre estudos e reflexões; assim, é grifado no plural.
Etapas da escrita
Nesta etapa argumentativa, registramos o lugar social de nossa produção, com postura que será de respeito aos textos acadêmicos e seus autores, que são produtores, transmissores ou consumidores de conhecimentos, mas antes de escritores são pensadores de suas épocas, humanos, seres vivos e, por isso, dignos de deferência. Desejamos, ao longo da defesa de qualquer tese que escrevermos, dialogar com respeito com os escritos que motivaram essa produção, inclusive e especialmente quando nos referirmos a ideias das quais discordamos.
Discutindo, refletindo e pautando nossos apontamentos nos autores, desejamos discorrer conforme elegantemente nos colocam os nobres autores, ao ilustrar suas compreensões com citações de autores outros, em oposição àqueles que de forma grosseira utilizam de textos para desqualificar quem os produziu, ao mesmo tempo que julgam adjetivar de forma qualitativa seus inscritos.
As histórias mais fiéis, se não modificam ou aumentam o valor das coisas para fazê-las mais dignas de serem lidas, pelo menos não referem frequentemente as circunstâncias mais baixas ou menos ilustres; então o restante não surge tal qual é e os que regulam seus costumes pelos exemplos aí encontrados expõem-se a cair nas extravagâncias dos paladinos dos nossos romances e a imaginar empresas que vão além de suas próprias forças (Descartes, 1978, p. 19-20).
Ancorar-se na desqualificação do que o outro produz, almejando qualificar o vosso, é uma prática comum que nos incomoda e faz crer na pobreza espiritual de quem pratica, independentemente de quão rico é o conhecimento apontado pelo prepotente autor. “Os homens libertam-se pouco a pouco da brutalidade quando de nenhum modo se procura, de propósito, conservá-los nela” (Kant, 1783, p. 6). Criticar deliberadamente os textos dos outros, sem considerar os aspectos sociais de produção, é uma forma infeliz a que recorrem para a manutenção dessa brutalidade. “É importante evitar um modelo de ‘escola’ simplista demais, supondo, por exemplo, que os discípulos sempre seguem cegamente o mestre ou que todos os membros aceitam o mesmo paradigma intelectual. Os mestres às vezes aprendem com os discípulos” (Burke, 2012, p. 306). E isso não é raro; pelo contrário, é bastante comum. No entanto, para que mestres percebam que podem aprender com discípulos, eles precisam se despir do orgulho que impera em academias e se vestir da humildade necessária para aprender e reaprender.
Vale salientar que, ao apontarmos essa postura ideológica que trilha à luz da educação popular, nos preceitos da cooperação, emancipação, diálogo, amorosidade, respeito, entre outros, não estamos diante de um obstáculo epistemológico, conforme defende Bachelard (1996, p. 20), em que o termo “obstáculo epistemológico” é utilizado como sinônimo de estagnação, inércia e regressão que ocorre no ato de conhecer. Nem estamos imersos na “menoridade culpada” afirmada por Kant (1786, p. 1). Pelo contrário, não jazemos indispostos na aquisição do saber oriundo de autores com “instinto conservativo” e imersos no “narcisismo intelectual”, mas atentos à humildade necessária naqueles que ensinam para com aqueles que em sintonia aprendem. “Assim, por paradoxal que possa parecer, fundar uma nova instituição – uma universidade, por exemplo – pode exigir menos esforço do que reformar uma antiga” (Burke, 2012, p. 300), tamanha é a cristalização dos fazeres e pensares em algumas instituições de aprender e ensinar.
Sobre a humildade necessária para aprender e reaprender, apontamos concordância com Merleau-Ponty (2006, p. 70), por afirmar que “considerar concedido que nós temos uma ideia verdadeira é crer na percepção sem crítica”. Em oposição a Bacon, quando este defende que “não é, com efeito, empresa fácil transmitir e explicar o que pretendemos, porque as coisas novas são sempre compreendidas por analogia com as antigas” (1988, p. 19). Para nós, a analogia com o já apreendido facilita o processo, refutando ou reafirmando o conhecimento ampliado com o contexto. Sobre isso, Gadamer (2012, p. 555-556) cita a analogia como método de investigação de Platão, pautando como um dos princípios da linguagem no que se refere à formação das palavras. Também sobre analogia, coloca-se o autor abaixo:
Portanto, é bastante compreensível que tais situações, projetadas para o interior da realidade com base em analogias, se tornem imediatamente eficazes como existentes, que a práxis, e sobretudo sua fundamentação intelectual e social, também permaneçam fortemente orientadas para a realidade (Lukács, 2010, p. 40).
Compreender algo novo por analogia com o já sabido nos faz acreditar que “o conceito de ‘ciência’ é uma construção histórica, não podendo ser elaborado aprioristicamente, sem levar em conta a pluralidade das ciências, suas reorganizações e sua inserção no contexto socioideológico” (Japiassu, 1981, p. 54). Assim, o contexto é mister na compreensão de que “o crescimento do conhecimento marcha de velhos problemas para novos problemas por meio de conjecturas e refutações” (Popper, 1975, p. 236). Conjecturando ou refutando, o conhecimento se constrói.
Estas páginas visam situar o leitor sobre nosso ponto de partida na produção escrita, conforme sinalizamos no início deste ensaio; as páginas foram produzidas na consciência de que “conceitos normativos, como a opinião do autor ou a compreensão do leitor originário, representam, na realidade, apenas um lugar vazio que se preenche de compreensão, de ocasião para ocasião” (Gadamer, 2012, p. 512). Assim, almejamos que a compreensão rume ao vislumbre de que tudo o que vamos lendo e refletindo, passamos a registrar na escrita para apreciação avaliativa dos que leem e, consequentemente, a apreciação autoavaliativa destes que escrevem.
Como a compreensão se preenche de ocasião para ocasião, de locutor para receptor, de mensagem para mensagem, precisamos estar abertos a aprender e reaprender em sintonia com cada vivência.
Exposto o nosso lugar de produção, respaldados em Descartes, quando afirma, sobre suas máximas, que “estavam baseadas exclusivamente na resolução que firmara de continuar instruindo-me” (1978, p. 56), trilharemos a seguir os caminhos que conduzem a nossa compreensão sobre nossas novas leituras, estudos e reflexões, sejam elas acadêmicas ou não; nosso lugar, seja ele de produção, aquisição ou disseminação do conhecimento, é fundamentalmente o lugar de quem reconhece ser necessária a humildade para aprender e reaprender. Sempre.
Referências
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Publicado em 03 de abril de 2018
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