Como matar um químico
Esteban Lopez Moreno
Fundação Cecierj e Programa HCTE-UFRJ
A dificuldade de compreender o papel da Química causou um sintoma ainda pouco reconhecido, entretanto bastante presente em nossa sociedade: a “quimiofobia”. Seu principal veículo transmissor é, naturalmente, a mais nefasta e insidiosa das criaturas humanas: o químico. Desde que foi formado o primeiro químico em uma universidade europeia – e na falta de predadores à altura de outras ciências naturais –, eles se multiplicaram e se espalharam pelas universidades e escolas dos cinco continentes. Encontraram alguns de seus exemplares nos polos – em ambos! –, no fundo dos oceanos e até no espaço sideral. Desde então, propagandas de produtos, filmes hollywoodianos, intelectuais e até o porteiro de seu prédio têm buscado alertar sobre os perniciosos perigos que a Química pode trazer para a sua vida.
Se você teve o infortúnio ou desprazer de conhecer um químico, especialmente aquele capaz de elucidar ou desmistificar alguma das falácias tão comuns no conhecimento cotidiano, é sua obrigação moral e pestilenta neutralizá-lo! Seguem três receitas que certamente darão o resultado desejado. Cabe um último conselho: pode ser que você tenha que aplicá-la a um amigo próximo ou àquela ex-companheira ou, ainda, àquele seu vizinho professor de Química que vive reclamando de seu apreço musical pelo funk; se nem mesmo as letras horripilantes de sua música favorita conseguiram eliminá-lo, aplique estas receitas sem piedade.
Receita 1: Jogando no poço (mais fundo do que o de Lennard-Jones)
Mostre-lhe todas as noites, antes de dormir, anúncios de produtos cosméticos que são mais eficazes ou naturais por não conterem Química. Isso será suficiente apenas para perturbar-lhe o sono. Logo ao acordar, dê-lhe como tarefa preparar um bolo com os seguintes ingredientes: água com pH básico, sal róseo do Himalaia, açúcar light, farinha sem glúten, manteiga com teor reduzido de sódio e fermento biológico – fale-lhe pausadamente: b.i.o.l.ó.g.i.c.o. Não defina as quantidades, use apenas termos genéricos e imprecisos como “uma pitada”, “meia colher”, “uma porção” ou, o pior, “adicione a gosto”. Depois de misturar tudo e fermentar, proíba-o categoricamente de usar o micro-ondas para aquecer, pois isso fatalmente irá gerar ondas quânticas tóxicas. Faça questão de chamar a iguaria produzida de “bolo sem química” e convide seus amigos para desfrutá-la.
Entre os convidados, não pode faltar o recém-formado em Física, que irá reintroduzir por um mol de vezes aquele papo de que toda a Química pode ser reduzida à Física; e o antigo colega biólogo que deverá discorrer sobre o porquê de a Biologia ser a Ciência Central, a mais bonita, etecetera e tal. Aproveite para subir na mesa e declamar em alemão o trecho no qual Immanuel Kant afirma com toda propriedade que a Química, afinal, não deve ser considerada uma Ciência. Por fim, chame o colega de humanas; ele irá convencer a todos, enquanto oferece um baseado malcheiroso, que essa divisão entre os conhecimentos é, afinal, uma grande bobagem. Àquela altura, todos já estarão meio exaltados. Reúna-os para brindar a produção do carro brasileiro movido a água ou a solução da crise energética mundial a partir da transformação do plástico ou lixo em gasolina. Ao final do encontro, meio embriagados, antes de começarem a se retirar para casa, peça para o químico distribuir pequenas doses de vinagre para burlar, em uma possível blitz, o bafômetro, porque “o ácido acético reage com a cetona, dando como resultado o acetato, que é indetectável”.
Passado o encontro, mesmo cansado, convide-o para assistir a alguns dos antigos episódios da série de MacGyver e solicite para repetir o feito de selar o vazamento de um tanque de ácido sulfúrico com uma barra de chocolate. Tente também animá-lo a produzir alguns gramas de anfetamina e algum explosivo poderoso depois de ver o terceiro episódio de Breaking Bad. Não deixe de humilhá-lo quando não conseguir repetir nem mesmo a fórmula de preparação de seu perfume favorito, um Chanel nº 5, mas insista que você não poderá prescindir dele em seu aniversário, daqui a duas semanas. Ofereça-lhe, de consolo, uma maçã produzida sem o uso de qualquer tipo de aditivo químico, tão pequena quanto uma ameixa e recheada de Cydia pomonella. Procure relaxá-lo ouvindo um dos hits da década de 80: Química, da Legião Urbana, ou a música homônima da dupla sertaneja João Bosco e Vinícius. Se ele vier com aquela charla de que o grande motor das economias mundiais advém do conhecimento da Química, mude para um papo zen ou leia em voz alta as ponderações filosóficas da atriz Denise Fraga sobre a importância da Química para a sociedade contemporânea. Imite-lhe o sorrisinho cínico de quem não tem o cérebro maior do que uma noz.
No dia seguinte, você encontrará o seu químico totalmente desanimado, porém ainda com sinais de vida. Há, entretanto, outros recursos mais fortes disponíveis, que só devem ser usados em casos extremos.
Receita 2: estratégia escolar (somente em casos extremos)
Incentive-o a lecionar Química em uma turma de 1º ano do Ensino Médio; faça-o prometer que irá cumprir todo o currículo e lembre-o de esclarecer à turma que aquilo que o professor de Biologia ensinou como sendo Química no 9º ano não o é propriamente. Insista que deve ensinar pH e cálculo de concentração molar com os parcos conhecimentos de matemática dos alunos e peça que construam argumentos críticos e bem embasados sobre os problemas ambientais – não importa que não tenham aprendido a ler e interpretar um texto básico de Ciências. Os estudantes devem estar previamente treinados a fazer perguntas como: “para que serve a Química?” e “aquele assunto sem importância irá cair na prova?” Não obstante, sugira que seja firme e exija respeito dos alunos, mesmo que eles nunca tenham tido o mesmo exemplo em casa.
No final do mês, se vivo ainda estiver, adicione à sua jornada de trabalho uma boa dose de burocracia, dê-lhe um salário menor do que a maioria dos profissionais igualmente qualificados. Caso reclame, diga-lhe que “faça por amor” e o obrigue a aprovar todos os alunos que certamente – sob qualquer metodologia de avaliação do universo –, mereceriam estar reprovados debaixo de sete camadas de livros. Justifique com o nefasto refrão: “afinal, para que precisarão de Química em suas vidas?”. Já no leito hospitalar, coloque sobre seu colo alguns dos últimos resultados desalentadores das avaliações de Ciências em larga escala, das quais seus alunos participaram, dê-lhe nomes pomposos: ANA, Anresc/Prova Brasil, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, Saerj etc. – e ressalte sua importância.
Faça-o sentir inútil por não compreender o sentido de tantas avaliações, ainda mais sem direcionar esforços genuínos – financeiros, sociais, políticos etc. – necessários à resolução dos problemas educacionais. Não pode faltar mostrar a ele algum comentário capcioso do último secretário de Educação, tais como: “é preciso melhorar a formação dos professores” ou “vamos aumentar a cobrança dos docentes pela melhoria da qualidade de ensino”.
Em seus últimos espasmos de vida na UTI, já com um tumor em metástase, diga-lhe com total certeza que seus problemas foram causados pela ingestão de água com o pH ácido, conforme você aprendeu em uma entrevista a que você assistiu no Youtube com o médico doutor e especialista Dr. Lair Ribeiro e compartilhou com centenas de amigos. Insista que deixe de usar os medicamentos, pois, para quaisquer efeitos, essa química pesada só irá piorar o seu quadro. Dê-lhe como remédio algumas pílulas de fosfoetanolamina, uma solução derradeira que os cientistas, em conluio com as grandes indústrias farmacêuticas, evitaram pesquisar e divulgar ao público. Aproveite para reclamar do mercúrio nas vacinas infantis, do uso de alumínio nos desodorantes e do chumbo nos batons, enquanto abre o seu terceiro maço de cigarros com teor reduzido de nicotina e come o segundo sorvete com óleo de coco adoçado com açúcar mascavo orgânico. Ao se negar peremptoriamente a seguir os seus conselhos, proponha como remédio alternativo um suco de limão, muito mais eficaz que a quimioterapia. Petrificado, ele não responderá mais aos seus apelos. Diga-lhe que, enfim, acabou a química entre vocês, mas ele não ouvirá, pois provavelmente já está morto.
Para ter certeza, o melhor será embalsamá-lo e deixá-lo debaixo da tumba de algum faraó no Egito, o que não resolve todo o problema, pois ainda assim terá que ser untado com petróleo, o que fatalmente derramará algum resíduo químico tóxico radioativo que irá poluir o lençol freático e contaminar o dia a dia de toda uma população. Algumas criancinhas da Somália também morrerão de fome, mas, neste caso, não se sabe bem o motivo. Permita, enfim, que as larvas e as baratas comam sua carcaça putrefata e façam adubo orgânico com os seus restos mortais. Use-o para plantar um lindo girassol, coloque-o sobre a orelha e saia pulando e cantarolando nu pelas ruas: “Como é lindo o mundo sem a Química!!!”.
Receita 3: Método derradeiro (assim se espera)
Se, ainda assim, sobrar aqui e acolá alguns átomos do pobre e dilacerado químico, tome todo o cosmos pelas mãos e lance-o no buraco negro mais próximo. Torça para que nada saia daquele ralo, além, é claro, da radiação. Fim.
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O autor adianta suas escusas caso tenha causado algum incômodo pelo tom politicamente incorreto deste ensaio, excetuando-se os funkeiros. Estes podem ficar incomodados. Caso você tenha algum vídeo do Lair Ribeiro, também corre o risco de arder no Tártaro da Química.
Publicado em 08 de maio de 2018
Como citar este artigo (ABNT)
MORENO, Esteban Lopez. Como matar um químico. Revista Educação Pública, v. 18, nº 9. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/18/9/como-matar-um-quimico
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