Os usos da imprensa: as representações sobre o movimento estudantil em contextos de luta pela democracia
Lorena Azevedo do Carmo
Graduada em História (Faculdade Fernanda Bicchieri/Fabel), graduanda de Pedagogia (UniRio)
Cíntia Borges de Almeida
Doutora em Educação (ProPEd/UERJ), professora na Licenciatura de História e Pedagogia e na Pós-Graduação em Gestão Integrada da Educação (Faculdade Fernanda Bicchieri/Fabel)
Uma pergunta que não quer calar: qual o papel, qual a importância da imprensa na divulgação do movimento estudantil, frente às políticas educacionais enfrentadas no período militar instituído na década de 1960 e, ainda, frente às reformas da educação impostas nos dias atuais? Há alguma relação?
Para pensar a presença da força dos estudantes, propomos analisar historicamente alguns discursos que circularam sobre as diferentes formas de manifestação desses movimentos no Rio de Janeiro de 1960 a 1969, a partir da análise das notícias publicadas no jornal A Luta Democrática: um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não podem lutar. Veremos que, muitas vezes, a imprensa teve forte apelo e decisão nos destaques e silenciamentos que envolviam as reformas instituídas pela política do contexto e as ações do movimento estudantil.
Assim, este breve estudo visa evidenciar a disputa de poder existente nos impressos, responsáveis muitas vezes por legitimar ou negligenciar as diferentes formas de resistência, reivindicações praticadas pela organização estudantil, compreendida como principal associação de formação educativa e política dos estudantes. Para tanto, nosso campo de análise trata dos discursos circulados no periódico A Luta Democrática em um contexto de instabilidade social e ideológica diante de uma conjuntura de rupturas políticas. Não se pretende tratar o tema com aproximações contemporâneas que possam gerar análises anacrônicas, devido a contextos, sujeitos e políticas específicos. Contudo, vale pensar as rupturas e permanências que, de alguma forma, podem sugerir relações entre esses dois momentos estudados.
Robert Darnton sugere que “a mão morta do passado, portanto, modela a percepção do presente” (2010, p. 102), levando-nos a pensar o processo de escrita em um contexto passado como indício de uma história narrada que possibilita o entendimento de alguns fatos e situações cotidianas. Será nessa direção que lançaremos luz sobre os discursos que tratam do movimento estudantil na imprensa, especificamente no jornal A Luta Democrática, mas também percebendo as relações de poder existentes nas mídias atuais e no modo como elas debatem a temática. Partiremos da compreensão dos debates jornalísticos como teias costuradas. São construções, narrativas forjadas, ora com destaques ora com silenciamentos, textos escriturários tecidos por mãos de seus tempos.
Para iniciar a problematização, destacamos o caso da União Nacional dos Estudantes (UNE) e dos interesses na fundação do jornal A Luta Democrática. De antemão, chamamos a atenção para o fato de ela nem sempre ter tido congruência nos posicionamento políticos defendidos – a maior parte do tempo apoiando a esquerda política brasileira – assim como Tenório Cavalcanti, o fundador do jornal, que constantemente oscilava em seu apoio, em um jogo político que se refletia diretamente em seu discurso e na abordagem do movimento estudantil, ora a favor ora contrário à UNE. Daí justifica-se a relevância desse sujeito para se pensar a história do movimento, da imprensa e da política no Estado do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, espaço onde ele circulava, mantinha relações políticas, redes de sociabilidade e constituía uma narrativa própria construída e divulgada pelo seu jornal.
Imprensa, espaço de poder: o movimento estudantil sob os olhares de Tenório Cavalcanti
Analisar a importância e o papel das mídias como meio de divulgação de ideias, notícias e modelos de comportamento, entre outros aspectos, pensando-as como espaço de sociabilidade que vai além de sua imagem de ter validade fundada nos fatos leva a refletir sobre a imprensa, mais precisamente sobre os jornais, de modo que Raquel Campos (2012) faz entender o quanto tais veículos se mostraram instrumento importante para a construção de estratégias por parte de sujeitos nos mais diversificados contextos, e que buscavam, em sua maioria, registrar, explicar, informar, entre as outras possibilidades dos jornais.
Refletir sobre o uso do jornal e a existência de uma não neutralidade em seus textos nos remete a pensar na existência das disputas de poder pelo discurso e na busca da legitimidade por meio da palavra escrita, principalmente por aqueles que conseguiam ter acesso a esse lugar privilegiado. O jornal é reconhecido como espaço de privilégios, visto que, dentro de uma sala de redação, segundo Robert Darnton (2010), existia uma hierarquia que não apenas controlava as posições dentro do escritório como também adequava a maneira como eram redigidas as matérias antes da publicação, compreendendo a existência de uma estrutura organizacional dentro do ambiente jornalístico.
Essa organização detalhada por Darnton (2010) permite compreender a seleção, os recortes, os destaques, as repetições e os silenciamentos, recursos adotados pela imprensa a fim de causar impacto no leitor, com intuito de convencê-lo da veracidade da informação, fazendo com que ele não só se convença da ideia do texto como também dê legitimidade a quem a escreveu.
Segundo Laura Maciel (2008), a imprensa foi um espaço que conseguiu reafirmar publicamente outros sujeitos sociais que antes eram invisibilizados, permitindo assim a construção de outra versão que trouxesse suas perspectivas e opiniões, fazendo o que ela chamou de “espaço alternativo” (Maciel, 2008, p. 11). Por intermédio dele, indivíduos que se envolviam com a imprensa ganhavam determinado poder capaz de dar-lhes prestígio e cada vez mais popularidade com o público.
Os processos de mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais, em concordância com Campos (2012), foram característicos do mundo ocidental durante os séculos XIX e XX principalmente, porque teve nos jornais uma força ímpar, de forma que tornou impossível dissociar o modo de vida urbano e a propagação dos periódicos, fazendo com que a opinião pública, conceito esse que já foi superado como sendo transparente, se mostrasse uma força que se encontra não apenas nos espaços domésticos como também nos espaços públicos de sociabilidade urbana. Dessa maneira, percebe-se que as narrativas, em sua grande maioria, são carregadas de intencionalidades que buscam persuadir o leitor quanto à veracidade e a aceitabilidade de suas informações.
Aprofundando no conceito de opinião pública, com base em Carla Vestena (2011), é possível compreender como sendo uma “ideia de inter-relação entre os meios de comunicação, os indivíduos portadores de características exemplares e o próprio público” (p. 13). Também considerada um dos fatores para o funcionamento da democracia, porém, tal opinião acaba por tentar induzir a adoção de certos posicionamentos; há certas restrições em tal influência, podendo ser de cunho religioso, cultural etc. Assim, o estudo sobre a imprensa leva-nos a buscar
as formas como se constroem sentidos e interpretações, por meio da imprensa refletindo sobre a forma como se articulam as diversas forças capazes de produzir representações históricas, buscando as “suas conexões com instituições dominantes e o papel que jogam para obter consenso e construir alianças nos processos de políticas formais (Maciel, 2008, p. 4).
Compreendendo que a imprensa é responsável por construir várias versões da história, dando sentidos e interpretações variadas a cada uma delas a partir do posicionamento e do interesse do seu autor, a escolha de notícias, do que se torna de fato uma notícia, é bem explicada por Darnton (2010) quando ele abarca, a partir de suas experiências, a existência de uma padronização e estereotipagem na seleção e na escrita de artigos jornalísticos, o que não significa necessariamente uma escrita repetitiva.
Esse autor, ao analisar a importância dos impressos no processo histórico, chama a atenção para o modo como operar com as fontes históricas, compreendendo-as como produções de um contexto específico para atender a uma demanda determinada. Isso sugere um cuidado do historiador ao ler e pesquisar os jornais, pois “a nova informação que ele adquire precisa se adequar a categorias herdadas de seus predecessores” (Darnton, 2010, p. 13). Não há uma verdade a ser descoberta. Os jornais, como documentos históricos, sinalizam um projeto de sociedade que é contado a partir das “verdades”, da ideologia e dos interesses daquele narrador. Assim sendo, também reforça a ideia de um sistema de controle existente que pode encaminhar, muitas vezes, a escrita para um lado da invenção por parte do escritor na criação de detalhes. Ao historiador cabe investigar a procedência e a legitimidade desses detalhes.
Vozes censuradas? A União Nacional dos Estudantes em pauta no jornal A Luta Democrática
O jornal analisado intitula-se A Luta Democrática: Um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não podem lutar; foi um periódico criado com a proposta de publicações diárias. Ao pesquisar a sua materialidade, é possível perceber que sua tiragem, em determinados períodos, se tornou irregular. O que antes, no período da sua fundação, era um jornal diário de oito páginas, em alguns breves momentos, durante a década de 1960, acabou sendo publicado em dias intercalados, com o dobro de páginas.
Com propósito político, o impresso A Luta Democrática foi fundado pelo advogado Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque em 3 de fevereiro de 1954, tendo como redator e diretor chefe Hugo Baldessarini. Segundo Cláudio de Souza (2011),
o seu jornal abriu sede na capital da República e, logo após a fundação, foi inaugurada uma sucursal no município de Duque de Caxias. Nos meses subsequentes, estabeleceram-se outras sucursais espalhadas por diversos municípios do Estado do Rio de Janeiro. Assim, é razoável supor que o periódico rapidamente conquistou um bom público leitor não apenas na Baixada Fluminense, mas também na capital e nos demais municípios do estado (Souza, 2011, p. 257).
A partir do estudo em questão, tivemos acesso à trajetória do fundador de A Luta Democrática. Tenório Cavalcanti, alagoano que veio para o Rio de Janeiro em 1926 e, após trabalhar em uma fazenda em Duque de Caxias, naquele contexto um dos distritos do município de Nova Iguaçu, acabou criando uma rede de contatos, as conceituadas redes de sociabilidade sinalizadas por Jean-François Sirinelli ao atribuir às atividades e aos comportamentos de determinados grupos sociais “uma sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades, que alimentam o desejo e o gosto de viver” (2003, p. 246). Nessa direção, por volta da década de 1930, aliou-se ao partido União Progressista Fluminense (UPF) e, em 1936, tornou-se vereador.
Com o fim do Estado Novo, período em que sofreu diversos atentados, Tenório Cavalcanti filiou-se à União Democrática Nacional (UDN). Assim, por esse partido, no mesmo ano em que criou o jornal, em 1954, foi eleito o deputado federal mais votado do Estado do Rio de Janeiro. Em diálogo com os apontamentos sugeridos por Souza (2011), podemos pensar na fundação do jornal como um motor que aumentou a popularidade de Tenório.
O jornal serviu de baluarte para a construção da imagem pública de Tenório Cavalcanti, a promoção de suas campanhas políticas e ainda como forma de abrir espaço para as reivindicações sociais e políticas da população da Baixada Fluminense, tornando-se um importante meio para a consolidação política de Tenório (Souza, 2011, p. 258).
A imagem pública de Tenório Cavalcanti foi muito vinculada à violência; ele se tornou conhecido como “o homem da capa preta”, que escondia por baixo dela um colete e uma metralhadora intitulada “Lurdinha”; de acordo com Ana Lúcia Enne (2004), em tal período consolidou-se uma imagem violenta da Baixada Fluminense.
Em 1960, Tenório Cavalcanti desligou-se da UDN, filiando-se em seguida ao Partido Social Trabalhista (PST). Com isso, a trajetória do fundador de A Luta Democrática é marcada por diferentes atuações e posicionamentos políticos. Sua mudança de partido, em alguns casos, partidos até de oposição, demonstra um interesse maior na permanência e na disputa pelo poder do que propriamente na defesa de um discurso, de um ideal.
O que pensar com base em tantas inconstâncias? Mário Grynszpan (1990) sugere que o entendimento sobre a mudança partidária e de discurso por parte de Tenório Cavalcanti na década de 1960 é de suma importância, pois, ao analisar sua vida política e refletir sobre o nome do jornal que ele fundou, é possível pensar em uma contradição, visto que a União Democrática Nacional (UDN), partido ao qual Tenório era filiado até o início da década de 1960, tinha cunho de direita; o título dado ao seu jornal A Luta Democrática: um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não podem lutar, em contrapartida, sugere a busca pela defesa dos interesses da parte da população possivelmente pertencente à classe econômica mais baixa, um grupo popular com menos participação política, com menos reconhecimento social, com menos inserção cultural, o que de certa forma evocava uma maior intervenção estatal para garantir que tais direitos fossem cumpridos e respeitados. Ou seja, sua filiação a um partido de direita, que defendia menor intervenção estatal e fortalecimento da iniciativa privada, parece à primeira vista uma contradição com a ideia que o título do seu jornal leva a interpretar.
Quais seriam o interesse e a importância da pesquisa aqui proposta a partir da análise do jornal A Luta Democrática? Trata-se do destaque que ele deu, em diferentes momentos de sua publicação, ao movimento estudantil. Com interesse em compreender a importância da União Nacional dos Estudantes no período militar, ao se deparar com o nome do jornal fundado por Tenório Cavalcanti, pensamos ter localizado uma fonte adequada para observar a participação do movimento estudantil nesse contexto histórico. Acreditamos, inicialmente convencidos pelo título da publicação, que ela, diferentemente dos jornais de grande circulação, daria voz ao movimento naquele momento de repressão.
Contudo, ao analisar o periódico a partir da década de 1960, verificamos que seu conteúdo não correspondia à ideia que seu nome transmitia, o que sugere uma deturpação no sentido, pois inicialmente Tenório era filiado à UDN, um partido com viés de direita e conservador. Como a década de 1960 foi um período em que a política brasileira se encontrava instável, devido ao iminente golpe que o país sofreria, é possível encontrar reportagens em A Luta Democrática que abordem a opressão vivenciada por alguns líderes de movimentos como, por exemplo, a violência sofrida pelo presidente da União Nacional dos Estudantes. Porém o jornal não abriu espaço para que os estudantes contassem sua própria versão da história.
A Luta Democrática, 10 de março de 1960, p. 2, ano VII, n. 1868.
As notícias encontradas referentes à União Nacional dos Estudantes não mostram o posicionamento do jornal em relação à organização estudantil, transmitindo, assim, as principais informações relacionadas à UNE; os recortes publicados não são suficientes para fazer uma associação do jornal com a luta em defesa da democracia travada pelo movimento estudantil em favor da universidade pública. Eles apenas sinalizam, no início dos anos 60, que se tratava de um jogo político travado nas páginas de A Luta Democrática, de modo a utilizar o espaço do jornal como um campo para disputar maior participação política e o fortalecimento dos partidos políticos em detrimento dos outros. Vale ressaltar o exemplo:
A Luta Democrática, 12 de maio de 1961, p. 1, ano VIII, n. 2228.
A notícia relacionada ao telegrama enviado pela União Nacional dos Estudantes ao presidente Jânio Quadros em 1961 possibilita ao leitor interpretá-la como uma representação de “neutralidade” e até “simpatia” do articulista com a causa do movimento dos estudantes. Mas, se atentarmos para a construção da notícia e sua diagramação, de forma subtendida a mensagem que se quer passar é aquela que está destacada pela “manchete” com letras maiores e ganhando centralidade. Não se tratava da denúncia da “falta de condições integrais de liberdade de reunião e expressão” (A Luta Democrática, 12/05/1961, p. 1) o que o impresso reforçou com a publicação da notícia. A manchete cria uma oposição: Estudantes x Carlos Lacerda, o que, de certo modo, independe da causa dos estudantes e enfraquecia o adversário político de Tenório Cavalcanti.
Em outro momento, o jornal configura-se tendencioso, demonstrando sua imparcialidade e suposta neutralidade com as notícias publicadas sobre a União Nacional dos Estudantes:
A Luta Democrática, 14 de julho de 1961, p. 3, ano VIII, nº 2282.
Na notícia relacionada à solicitação da UNE em relação à reforma universitária, o artigo publicado tende a reforçar o uso político do impresso utilizando a pauta do movimento estudantil como instrumento da suposta luta pela democracia que o seu jornal prometia. Utilizando recortes da “solicitação da UNE” e seleção de trechos do “despacho” de indeferimento dado pelo presidente Jânio Quadros, ainda que o jornal não cedesse espaço para permitir a resposta dos estudantes, o periódico, juntamente com sua redação, se colocava “ao lado dos estudantes”, levando até eles as informações sobre a pauta aberta por eles.
Ao pesquisarmos sobre a Frente de Mobilização Popular (FMP) no jornal A Luta Democrática, que em sua criação teve participação da UNE, deparamo-nos com uma notícia de 1963 em que o fundador Tenório Cavalcanti demonstra estar também aliado à FMP, o que poderia ser indício de “simpatia” e “acordo” (A Luta Democrática, 11/06/1963, p. 5) com os ideais do movimento estudantil.
Contudo, sem um direcionamento específico, as matérias sugerem a reflexão acerca da mudança de posicionamento do referido político, ora aliado a partidos conservadores, ora defendendo ou contrário às causas populares, inclusive, dentre elas, o fechamento da UNE, que aconteceu no mesmo ano que o golpe militar foi dado, 1964.
Após o fechamento da UNE, o jornal voltou a se posicionar. Dessa vez, porém, esse posicionamento, que só foi publicado no mês de outubro, ou seja, seis meses depois da instauração do regime militar, durante o governo do marechal Castello Branco, parecia estar favorável aos estudantes (A Luta Democrática, 05/10/1964, p. 3).
Segundo a notícia, o governo do marechal Castello Branco teve, como ministro da Educação, Suplicy de Lacerda, responsável por uma ementa constitucional que abarcava os órgãos de representação dos estudantes, atingindo, dessa forma, diretamente a UNE. Diante desse fato, e a partir da análise do impresso, notamos uma intervenção do jornal contrária ao fechamento da União Nacional dos Estudantes e, principalmente, com destaque para o papel social cumprido, segundo o impresso, pelo movimento estudantil em favor dos interesses do povo.
Posteriormente a essa notícia, encontramos, em 1968, outra narrativa que ajuda a ratificar a ideia de um posicionamento contrário ao governo e que, em certa medida, demonstrava até descrença na política que se instaurava e no modo como o governo censurava e perseguia o movimento dos estudantes nacionais (A Luta Democrática, 26/11/1968, p. 3).
Após o fechamento da UNE, o jornal se posicionou a favor da entidade e contra as medidas adotadas pelo governo. Pela primeira vez, a voz de um estudante passou a ser publicada nas páginas de A Luta Democrática, como foi comprovado pela análise do impresso e a localização de uma coluna chamada “Movimento Estudantil” em 1965, escrita por Nelson P. da Costa, estudante universitário da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio).
Contudo, o estudante mostra-se crítico à resistência estabelecida pela UNE e sua tentativa de manter o debate em defesa da universidade, enfrentando fortemente o governo instaurado e suas imposições. A coluna teve duração de aproximadamente cinco meses e não teve publicação regular. Apesar da relevância que ela traz para o estabelecimento de uma relação do jornal com a UNE, notamos que se configurou como coluna de cunho opinativo em que, na maioria das publicações, o autor usou esse espaço para criticar o que ele chama de “pseudoestudantes” ou “falsos universitários”, demonstrando haver, inclusive, diferentes posicionamentos dentro do corpo estudantil.
Pouco tempo depois, a coluna não aparecia mais nas edições do impresso, de modo que o jornal, até 1968, esporadicamente, seguiu publicando algumas notas em favor dos estudantes. Mas, com a intensificação do regime militar, será que esse posicionamento se manteria?
Vimos que não, o que consolida nossa hipótese sobre a função política e estratégica adotada pelo jornal. Nos anos seguintes, com o fortalecimento do governo militar, percebemos um afastamento do jornal em relação à UNE e aos movimentos populares. Esse afastamento pode ser problematizado a partir da crítica que ele mesmo intitula de “suposto comunismo internacional”, em 1970 (A Luta Democrática, 30/05/1970, p. 2).
Diferentemente das acusações desde 1968, em que o impresso acusava o governo “de mão de ferro” ou pautado em “atos de truculência”, o discurso presente na A Luta Democrática passava a indicar aproximações com os interesses do governo vigente. Atribuindo a valoração de “empenho ao combate à subversão”, o jornal dava pistas de haver uma concordância às perseguições que se sucediam. Desta feita, sua redação dá indícios de uma nova mudança no caráter político do jornal, agora próximo aos discursos defendidos pelo golpe militar e contrários ao suposto caráter de “comunismo” e “desordem” que os atos de resistência podiam expressar.
Os movimentos estudantis e a imprensa do século XXI
Analisar a organização dos estudantes com base nos discursos selecionados pelo jornal incita problematizarmos a imparcialidade da imprensa, a não neutralidade dos seus fundadores e editores, as estratégias de poder, os usos daquele espaço como campo político e espaço de disseminação da mensagem que os envolvidos no jornal queriam transferir para seus leitores.
Nessa direção, vale a busca de reforçar a concepção de presente e passado, compreendidos com base na ideia de processo, de modo a se complementarem, a se complexificarem por suas transformações, mas também por suas permanências, o que dá sentido e importância para o campo histórico. Logo, torna-se válido trazer como pauta a forma como se dá a nova configuração do movimento estudantil dos dias atuais, contexto compreendido por um governo considerado ilegítimo, se considerarmos as irregularidades observadas durante o processo de impeachment, durante o ano de 2016, contra a ex-presidenta Dilma Rousseff e principalmente por todas as medidas impopulares e antidemocráticas – já que não possuem a aprovação da maioria da sociedade civil – adotadas pelo presidente empossado Michel Temer.
Dado tal fato, no decorrer do atual governo foi possível, a partir de diferentes meios midiáticos, dado que, na contemporaneidade, observamos o surgimento de novos meios de comunicação que vêm ganhando cada vez mais força, nos deparar com notícias em que se evidencia uma censura voltada aos estudantes, como a “liminar que impediu debate sobre o impeachment no Centro Acadêmico da Faculdade de Direito na UFMG” (Globo.com, G1, 30/04/2016, s/p).
No decorrer da notícia, averiguamos a tentativa de censura. Tal verificação é notada pela tentativa da juíza responsável pela expedição da liminar afirmar que o assunto (impeachment de Dilma Rousseff) “foge às atribuições do Caap” (Globo.com, G1, 30/04/2016, s/p), contrariando o direito de liberdade de expressão por parte dos indivíduos, garantido nas leis nacionais. O que legitima a decisão de judiciar, de impedir ou determinar o que é ou não assunto, pauta ou discussão acadêmica?
Tendo em vista a afirmação de Paulo Freire (2013), de que “educação é um ato político, nunca neutro”, percebemos que a dimensão política da educação é torná-la reflexiva, crítica; posicioná-la, nesse caso, é compreender os espaços educativos como campos de luta contra as injustiças sociais, contra os preconceitos, contra a corrupção; é estar a favor da luta dos oprimidos, dos grupos minoritários, daqueles considerados “sem voz”, na perspectiva de emancipar e de transformar a sociedade. Assim, reforçamos o questionamento anterior: o que respalda a decisão de um juiz, contrariando a própria Constituição Federal de 1988, do que pode ou não ser assunto de estudantes, ferindo seus direitos de liberdade de expressar?
Logo, assim como ocorreu no período da ditadura militar, na década de 1960, verificamos a partir da notícia referente à liminar, no ano de 2016, uma tentativa de censura, de limitação de liberdade de expressão, de interferência no papel e nas competências do campo educacional. Essa interferência tem se legitimado e ganhado espaço nas mídias a partir da discussão da proposta da Escola Sem Partido, que, segundo Gaudêncio Frigotto, partido da intolerância com diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres, etc. (Frigotto, 2016, p. 12).
Pensar a organização do movimento estudantil nos dias atuais consiste em refletir sobre os impactos educativos que vêm interferindo na vida desses estudantes. Assim como a Reforma Universitária foi uma importante transformação na vida dos estudantes da década de 1960, os dias atuais vêm sofrendo com as propostas trazidas por uma nova reforma. Outra mudança que nos chama a atenção é a medida provisória que reformula o Ensino Médio, já transformada em norma jurídica. Já está em vigor e “promove alterações na estrutura do ensino médio, última etapa da educação básica, por meio da criação da Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral” (Brasil, Lei n. 746, 2016).
De modo similar ao acontecido na década de 1960, momento em que analisamos A Luta Democrática defendendo os discursos que mais convinham aos interesses do jornal, é possível encontrar, nos dias atuais, várias propagandas em defesa da Reforma do Ensino Médio principalmente no meio televisivo, legitimando um discurso que não apenas cita a melhoria do ensino médio como também a possibilidade de uma formação técnica para o mercado de trabalho.
Em ambos os momentos históricos, notamos a imprensa atendendo aos interesses políticos do governo, ainda que, com isso, o interesse dos estudantes fique em segundo plano; ainda que suas “vozes” não sejam ouvidas; ainda que tais meios de comunicação utilizem estratégias de convencimento para seu leitor/telespectador com vistas a “vender” sua ideia, independente dos benefícios ou prejuízos que ela possa trazer à vida da grande maioria da população. Isso se exemplifica com a matéria da jovem Ana Júlia, ao discursar sobre as ocupações estudantis, que afirmou que “o ensino médio que queremos não está na medida provisória” (Facebook, página Reforma do Ensino Médio, 16/11/2016).
Essa matéria se encontra disponível no Facebook, em uma página intitulada Reforma do Ensino Médio. Nela, é possível ver o recorte do discurso da estudante secundarista, ocorrido em uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), em 26 de outubro de 2016, contexto marcado por intensas manifestações estudantis, principalmente com ato de ocupações em diferentes escolas brasileiras em oposição à medida provisória proposta pelo governo. A partir do trecho exposto, percebemos que a aluna clama para que sua voz – melhor dizendo, suas vozes, já que ela representa milhares de jovens que também não foram ouvidos sobre a proposta da Reforma do Ensino Médio – seja ouvida, mostrando que a mudança educacional não serve aos interesses do público que ela diz atender.
A nosso ver, fica evidente que ocorre justamente o contrário. Trata-se de uma reforma que tende a segmentar em classes o Ensino Médio. Esse entendimento também pode ser percebido em uma nova notícia, localizada na mesma página da rede social, Reforma do Ensino Médio, acerca de uma audiência pública com estudantes pedindo a retirada da medida provisória (Facebook, página Reforma do Ensino Médio, 17/11/2016).
O uso do Facebook para dar voz a esses estudantes serve para problematizar o papel dos jornais de grande circulação. Os estudantes que não conseguem se expressar via grande imprensa e os principais veículos midiáticos utilizam outras ferramentas mais acessíveis a grande parte da população – as redes sociais – para se inserir no debate e se fazer presentes na história, não pertencente mais a apenas um movimento estudantil, como a União Nacional dos Estudantes, mas atuantes em outros tipos de movimento que, a partir da organização alcançada por esse novo meio de comunicação, demonstram sua luta e resistência perante os problemas verificados com a Reforma do Ensino Médio.
Destarte, diferentemente da ideia de “transformação e avanço educacional” que os principais meios de comunicação, as chamadas grandes mídias vêm divulgando, esses espaços alternativos de comunicação dão vozes aos estudantes, demonstrando que o movimento estudantil na atualidade se articula de diferentes formas, por exemplo, pela formação de grupos de Facebook, em busca de reconhecimento e voz em suas causas.
Notamos permanências no fato de os principais jornais e das redes televisivas privilegiarem os interesses políticos do governo vigente, ou seja, privilegiar o lado que tem mais prestígio, visibilidade e favorecimento econômico; ao mesmo tempo, nossa análise conseguiu perceber uma mudança nas características dos movimentos estudantis, não mais vinculados apenas a uma organização nacional de estudantes, mas principalmente articulados nas redes sociais, na formação de grupos com pautas específicas, fazendo com que, independente dos interesses políticos, suas reivindicações sejam divulgadas, pulverizadas e repercutidas em espaços antes não existentes.
Referências
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Publicado em 08 de maio de 2018
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