Anseios para uma Escola do/no século XXI a partir de uma proposta pedagógica libertadora

Luciana Guimarães Nascimento

Pedagoga, mestre em Educação

Diante da configuração social que se apresenta no Brasil neste século XXI, na qual a exclusão se destaca como barreira à cidadania plena, identificamos o confronto da realidade vigente como principal caminho para transformá-la, aspirando ao alcance de uma sociedade equitativa, inclusiva principalmente às classes populares.

Nessa lógica, os espaços educativos formais, materializados nas escolas, destacam-se como locais adequados para o cultivo de cidadãos plenos e emancipados, capazes de atuar pautados em criticidade nas diferentes áreas da esfera social, modificando o imaginário excludente e construindo uma organização social justa, equilibrada e integradora. Assim, elencamos a educação escolar como meio transformador, por meio do qual o indivíduo terá chance de alcançar sua emancipação social, desde que a escola se configure como locus para ações político-pedagógicas progressistas.

Salientamos, portanto, o desenho de ações pautadas nas Pedagogias Crítica e Pós-Crítica como atalho para a superação da mera instrução do indivíduo, já que na centralidade do processo encontram-se os dilemas sociais que devem ser sanados, a fim de alcançar o bem-estar coletivo. A escola, então, é vista como espaço de tensões políticas, destacando-se como área de resistência e de construções contra-hegemônicas capazes de superar a compreensão ingênua sobre o saber e desmistificando sua aparente neutralidade. Como destaca Giroux (1997, p. 88),

a escola é um processo político, não apenas porque contém uma mensagem política ou trata de tópicos políticos de ocasião, mas também porque é produzida e situada em um complexo de relações políticas e sociais das quais não pode ser abstraída.

Desta forma, não cabe pensar em uma proposta pedagógica desvinculada das questões políticas que ditam as regras da organização social, pois, ao compreendermos a política como ação civil, reconhecemos que as manifestações promovidas nos espaços educativos formais não são neutras, posto que amparadas em intencionalidade. Cumpre refletir sobre a eficácia dessas influências teóricas, apreciando onde estamos, estimando as demandas e projetando aonde queremos chegar, edificando um cenário inclusivo e ascendente, especialmente aos grupos sociais menos favorecidos, público-alvo das escolas públicas.

Faz-se necessário, contudo, questionar as forças hegemônicas que conduziram as ações pedagógicas dentro da escola até aqui, buscando superá-las pelo fazer pedagógico dialético, tensionador das culturas dominante e dominada e problematizador do conhecimento, tendo em vista que “a escola faz política não só pelo que diz, mas também pelo que cala; não só pelo que faz, mas também pelo que não faz” (Gutiérrez, 1988, p. 22).

Pressupostos para uma escola emancipadora

Ao desenharmos um projeto educativo voltado à coletividade, no qual o objetivo é a emancipação das classes populares, não podemos esquecer que é função da escola pública estruturar-se em parâmetros democráticos, cedendo espaço e reconhecendo as diversidades que se encontram em seu interior, reflexo das interações e inter-relações presentes nos contextos que a cercam.

Perante isso, convém ouvir as “vozes das escolas”, na medida em que esses espaços são permeados por contradições peculiares à pluralidade que os compõe. O desenho de uma proposta pedagógica voltada a uma rede educativa deve considerar a complexidade das relações humanas, com a consciência de que há vida(s) na(s) escola(s) gerando particularidades de cada grupo em movimento. Por isso a importância de uma proposta democrática, na qual haja orientações gerais, ponto de partida para integralização e valorização das especificidades locais, mas cedendo espaço ao desenho autônomo de proposições didáticas em cada espaço educativo.

Outrossim, não podemos ignorar que é característica do modelo educativo libertador a centralidade nos educandos, a partir da compreensão de que não há ensino sem aprendizagem e, portanto, esses eixos apresentam-se como processo pelo qual se pretende construir conhecimentos pautados em reflexões críticas, valorizando os saberes que chegam à escola, aceitando o novo, praticando a tolerância, respeitando direitos ao mesmo tempo que se conscientiza sobre os deveres. Um modelo educativo que edifica o ensino-aprendizagem como processo crítico, contribui para formação de sujeitos autônomos, capazes de intervir transformando a realidade posta.

Por esse ângulo, a valorização das identidades culturais deve permear a base pedagógica de uma rede educativa sensível à diversidade que a compõe, assumindo a superação da simples instrução, reprodutora dos conhecimentos comuns às classes dominantes, para o alcance da problematização de saberes, destacando também os conhecimentos emergentes, por isso emancipatórios, já que brotam das demandas encontradas em cada contexto social. A esse respeito, ganha espaço a integração entre saberes locais e globais, transformando o espaço escolar em território de inclusão, no qual os indivíduos são percebidos como únicos e dotados de habilidades diversas que podem ser destacadas positivamente, contribuindo com a construção crítica de conhecimentos.

As necessidades apresentadas pelos alunos configuram-se como ponto de partida à elaboração de uma proposta curricular, respeitando o capital cultural que os educandos carregam para o interior dos espaços formais de ensino. Dessa maneira, com base na compreensão de sua própria linguagem, o discurso legitimado pela cultura dominante, hegemônico no currículo oficial, será apreendido pelos estudantes possibilitando-lhes alcançar mecanismos para superação de sua submissão social, diminuindo o impacto das desigualdades características nas sociedades de classe.

Pensando em currículo

Almejando um modelo educativo que pretenda a transformação do status quo, a oposição a uma “educação bancária” (Freire, 1987), acrítica e passiva, destaca-se como inspiração ao desenvolvimento de ações que libertem o sujeito da sua condição de oprimido, uma vez que conscientiza contextualizando saberes com base em uma educação dialógica, problematizadora, com vistas à prática da liberdade.

E, pensando em uma proposta curricular que se adéque aos pressupostos já citados, nos compete construir um currículo que supere a simples listagem de conteúdos disciplinarizados, buscando uma organização que valide áreas do conhecimento, dando, desse modo, significância aos eventos que atravessam a escola. Atentos a esse paradigma, contribuiremos, como rede educativa e de ensino, para superação da mera transmissão de conhecimentos regulatórios, majoritariamente eleitos em favor dos interesses das classes dominantes, propiciando que emerjam conhecimentos emancipatórios, de interesse das classes historicamente oprimidas. Assim, o currículo oficial incorporará os saberes que até aqui ocupam o espaço da marginalidade, interpretados como extracurriculares, estruturando-se em consonância com um projeto educativo emancipador, que localiza o conflito cultural na centralidade do processo (Santos, 1996).

Com efeito, passam a ter destaque no currículo elementos valorizados pela Educação de tendência pós-crítica, como identidade, alteridade, diferenças, subjetividade, saber-poder, significação e discurso, representação, cultura, gênero e sexualidade, raça e etnia, complementando uma compreensão político-pedagógica crítica e consolidando um modelo curricular de base multicultural.

A teoria pós-crítica deve se combinar com a teoria crítica para nos ajudar a compreender os processos pelos quais, através de relações de poder e controle, nos tornamos aquilo que somos. Ambas nos ensinaram, de diferentes formas, que o currículo é uma questão de saber, identidade e poder (Silva, 2007, p. 147).

Com base nisso, construiremos um currículo identitário capaz de formar cidadãos criteriosos e não subalternos, superando o patamar do discurso ao encontro de uma prática teorizada e questionadora à escolha dos conteúdos que serão desenvolvidos com as turmas, suplantando a incoerente transmissão de conteúdos desconexos, ou seja, o ensino mecânico, para o alcance de aprendizagens significativas.

Vale destacar que, ao ressaltarmos um currículo organizado por áreas de conhecimento, favorecemos uma prática educativa que engloba saberes de dentro e de fora da escola por meio de um enfoque globalizador, desenvolvendo a complexidade do projeto educativo de forma interdisciplinar (Zabala, 1990), propiciando o esboço do currículo disposto em projetos de trabalho, dando vez à pluralidade dos conhecimentos que emergem na atualidade.

Se temos como objetivo o desenvolvimento integral dos alunos numa realidade plural, é necessário que passemos a considerar as questões e problemas enfrentados pelos homens e mulheres de nosso tempo como objeto de conhecimento. O aprendizado e vivência das diversidades de raça, gênero, classe, relação com o meio ambiente, vivência equilibrada da afetividade e sexualidade, respeito à diversidade cultural, entre outros, são temas cruciais com que, hoje, todos nós nos deparamos e, como tal, não podem ser desconsiderados pela escola (Arroyo, 1994, p.31).

Assim sendo, proporcionaremos a formação humana na totalidade, garantindo a permanência de indivíduos diversos em uma escola de inclusão social e cultural, de vivência coletiva integrada à produção de hábitos e costumes do seu entorno e, por isso, articulada aos espaços não formais de educação, explorando as riquezas de um meio educador composto por múltiplas linguagens. Por conseguinte, a articulação com os movimentos sociais será bem-vinda, da mesma forma que a aproximação com instituições laicas e de formação coletiva, contribuindo com a execução de projetos multidisciplinares, sistematizadores de conteúdos hegemônicos, básicos a cada etapa do ensino-aprendizagem, e os conteúdos emergentes, configurados como demandas do contexto ao qual se destinam.

Por uma avaliação inclusiva

Na perspectiva de um currículo multicultural, não cabe o reforço de uma avaliação que se apresente como instrumento de coerção e controle social, hegemônica. No contexto de uma educação emancipatória, a lógica avaliativa é pautada para a mudança, a transformação. Com isso, a avaliação é desenhada para além de notas e conceitos, porque, enquanto processual, participativa, diagnóstica e investigativa, torna-se um meio, um processo permanente de reflexão-ação-reflexão-ação para o alcance de aprendizagens, superando a mera classificação (Lock, 1996).

Inseridos em um contexto social que valoriza a meritocracia, caberá à rede educativa definir como superar essa visão mercantil da educação, visando a uma formação cidadã que ultrapasse os interesses pragmáticos de políticas educacionais comprometidas com índices padronizados por culturas externas e que muitas vezes colaboram com a exclusão dos menos favorecidos, já que, em condições desiguais, não há como o desenvolvimento ser análogo.

Nesse sentido, torna-se imprescindível a autonomia das unidades de ensino na realização de avaliações internas, com caráter formativo processual emancipador, considerando os percursos no qual seguiu o processo ensino-aprendizagem, com respeito às especificidades locais, e representativa ao contexto cultural que a cerca. É responsabilidade das unidades de ensino produzir avaliações que possam contribuir com o aprimoramento das práticas educativas, na medida em que os resultados sejam analisados com critério para a edificação de intervenções e novas ações que almejem o êxito educativo.

Sendo assim, a valorização de múltiplos instrumentos avaliativos configura-se como uma característica da escola inclusiva e emancipadora, que não se isola das demandas e determinações nacionais, mas também não se limita a elas. A construção das ferramentas avaliativas deve ser coletiva, considerando todas as realidades envolvidas numa perspectiva que estime a prática educativa e seu produto, ilustrado em forma de desempenho.

Contudo, a configuração de instrumentos que avaliem em consonância com a realidade disposta significa considerar todos os mecanismos utilizados na configuração do processo educativo, de forma democrática e favorável ao desenvolvimento da autonomia do educando. A escola precisa deixar que este saia da posição passiva no processo educativo, que inclui a ação avaliativa, transformando-o em sujeito ativo, participativo em todo o seu desenvolvimento humano, com consciência e responsabilidade sobre ele, produzindo a avaliação de forma coletiva, dialógica.

Referências

ARROYO, Miguel. Escola plural. Proposta pedagógica da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Belo Horizonte: SMED, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

GUTIÉRREZ, Francisco. Educação como práxis política. São Paulo: Summus, 1998.

HERNANDEZ, Fernando; VENTURA, Montserrat. A organização do currículo por projetos de trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

LOCK, Jussara. Avaliação emancipatória. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José C. de; SANTOS, Edmilson S. (Orgs.). Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. p. 273-278.

MOREIRA, Antonio F. B. Currículo: questões atuais. São Paulo: Papirus, 1997.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma pedagogia do conflito. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José C. de; SANTOS; Edmilson S. (Orgs.). Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. p. 15-33.

SILVA, Antonio Ozaí da. Pedagogia libertária e pedagogia crítica. Revista Espaço Acadêmico, nº 42, Nov. 2014. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/042/42pc_critica.htm#_ftn34.

SILVA, Tomás T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

ZABALA, Antoni. Enfoque globalizador e pensamento complexo: uma proposta para o currículo escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.

Publicado em 11 de junho de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

NASCIMENTO, Luciana Guimarães. Anseios para uma Escola do/no século XXI a partir de uma Proposta Pedagógica libertadora. Revista Educação Pública, v. 19, nº 11, 11 de junho de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/11/anseios-para-uma-escola-dono-seculo-xxi-a-partir-de-uma-proposta-pedagogica-libertadora

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