Desafios em contextualizar o currículo da Escola Municipal Joaquim Rodrigues de Sousa Martins
Renária Rodrigues de Castro
Educadora, licenciada em pedagogia (Uespi) e Letras – Libras (UFPI), pós-graduada em Educação Contextualizada para o Semiárido, supervisora pedagógica da rede estadual de educação e cultura (Seduc/PI), coordenadora pedagógica no CEEP Petrônio Portela e professora da rede municipal de educação de Picos
O presente artigo é decorrente de um processo de reflexões e indagações vivenciadas como educadora no meio rural, diante de conflitos e angústias vivenciados na trajetória profissional quanto à situação de abandono escolar, gravidez na adolescência e distorção idade-série em que vivem crianças e adolescentes do Território do Vale do Guaribas; diante disso, pretendeu-se refletir sobre a construção de um currículo contextualizado que possa despertar o interesse da população local para uma nova visão dos saberes e experiências da comunidade rural dessa região semiárida no Povoado Gameleiras dos Rodrigues, na cidade de Picos/PI.
Para tanto, decidiu-se realizar uma pesquisa na Escola Municipal Joaquim Rodrigues de Sousa Martins, localizada na zona rural do município. Teve como objetivos específicos conhecer o currículo vivenciado pelos professores; identificar se os conteúdos curriculares abordam um contexto adaptado à realidade sociocultural dos alunos; compreender como é construída a proposta curricular das escolas do campo no município e analisar se a Secretaria Municipal de Educação oferece processos formativos voltados ao desenvolvimento da proposta curricular contextualizada. Como metodologia, optou-se pelo avaliação qualitativa com pesquisa de campo, cuja abordagem centra-se nas entrevistas constituídas por um roteiro de perguntas abertas. Como sujeitos da pesquisa foram entrevistadas duas coordenadoras do Ensino Fundamental e duas professoras da escola.
O tema tornou-se importante porque a educação atual demanda professores capacitados para atuar na discussão sobre os novos contextos, criando oportunidades para trabalhar de forma ampla os elementos culturais que permeiam o cotidiano das pessoas.
Na educação, é o currículo que norteia as atividades que deverão ser desenvolvidas e vivenciadas pelas escolas, que irão excluir ou diminuir o processo de dominação e controle dos mais favorecidos sobre a população rural, pois por muito tempo o semiárido foi visto como lugar de miséria e pobreza, mesmo diante de tantas riquezas naturais encontradas aqui, principalmente porque muitas pessoas desfavoreciam esse lugar até por não conhecerem a fundo elementos que possibilitassem viver bem na região; as poucas escolas que havia ainda repassavam conteúdos que desvalorizavam a região, contribuindo ainda mais para o êxodo rural; mesmo com muitos avanços, ainda há muito a ser melhorado nesse sentido.
A relevância social surge no momento em que as discussões sobre o tema se configuram na formação docente, no instante em que professores buscam refletir sobre sua prática, intensificando os debates nos cursos de graduação e pós-graduação e atuando em suas escolas, pois seu papel na Educação do Campo é ser sujeito crítico e transformador dos processos educacionais.
Educação do semiárido piauiense: desafios e avanços
Segundo as análises do Ideb (Índice de desenvolvimento da Educação Básica), a educação no semiárido piauiense, em aspectos gerais, tem mostrado melhora significativa. Foram implantados alguns programas do Governo Federal, como Mais Educação, Se Liga, Acelera, Brasil Alfabetizado e tantos outros; porém, no que se refere ao âmbito da contextualização do currículo, o processo se apresenta tímido e lento em algumas cidades do território piauiense, principalmente na região do Vale do Guaribas, onde essa discussão iniciou-se recentemente com a especialização ofertada pela Universidade Estadual do Piauí em parceria com a Resab (Rede de Educação do Semiárido Brasileiro) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), com a iniciativa das prefeituras por adquirir o Selo Unicef; o tema se tornou mais presente nas escolas piauienses.
Sabemos que a educação desenvolvida nas escolas piauienses em muitos casos oferece pouco atrativo aos alunos oriundos das favelas, da zona rural, de comunidades quilombolas e indígenas, por se tratar de uma educação descontextualizada, em que o currículo expressa uma cultura linear e unificada, como se todos os piauienses fossem iguais; sabemos, todavia, que nosso estado tem uma variedade de povos e raças e que suas culturas devem ser respeitadas e preservadas; deve ser por isso que muitas culturas estão desaparecendo no estado, por causa do preconceito de uma educação que insiste em desenvolver um currículo de origem norte-americana, que em muitos casos dá motivos para a evasão/abandono escolar, distorção idade-série e principalmente o surgimento de muitas dificuldades de aprendizagem.
A Educação Contextualizada é caracterizada por incluir na educação escolar aquilo que vem sendo debatido nos movimentos sociais, uma educação que parte daquilo que o aluno conhece, e que faz com que o que ele conhece não seja só ponto de partida e de chegada, mas que dê espaço posteriormente para novos conhecimentos e que os conhecimentos adquiridos sejam aplicados na comunidade. É importante que o aluno perceba que é sujeito histórico e ativo no processo educacional e que o processo de ensino e aprendizagem se torna mais rico, com uma variedade de instrumentos metodológicos adquiridos da realidade vivida por ele, além da troca de experiências entre os sujeitos da educação (professores e alunos), pois a Educação Contextualizada pode contribuir significativamente para a formação pessoal dos alunos, tornando-os mais críticos e ativos na sociedade em que estão inseridos.
Breve caracterização do semiárido piauiense
No Piauí, o semiárido abrange uma área 125.692 km², correspondendo a 57% da área total do estado e a 13,96% da área do Semiárido Brasileiro. É uma região de clima meio árido, marcado por irregularidades de chuvas, que variam entre 500 a 700 mm anuais, tendo como vegetação predominante a caatinga. Envolve 150 municípios (70% dos municípios piauienses) e uma população de aproximadamente um milhão de pessoas. O território do Vale do Guaribas abrange uma área de 22.822,40 km² e é composto por 39 municípios (Acauã, Bocaina, Caldeirão Grande do Piauí, Campo Grande do Piauí, Fronteiras, Jaicós, Paulistana, Picos, Pio IX, São João da Canabrava, São José do Piauí, Alagoinha do Piauí, Alegrete do Piauí, Belém do Piauí, Betânia do Piauí, Caridade do Piauí, Curral Novo do Piauí, Dom Expedito Lopes, Francisco Santos, Geminiano, Itainópolis, Jacobina do Piauí, Marcolândia, Massapê do Piauí, Monsenhor Hipólito, Padre Marcos, Paquetá, Patos do Piauí, Queimada Nova, Santana do Piauí, Santo Antônio de Lisboa, São Julião, São Luis do Piauí, Simões, Sussuapara, Vera Mendes, Vila Nova do Piauí, Francisco Macedo e Aroeiras do Itaim). A população total do território é de aproximadamente 340 mil habitantes, dos quais 181 mil vivem na área rural, o que corresponde a 53,14% do total. Possui 47.428 agricultores familiares, 1.193 famílias assentadas e 20 comunidades quilombolas.
Segundo Lima (2008), é uma região onde é possível identificar vários problemas enfrentados pela população empobrecida: dificuldade de acesso à água e a alimentos em quantidade e com boa qualidade para o consumo humano, principalmente nos períodos de estiagem prolongada. Esses problemas são frutos da estrutura excludente que predomina na área, baseada na concentração de terra e de água dos mais favorecidos, além da dificuldade de acesso da agricultura familiar aos meios e recursos necessários à produção agrícola e pecuária.
Os principais problemas do semiárido não são decorrentes somente das questões climáticas e ambientais, mas dos problemas sociais e políticos vivenciados historicamente. Desde a colonização essa região vem sofrendo com a má utilização do meio ambiente, que passou a ser devastado para criação de gado, provocando desequilíbrio ambiental; e com a grande concentração da terra e da água, que consolidou o processo de dominação política pautado no autoritarismo e no abuso de poder dos “coronéis”, contribuindo definitivamente para a implementação de uma cultura política baseada na submissão, no comodismo, no paternalismo e no clientelismo (Lima, 2006). É possível observar que muitas famílias rurais ainda se deixam influenciar pelo assistencialismo, se acomodando, esperando a boa vontade do governo ou de políticos que dominam as regiões desfavorecidas, pregando discursos que influenciam a população a desistir de buscar melhores condições de vida por meio da educação.
Segundo Mattos (apud Lima, 2006), a educação desenvolvida no semiárido é construída sobre valores e concepções equivocadas da realidade da região. Uma educação que reproduz em seu currículo uma ideologia preconceituosa e estereotipada que reforça a representação do semiárido como espaço de pobreza, miséria e improdutividade, negando todo o potencial dessa região e do seu povo.
Breve discussão sobre a Educação Contextualizada
Um dos desafios que mais têm estado presente na luta das ONGs e movimentos sociais é o da superação dos limites e contradições inerentes ao processo de formação educacional de crianças e adolescentes do Nordeste brasileiro, mais especificamente da região semiárida; como o modelo educacional é generalizante, fica muito complicado para professores e gestores traduzir em ação política o que diz o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, que diz, em seu Art. 58: "No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura" (Brasil, 1988).
Sabendo que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/96) prevê em seu Art. 28 a adaptação dos conteúdos curriculares às peculiaridades da zona rural e das demais regiões, além da utilização de metodologias de ensino que atendam às reais necessidades dos alunos, tendo como principais problemas a construção do currículo educacional que norteia as escolas rurais do município de Picos, o presente trabalho traz uma reflexão sobre em que pontos o currículo da Escola Municipal Joaquim Rodrigues de Sousa Martins contempla a realidade sociocultural, ambiental, econômica e política do semiárido.
Para desenvolver uma educação na perspectiva da contextualização não existem receitas prontas nem fórmulas mágicas, mas uma intencionalidade e uma fundamentação teórica que a tornam legitima e uma possibilidade frente ao tradicionalismo que se baseia na formalidade abstrata, pois a Educação Contextualizada se baseia na lógica da convivência sustentável, onde a concepção de combate à seca é substituída por uma prática educativa de convivência, de construção de tecnologias alternativas que favoreçam essa convivência com o semiárido.
Segundo Alves (2008), a educação desenvolvida por ONGs e movimentos sociais que atuam no semiárido não pretende ser localista, é caracterizada também pela luta em prol da não redução do Nordeste/Semiárido como apenas um recorte espacial, mas percebem o mesmo em suas condições e contradições, situações políticas, sócio-históricas, econômicas, culturais e ambientais como objetos de conhecimento e como realidade na qual se pode atuar no intuito transformar as condições adversas e promover a sua sustentabilidade.
Portanto, a educação no semiárido tem como grande desafio a construção de novos sentidos para os saberes educativos, em que as práticas educativas tenham em suas intervenções a vida da comunidade. A Educação Contextualizada, de acordo com Alves (2008), concebe o semiárido como um ecossistema específico, como um objeto de estudo e espaço de intervenção político-pedagógico e mobilizador social, enfim, como espaço de afirmação da luta pela vida e promoção da sustentabilidade.
Currículo contextualizado no semiárido: desafios e perspectivas
Segundo Araujo e Menezes (2007), o pensamento curricular ao longo da história da educação brasileira foi fortemente marcado pela linearidade das teorias sociofilosóficas que embasaram as construções teóricas do pensamento burguês. Esse referencial marcou a produção no campo do currículo até a década de 1980. Submissos e dependentes das teorizações europeias e posteriormente norte-americanas, a elaboração curricular no Brasil apresentava um viés funcionalista. “Apenas na década de 80, com o início da redemocratização do Brasil e o enfraquecimento da Guerra Fria, a hegemonia do referencial funcionalista norte-americano foi abalada. Nesse momento, ganharam força no pensamento curricular brasileiro as vertentes marxistas” (LOPES; MACEDO, 2002, p. 13).
No final da década de 1980 e primeira metade da de 90, ganhou força a ideia de que o currículo só pode ser compreendido quando contextualizado política, econômica e socialmente. A contribuição teórica de Paulo Freire, desde a década de 1960, foi retomada e começou a criar uma hegemonia conceitual nesse campo. Ainda nos anos 90, iniciou-se outra discussão no campo curricular: a questão da multirreferencialidade; para Burnham (1993, p. 15), era
tematizar o currículo e seu significado na sociedade contemporânea. Remete-nos a aprofundar a questão curricular como processo social que se realiza no espaço concreto da escola e que deve garantir aos sujeitos envolvidos acesso a diferentes referenciais de leitura e relacionamento com o mundo, proporcionando-lhes não apenas conhecimento e outras vivências, mas também contribuindo para a sua inserção na instituição histórico-social.
Para Araujo e Meneses (2007), no início dos anos 1990, os estudos, as pesquisas e produções no campo curricular caracterizavam-se fortemente pelo enfoque sociológico. As produções buscavam, majoritariamente, a compreensão do currículo como espaço de relações de poder e fundamentavam-se em teóricos ligados à nova Sociologia da Educação, como Michael Apple e Henry Giroux. O que se percebe é que os estudos voltados para a área do currículo contextualizado são recentes, porém ganharam força no final dos anos 90 e início do século XXI.
A concepção de Educação Contextualizada pretende entender que as pessoas podem se construir e construir seu conhecimento a partir do seu contexto, com relações mais amplas, de vivências mais profundas. Ou seja, a relação, ou a construção dos saberes, se dá na relação das pessoas com o mundo, consigo mesmo e com os outros. Para Reis (2005, p. 13),
a Educação Contextualizada e para Convivência com o Semiárido não pode ser entendida como um espaço do aprisionamento do saber, ou ainda na perspectiva de uma educação localista, mas como aquela que se constrói no cruzamento cultura-escola-sociedade. A contextualização nesse sentido não pode ser entendida apenas como a inversão de uma lógica curricular construtora e produtora de novas excludências.
Portanto, contextualizar implica estabelecer uma relação dinâmica, dialética e dialógica entre contexto histórico, social, político e cultural e o currículo como um todo, concebido como um processo em constante construção que se faz e refaz. Para Martins (2002, p. 31),
contextualizar, portanto, é essa operação mais complicada de descolonização. Será sempre tecer o movimento de uma rede que concentre o esforço em soerguer as questões “locais” e outras tantas questões silenciadas na narrativa oficial ao status de “questões pertinentes” não por serem elas “locais” ou “marginais”, mas por serem elas “pertinentes” e por representarem a devolução da “voz” aos que a tiveram usurpada, roubada, negada historicamente.
No Semiárido Brasileiro, especialmente no âmbito não governamental, vêm se articulando diferentes e diversas experiências no âmbito da Educação Contextualizada. Nesse campo merece destaque a Resab – Rede de Educação do Semiárido Brasileiro, que tem como finalidade contribuir na formulação das políticas públicas educacionais do Semiárido Brasileiro, defendendo o direito de todos à educação pública, gratuita e de qualidade, orientada pelos princípios da convivência no âmbito de um projeto de desenvolvimento sustentável na região. Essa rede, além de ser um espaço de articulação político-pedagógica, vem subsidiando a elaboração e a publicação de material didático como suporte ao trabalho educativo desenvolvido na perspectiva da contextualização (ARAÚJO; MENEZES, 2007).
O currículo contextualizado no município de Picos: desafios e limites
O currículo desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de Picos para escolas da rede até o final do ano de 2012 era único, sem distinção específica para Zona Rural e Zona Urbana, seriação ou multisseriação. O currículo era baseado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental e seguia à risca os conteúdos programáticos dos livros didáticos, que até então eram descontextualizados e de difícil entendimento para os alunos. Em 2013, o MEC lançou o Programa Nacional do Livro Didático do Campo (PNLD Campo); os livros adotados pelas escolas não necessitavam de devolução ao final do ano letivo. A distribuição integral das obras passou a ser feita a cada três anos e nos anos seguintes o FNDE faz a reposição para atender as novas matrículas.
De acordo com as coordenadoras da Educação Infantil e do Ensino Fundamental da Escola Municipal Joaquim Rodrigues de Sousa Martins, em 2012, o currículo das escolas rurais da cidade de Picos seguia um currículo de base nacional comum para todas as escolas, sendo rural ou não. As respostas das coordenadoras e das professoras a esse respeito é de que
o currículo escolar segue a base nacional comum, a parte diversificada é acrescentada apenas no 4º e 5º anos com o ensino de História do Piauí, Geografia do Piauí e língua estrangeira – Inglês (C. 1).
Segue a base nacional, sendo que os professores têm liberdade para adaptar à realidade de cada escola (C. 2).
Na minha opinião, o currículo é igual ao de todas as escolas da rede, não vejo nenhuma diferença, acho que podemos fazer as adaptações necessárias, mas seguimos os conteúdos dos livros (P. 1).
O currículo escolar é organizado pela secretaria, nas capacitações eles nos dão todo um suporte, porém muitas vezes não é possível contextualizar devido ao fato de os conteúdos dos livros não serem contextualizados (P. 2).
Nesse caso, observamos que a compreensão dos sujeitos não combina com a concepção de Reis et al. (2012, p. 66); eles afirmam:
Fazer uma educação na perspectiva da contextualização e da convivência com o Semiárido em que essa ideia de contexto seja o ponto de partida e de chegada, no espaço da escola urbana e rural, não é fácil de ser concretizada. Mas são desafios a enfrentar quando se pensa em construir outra postura no fazer pedagógico sem desprezar os conhecimentos historicamente sistematizados, mas fazendo-os dialogar com a realidade.
Portanto, para as coordenadoras, a ideia de contextualização está ligeiramente ligada ao conteúdo adotado pela escola não em um currículo previamente elaborado e concretizado na escola, com todas as diretrizes e peculiaridades que devem ser trabalhadas na escola para alcançar os objetivos propostos no currículo. A partir de 2013, com o PNLD Campo, houve uma reestruturação no tocante à elaboração e à adoção de livros didáticos, porém esses livros só atendem à demanda do Ensino Fundamental I; no Ensino Fundamental II permanece a adoção dos mesmos livros adotados pelas escolas urbanas.
Desafios na construção do currículo contextualizado na Escola Municipal Joaquim Rodrigues de Sousa Martins
É fato que o currículo elaborado e adotado pelas escolas municipais de Picos é construído exclusivamente pela Secretaria de Educação; não há participação efetiva de professores da rede ou de qualquer membro da comunidade escolar. Não há distinção de referenciais para a Zona Rural ou Zona Urbana, é como se a realidade local fosse a mesma e os indivíduos envolvidos, os mesmos. Ainda há o problema que, na opinião de muitos professores, é o mais grave: a adoção de livros descontextualizados, levando-os a ensinar conteúdos desinteressantes para os educandos, o que por muitas vezes é motivo para baixa frequência, abando escolar e reprovação.
Segundo Reis et al. (2012), incluir na educação escolar aquilo que vem sendo constituído intensivamente pelos movimentos sociais ainda representa um grande desafio, porque em muitos lugares ainda permanece a incompatibilidade entre o Estado (o público-governamental) e a sociedade civil organizada, cujas propostas nascem da luta por direitos historicamente negados. Outro desafio que se apresenta nesse caminhar é a desconstrução de visões preconceituosas. Como definem Reis et al. (2012),
descolonizar o currículo passa também por romper com o seu caráter preconceituoso que desconsidera o negro, que apresenta o índio como símbolo da preguiça, o camponês como inculto e outros tantos estereótipos. Da mesma forma, ideias que apresentam os livros didáticos como produto do mercado e não como instrumentos facilitadores da aprendizagem e do acesso ao conhecimento. Descolonizar o currículo passa por problematizar todas essas ideias (REIS et al., 2012, p. 66-67).
Nesse caso, qualificar a gestão dos sistemas públicos naquilo que vem sendo produzido na construção coletiva, de forma a apoiar a gestão compartilhada da educação no semiárido, é um desafio a ser enfrentado na gestão da educação no Semiárido Brasileiro (Reis et al., 2012, p. 66).
Como é que essa proposta pode ser assumida pela rede municipal no sentido de melhor qualificar os sistemas de ensino na contextualização da educação e na democratização da gestão da educação picoense? A escola, por exemplo, precisa ser um espaço do qual pais e alunos sintam-se partes, para que tenha sentido e significado na vida da comunidade e dos seus discentes.
Para que o currículo escolar seja desenvolvido, a SEME-Picos procura promover capacitações e aperfeiçoamentos, porém em relação ao contexto do semiárido as coordenadoras e professoras foram condizentes em responder que
em relação ao contexto do semiárido para o Ensino Fundamental I, ainda não promovemos, mas ofertamos outros com temas como: bullying, drogas nas escolas e nutrição escolar entre outros (C. 1).
Não que eu tenha conhecimento, mas a secretaria disponibiliza outros de vez em quando para promover uma educação de qualidade na rede (C. 2).
A secretaria faz muitas capacitações, principalmente no inicio do ano letivo, mas nunca participei de nenhuma com esse tema (P. 1).
Sempre que inicia um período letivo tem capacitação, mais relacionada a aprendizagem dos alunos, como leitura, escrita, avaliação etc. Quanto ao contexto do semiárido, pouco ouvi falar, pela secretaria não há capacitação nesse sentido (P. 2).
Esclarecemos, assim, que muitos projetos e programas realizados pela SEME-Picos ainda deixam a desejar segundo o pensamento de Candau (1996 apud Lima e Mendes Sobrinho):
Os resultados de alguns desses programas não têm sido satisfatórios pelo fato de serem construídos com base nos modelos clássicos de formação voltados para a transmissão de conhecimento, que não favorecem a reflexão das práticas pedagógicas desenvolvidas pelos professores nem consideram as necessidades e os saberes que os docentes constroem no cotidiano de suas práticas. Diante desse contexto, novas experiências de formação docente, fundamentadas no pensamento de Freire (1997), Giroux (1997), Contreras (2002), Nóvoa (1995) e Tardif (2002), estão sendo desenvolvidas com o intuito de contribuir com a formação de professores críticos e reflexivos, capazes de analisar o contexto sociopolítico e econômico, possibilitando o desenvolvimento de práticas pedagógicas emancipatórias e transformadoras (Lima; Mendes Sobrinho, 2009).
Esses autores ainda afirmam que poucas dessas experiências têm apresentado resultados expressivos que garantam inovações nas práticas pedagógicas desses docentes e, consequentemente, a melhoria do currículo na educação, pois falta prática pedagógica em relação à formação e à aplicabilidade do currículo educacional.
Indagadas sobre os projetos que buscam a valorização do semiárido piauiense organizados pela SEME-Picos ou pelas próprias escolas, as coordenadoras respondem que
Há, sim, um que foi acompanhado pela secretaria; foi a produção do livro paradidático e há também os organizados para apresentação do selo Unicef (C. 1).
Atualmente vêm acontecendo, mas é muito tímido ainda, sem muita visibilidade na sociedade (C. 2).
Segundo Reis et al. (2012), há, portanto, necessidade de mais capacitações instaladas, o que representa outro grande desafio, principalmente quando se propõem políticas públicas nessa perspectiva, porque a maioria dos sistemas de ensino reproduz apenas os programas do MEC, que nem sempre tocam nesse contexto, mas que precisam dialogar com aqueles que vivem e fazem a educação em todos os espaços.
Sobre o objetivo do currículo para Educação do Campo, as coordenadoras da SEME-Picos coincidem suas respostas dizendo que o objetivo é
formar cidadãos conscientes, críticos e participantes na sociedade (C. 1).
A secretaria quer formar cidadãos capazes de interagir na sociedade e serem atuantes no mercado de trabalho (C. 2).
Pelo depoimento das coordenadoras, percebemos que nem elas sabem exatamente qual o objetivo do currículo, mesmo porque não há referencial de currículo para a educação no campo desenvolvido pela secretaria, mostrando que a Educação do Campo tem o mesmo objetivo da educação nacional, mais voltada para as tendências tecnicista e tradicional, como se o Brasil fosse um país homogêneo; fica esclarecido que a educação chegou à localidade assim como defende Reis (2011, p. 37):
Quando os serviços de atendimento básico, educação, saúde, telecomunicação e energia, entre outros, chegam a essas localidades, se dão em forma de campanhas (algo temporário); quando em definitivo, ainda se apresentam como uma agressão às culturas locais, já que muitas vezes não levam em consideração os costumes locais e a maneira de viver nesse espaço (REIS, 2011, p. 37).
Portanto, há muitos desafios a serem enfrentados para que a cidade de Picos tenha em suas escolas municipais currículos contextualizados, construídos pelas próprias escolas, rurais ou urbanas. A educação só será considerada de qualidade quando meninos e meninas aprenderem a valorizar sua cultura e a conviver com as adversidades da seca, com os problemas oriundos desse fenômeno. Porém esses desafios só começarão a ser superados quando professores levarem esse debate para dentro da sala de aula.
Principais dificuldades encontradas pelos professores para contextualizar o currículo da escola
Reis et al. (2012) afirmam que a Educação Contextualizada para a convivência precisa ser uma prática que compreenda que o semiárido constitui em si uma realidade particular que merece e deve ser tematizada na escola, por suas problemáticas e potencialidades, vendo na escola um espaço para a ampliação dos conhecimentos e saberes diversos. Uma Educação que valorize seu quadro de profissionais, pois são eles que, na prática, efetivam a proposta político-pedagógica. Não adianta anunciar a melhor das propostas pedagógicas se os educadores a ela se opuserem, se não são valorizados para fazê-las acontecer. Por isso, é preciso investir na sua formação, intentando ampliar o seu conhecimento e movendo-os à pesquisa. Sem valorização, especialmente no que se refere à remuneração, esses profissionais continuarão vinculados a mais de um sistema na luta pela sobrevivência, não lhes sobrando tempo para um trabalho de qualidade.
Exatamente por essas razões, as professoras entrevistadas avaliaram seu trabalho como razoável, pois elas dependem de um transporte escolar para ir à escola, não mantendo um relacionamento estreito com a comunidade; elas disseram ainda que há falta de incentivo material, como o uso de aparelho mimeógrafo para copiar tarefas e provas, poucas qualificações voltadas para a contextualização, falta de projetos interdisciplinares e de infraestrutura e tantos outros problemas que até consideram-se obreiras de milagres dentro da escola.
Considero um trabalho bem desenvolvido, pois não temos uma coordenadora totalmente presente para nos orientar nesses aspectos. Planejamos muitas vezes sem orientação de um supervisor ou diretor de escola, porque a escola é pequena e com turmas multisseriadas, o que torna o trabalho ainda mais difícil, mas conseguimos alcançar os objetivos propostos (P. 1).
Apesar dos poucos recursos e de faltar um profissional na área pedagógica, até que trabalhamos dignamente e conseguimos que muitos alunos desenvolvam a aprendizagem (P. 2).
Segundo as professoras, a escola procura, na medida do possível, valorizar a realidade sociocultural dos alunos, desenvolvendo atividades que despertem o senso crítico deles como sujeitos integrantes da sociedade, quanto à forma de valorização da terra e da água para a sua sobrevivência. Porém, até 2012 a escola não possuía um projeto político-pedagógico próprio, elaborado por professores, comunidade e alunos; esse documento era elaborado pelas coordenadoras da SEME-Picos e enviado para todas as escolas da rede como um documento comum a todas as escolas, até porque muitas delas são de pequeno porte e possuem poucos alunos e funcionários.
Particularmente, acredito que só há qualidade na educação quando é valorizada a realidade em que o aluno está inserido, por isso procuro sempre envolver nas minhas aulas assuntos relacionados ao contexto dos alunos (P. 1).
Faço algumas atividades que favorecem a realidade do aluno, principalmente em relação ao cultivo da terra e da água, porém muitas vezes não é possível articular os conteúdos dos livros com essa realidade, porque os conteúdos muitas vezes não dão pra fazer essa contextualização (P. 2).
Quanto aos conteúdos abordados nas diferentes disciplinas, as professoras mostraram-se preocupadas em relação a abordagem, já que os conteúdos dos livros didáticos da Educação do Campo em 2013 passaram a ser contextualizados. Elas disseram não ter recebido nenhuma capacitação para atuar com eles, mas revelaram que até o momento procuram atender as diversas disciplinas da polivalência o interesse e as necessidades dos educandos, ampliando o conhecimento e fazendo a relação com o contexto deles.
Para as professoras, são inúmeros os desafios para a construção do currículo contextualizado, pois se trata de romper barreiras até hoje não enfrentadas por nenhuma delas; primeiro que há centralização da educação da rede em sua sede, que é a Secretaria Municipal de Educação, e esta é vinculada à prefeitura, cuja forma de organização muda a cada nova gestão; então, quando elas já estão adaptadas a um determinado processo educativo, muda a gestão municipal e mudam todas as estruturas que já haviam sido estabelecidas antes, dificultando a continuidade do processo. Em segundo lugar, porque há falta de capacitações no município em relação a essa temática; muitos professores da rede são lotados na Zona Rural sem ter formação profissional para lecionar nas localidades. E sem falar da desvalorização profissional, o alto risco de violência tanto na cidade como no campo, falta de recursos didáticos e tantos outros problemas que enfrentam dia após dia.
Considerações finais
O currículo deve visar a uma formação plena; portanto, seus conhecimentos devem ser abordados numa dimensão de totalidade, associados ao processo de compreensão dos problemas socioculturais enfrentados no dia a dia da sociedade e colocando os saberes a serviço dos processos de transformação social. Porém há inúmeros desafios quanto à sua construção e implementação, o que se faz urgente e necessário são debates e estudos a esse respeito, para que o currículo escolar não seja ligado apenas à parte conteudista, e sim que seja amplo o seu significado dentro das instituições.
Contextualizar o currículo nos impulsiona a construir uma educação onde não sejam ignoradas as diferenças sociais e culturais, que possa ajudar as pessoas a serem mais humanas; é preciso romper com discursos que vêm de fora e que só têm negado os saberes locais, pois acreditamos que o conhecimento pode ser construído com base nos princípios da educação progressista e transformadora, que deve resgatar e fortalecer os valores culturais como forma de garantir a autonomia e a independência das comunidades; além disso, torna-se necessária a construção de processos pedagógicos que garantam aos jovens a valorização de sua cultura, pois essa atividade tem fundamental importância no processo de formação de indivíduos críticos e autônomos, capazes de construir uma sociedade mais justa, humana e solidária.
É claro que a Educação Contextualizada e para convivência com o semiárido não pode ser entendida como uma educação de aprisionamento ou na perspectiva de uma educação localista, mas sim como uma educação na qual se faz o cruzamento cultura-escola-sociedade; o currículo deve ser entendido como um todo, concebido como um processo em constante construção.
Para tanto, é preciso haver mais discussão acerca do tipo de indivíduos que se pretende formar e qual tipo de sociedade necessitamos construir para compreender os anseios e as necessidades desses indivíduos. É preciso também que as instituições tenham mais preocupação em articular seus projetos educativos com um projeto de desenvolvimento sustentável, promovendo debates com profissionais da educação, pois nesta região as iniciativas da comunidade escolar por uma Educação Contextualizada ainda são muito tímidas.
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Publicado em 11 de junho de 2019
Como citar este artigo (ABNT)
CASTRO, Renária Rodrigues de. Desafios em contextualizar o currículo da Escola Municipal Joaquim Rodrigues De Sousa Martins. Revista Educação Pública, v. 19, nº 11, 11 de junho de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/11/desafios-em-contextualizar-o-curriculo-da-escola-municipal-joaquim-rodrigues-de-sousa-martins.
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