Libras na educação: limites e possibilidades

José Clécio Silva de Souza

Bacharel em Serviço Social (Unopar), licenciado em História (Uniasselvi), especialista em História da Cultura Afro-Brasileira (Face), docente de História e Matemática na Escola Municipal de Educação Básica Manoel Moura de Souza, em Delmiro Gouveia/AL e de História na Escola Municipal de Educação Básica Nossa Senhora do Rosário, em Inhapi/AL

Mathéus Conceição Santos

Licenciado em Educação Física (UniAGES)

Vivemos em uma sociedade dominada por ouvintes e falantes; porém, em seu meio há habitantes deste imenso país que são surdos, os quais até algum tempo atrás não conseguiam compreender o outro em sua volta nem ser compreendido. Estes, durante anos, foram vítimas de um processo de exclusão, pois não havia uma língua própria, reconhecida e que lhes possibilitasse sua inserção plena ao meio.

O reconhecimento da Libras como língua oficial leva os surdos do Brasil a escrever uma nova história; entretanto, apesar dos avanços ainda há vários fatores que levam muitos surdos a serem excluídos socialmente, como nas escolas, por não haver profissionais que os compreendam.

O conhecimento é gerado com ato de pensar; portanto, com o reconhecimento da língua própria para surdos, a Libras, houve uma mudança na caracterização dos surdos; uma vez que sua língua foi reconhecida socialmente, eles passaram a ser considerados cidadãos.

Infelizmente, muitas vezes a sociedade não enxerga o surdo como um cidadão que apenas tem um limite na audição, nega reconhecer nessa pessoa um ser de direitos e deveres, com uma língua e uma cultura próprias. A conquista do reconhecimento da Libras como sua língua e a modificação da visão do surdo como pessoa que possui deficiência, mas também uma diferença no modo de aprender e apreender o mundo, ainda são tímidas; já foram obtidos resultados significativos, como a aprovação da Lei nº 10.098, de dezembro de 2000, que prevê a formação de interpretes e tradutores da Língua Brasileira de Sinais para possibilitar aos surdos o acesso à informação. A Lei nº 10.436/02 institui a Libras como a língua materna dos surdos; o que passa a existir é a possibilidade de uma mudança de comportamento e de visão da sociedade em relação a essa população.

Faz-se necessário estudar a legislação de interesse dos surdos e conhecer a realidade de instituições onde há pessoas surdas, entender como elas estão sendo tratadas; é importante compreender a aplicabilidade das leis.

O presente texto aborda inicialmente algumas questões históricas dos surdos e das línguas de sinais no mundo e no Brasil; na sequência serão tratados leis e decretos que tornam oficial a Libras e os benefícios dela para a comunidade surda. Por fim, será exposto o caso de um aluno surdo de uma escola publica em que, pela falta de formação dos profissionais, mesmo atendendo à LDB, ele não tem a atenção que a legislação garante, o que mostra que ainda há muitos surdos que são privados de seus direitos.

Aspectos históricos da Língua Brasileira de Sinais

A língua de sinais é uma língua não universal utilizada como forma de comunicação com os surdos, forma de comunicação esta que se baseia em movimentos gestuais e visuais. A língua de sinais existe desde 4.000 a.C., com os greco-romanos, que são considerados seres humanos competentes, passando pela Idade Média, 476 d.C., e chegando à Idade Moderna. Desde meados de 1453, foi iniciado na França um trabalho educacional com surdos por Ponce de Leon, considerado o primeiro professor surdo da história.

No Brasil, já existiam surdos no período compreendido de 1500 a 1855. Nessa época, como as formas de educação eram precárias, sem muitos recursos, chegou ao Brasil em 1855 o professor francês Huet, que era surdo. Após 32 anos de sua chegada, foi fundado no Rio de Janeiro o primeiro Instituto Nacional de Surdos e Mudos do Brasil.

Entre 1930 e 1992, a comunidade surda do Brasil se fortaleceu, reivindicando seus direitos, e até então as escolas tradicionais foram mudando seus métodos, incluindo como forma de comunicação a gestual-visual. Em 2002, foi promulgada a Lei nº 10.436, que, juntamente com o Decreto nº 5.626/05, reconhecem a Libras com a segunda língua oficial do país. Essas leis reconheceram a Língua Brasileira de Sinais como meio de comunicação objetiva e de utilização das comunidades surdas do Brasil, ao mesmo tempo que fez com que os currículos dos cursos de licenciatura fossem alterados, com a inclusão de Libras em sua grade. As mudanças na legislação proporcionaram a inclusão de surdos e criaram grande demanda por profissionais com formação em Libras.

Os surdos, ao longo da nossa historia, foram considerados deficientes e ficaram “escondidos” da sociedade. Há pessoas surdas no Brasil, em todas as partes, que infelizmente são invisíveis à sociedade.

Em décadas passadas, existiam famílias ouvintes que “escondiam” os filhos surdos com “vergonha” de terem concebido uma criança fora dos padrões considerados normais; por isso, os surdos quase não saíam de casa ou sempre ficavam acompanhados dos pais. A comunicação dos pais com os filhos surdos era muito complexa, pois esses pais não sabiam a Língua de Sinais e não a aceitavam; achavam que era “feio” fazer “gestos” ou “mímica” (não língua de sinais). Os filhos sentiam-se isolados. O bloqueio no desenvolvimento da Língua de Sinais causou problemas sociais, emocionais e intelectuais na aquisição da linguagem dos surdos. Além disso, esses indivíduos também não conseguiam alcançar suas metas e seus objetivos devido ao preconceito e à marginalização existentes, na sociedade, em relação à Língua de Sinais e à construção da identidade cultural surda brasileira, que era “isolada” e “discriminada”. Ultimamente, observa-se um processo de mudança significativa do olhar da sociedade em relação à questão do surdo, sua língua e cultura. Entretanto, esse é ainda um processo muito lento dentro das políticas educacionais da sociedade brasileira. Até poucos anos atrás a Língua Brasileira de Sinais era vista como ”tabu”, pois não havia sido atribuída a Língua de Sinais o status de língua. Ela era apenas considerada como “linguagem” e não língua (Monteiro, 2006, p. 279).

As experiências educacionais promovem uma modificação no modo de a sociedade encarar o surdo; conclui-se que os surdos são pessoas inteligentes que podem aprender uma linguagem para exprimir seu pensamento; são capazes de aprender qualquer língua e se desenvolver de forma igual a um ouvinte, desde que sejam criadas condições.

O reconhecimento da Libras como segunda língua oficial e o processo de inclusão

Não se sabe exatamente a quantidade de surdos no Brasil. O IBGE possui grande dificuldade de especificar esse quantitativo, uma vez que a pesquisa solicita o número geral de pessoas com algum tipo de deficiência, não especificando a questão da surdez. Segundo Monteiro (2006), apesar de todas as dificuldades, dados recentes do IBGE estimam que o total de surdos brasileiros seja de 5,7 milhões (divididos em surdos profundos e deficientes auditivos).

De acordo como o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais.

No decorrer dos anos, a comunidade surda brasileira lutou por seus direitos para ter a língua de sinais oficialmente reconhecida, de modo a possibilitar a inclusão dos que por anos foram privados de seus direitos devido à barreira na comunicação. Os surdos precisam se fazer entender e entender os outros, que na maioria das vezes são ouvintes; compreendendo o mundo à sua volta, podem ter mais acesso aos direitos garantidos por lei, podendo alcançar melhor qualidade de vida.

Devido à grande quantidade de pessoas surdas, se faz necessário que reconheçamos que a Lei nº 10.436/02, que institui a Língua Brasileira de Sinais-Libras, mais do que fazer conhecer a língua, também é um movimento social e político para o resgate dos surdos da marginalização lingusitico-educacional vivenciada por eles durante décadas.

Em 2002, foi promulgada a Lei n° 10.423, que reconhece e oficializa a Língua Brasileira de Sinais – Libras; a promulgação do Decreto nº 5.626/05 sela esse processo, sendo então a Libras reconhecida como a segunda língua oficial do país, após a língua portuguesa.

O decreto de 2005, que veio regularizar a Lei nº 10.436/02, consolidou a difusão e o uso da Libras nos sistemas educacionais federal, estadual, municipal e privado, possibilitando o desenvolvimento de políticas de inclusão de pessoas surdas. Os currículos dos diversos sistemas de ensino sofreram modificações para atender às novas leis, nos quais se tornou obrigatória a inclusão da disciplina de Libras.

Os sistemas educacionais federal, estadual, municipal e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior de ensino, a Língua Brasileira de Sinais, como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, conforme legislação vigente (Brasil, 2002).

Logo, o ensino de Libras se tornou obrigatório nos cursos de formação de professores e Fonoaudiologia, sendo disciplina curricular optativa nos demais cursos de nível superior e na educação profissional, de acordo com o Art. 3º, § 2º do Decreto nº 5.626/05.

Diante de tantas mudanças na legislação desde 2000, surgiu um novo desafio: a formação de profissionais em Libras, que já estava prevista na Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, para possibilitar aos surdos o acesso à informação. A formação de profissionais deve ser realizada em cursos específicos de nível superior de Libras – Tradução e Interpretação. Devido à escassez de cursos específicos, outra forma de capacitar profissionais tem sido por meio de cursos de extensão e formação continuada, o que não é suficiente para suprir a carência das instituições, principalmente as de ensino.

O reconhecimento da Libras como língua oficial propiciou a quebra da barreira linguística entre ouvintes e surdos, proporcionando aos últimos maior oportunidade de comunicação e desenvolvimento – intelectual e profissional, entre outros.

Libras: limites e possibilidades na educação

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) trata da questão da inclusão da pessoa com necessidade especial. Segundo a LDB, sempre que possível, a inclusão de uma pessoa com necessidade especial deve ser feita em turmas regulares, como aluno sem necessidade de atendimento especial. A depender da necessidade, seu processo de aprendizagem pode não ser comprometido, havendo, claro, condições favoráveis, que vão de recursos didáticos a profissionais capacitados.

Como lidar com um aluno surdo em uma instituição de ensino de Educação Básica, em que os profissionais da educação não possuem formação e conhecimento acerca da Libras? Como será o tratamento do professor para com esse aluno? E o seu aprendizado? E a relação como os demais sujeitos da instituição?

Apesar de todas as mudanças na legislação, a realidade em muitas instituições continua como antes das leis, pois o maior empecilho é a formação de profissionais para desenvolver suas atividades juntamente com alunos da Educação Básica e outras modalidades de ensino.

Em uma escola do município de Delmiro Gouveia/AL, no meio de quase 300 alunos do Ensino Fundamental, existe um aluno com necessidade especial, surdo e mudo. Na instituição, nenhum dos profissionais tem domínio e conhecimento da Libras, pois eles não participaram de qualquer curso de formação, seja em nível superior ou de extensão.

Esse aluno, ao mesmo tempo que este está inserido em uma turma regular como exige a LDB, faz parte de um processo de exclusão, privado de aprender devido à barreira linguística entre ele e seus colegas, com o professor e demais profissionais da Instituição. A comunicação entre ele e os ouvintes se dá por meio de gestos que nada têm a ver com Libras. Nesse caso, é necessário um profissional com capacidade de interpretação e tradução ou que o professor tivesse essa capacidade, esse conhecimento.

Ser intérprete de língua de sinais é muito mais do que ser identificado pela língua que fala, muito mais do que estar presente nas comunidades surdas ou ainda estabelecer um elo entre mundos linguísticos diferentes. Ser intérprete é conflitar subjetividade de não surdo e mudo, é moldar o seu corpo a partir de sua intencionalidade, reaprender o universo do sentir e do perceber, é uma mudança radical onde a cultura não é mais o único do ser (Marques; Oliveira, 2009, p. 399).

Onde há um surdo é necessário que exista um tradutor e intérprete de Libras, para que o educando, através de sua língua, passe a se comunicar e adquirir conhecimentos, podendo assim ser considerado cidadão pleno, tendo seus direitos e deveres reconhecidos.

Os professores da instituição na qual o aluno está inserido lamentam não poder fazer nada e reconhecem que ele não progride devido à falta de comunicação correta entre eles. Em entrevista realizada com um dos professores, este diz:

Nada podemos fazer para ajudar esta criança. Não temos apoio do Departamento de Educação Especial da Secretaria de Educação do município, não há curso de formação para os profissionais da rede nem é disponibilizado um profissional com formação adequada para auxiliar no processo de aprendizagem dele. Infelizmente o aluno é vitima de exclusão no processo de aprendizagem, devido à nossa falta de formação.

O relato do professor vem confirmar que existe grande abismo entre as leis e a realidade. Diante desse contexto, devemos parar e pensar em quantos alunos se encontram nessa situação no Brasil; quantos, em meio ao processo de inclusão, são excluídos. Ainda há muito para fazer.

Considerações finais

Com base nas informações apresentadas, vemos que a língua de sinais teve origem em 4.000 a.C. e evoluiu com o passar dos anos, dando às pessoas surdas oportunidade de serem compreendidas e de compreender o que acontece à sua volta.

No Brasil, já existiam surdos desde 1500, mas a língua de sinais passou a ser conhecida com a vinda do francês Huet. Desde a fundação do primeiro Instituto de Surdos e Mudos, na cidade do Rio de Janeiro, em 1887, a língua de sinais no Brasil foi passando por profundas transformações, com o intuito de melhorar a comunicação da comunidade surda do Brasil.

Nos últimos onze anos, foram promulgados leis e decreto que reconheceram a Libras como a segunda língua oficial do Brasil e que previam a formação de profissionais em Libras, assim como mudados os currículos dos cursos de formação docente, o que deu origem a um novo mercado de trabalho, o de tradutor e intérprete, pela necessidade de ter um profissional com essa formação onde há um surdo.

É de fundamental importância ressaltar que, com a promulgação do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, houve mudança significativa, quando se passou a utilizar o termo “surdo” em lugar de “deficiente auditivo”, presente em documentos anteriores.

Essa legislação aponta um grande avanço na questão do reconhecimento dos surdos como sujeitos de direito e o reconhecimento da sua comunicação como cultura diferenciada. A língua de sinais preenche as mesmas funções que a língua portuguesa falada; portanto, para ser adquirida, é necessário que as crianças surdas tenham convívio com adultos surdos que possam inseri-las no funcionamento linguístico-discursivo dessa língua. Com o caso do aluno surdo da escola de Delmiro Gouveia, notou-se que, devido à falta de formação de profissionais em Libras, ele é excluído do processo de ensino-aprendizagem; isso, sem dúvida, é a realidade de muitos alunos no Brasil, o que acaba por comprometer seu desenvolvimento.

Em síntese, percebemos que, apesar dos avanços da legislação na intenção de favorecer a inclusão dos surdos e de estes serem reconhecidos como cidadãos, infelizmente a realidade deles não mudou completamente, tendo muito ainda a fazer. É preciso que haja compromisso da esfera governamental e de outras instituições da sociedade, a fim de haver profissionais qualificados e em quantidade suficiente para atender a esse grupo da sociedade.

Referências

BRASIL. Lei n° 9.396, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional (LDBEN). Brasília, 1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf. Acesso em 10 set. 2011.

______. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Brasília, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_ 03/Leis/2002/L10436.htm. Acesso em: 09 set. 2011.

______. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o Art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Brasília, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em: 9 set. 2001.

MARQUES, Rodrigo Rosso; OLIVEIRA, Janaína Soares. O fenômeno de ser intérprete. In: QUADROS, Ronice Muller; STUMPF, Mariane Rossi. Estudos Surdos IV. Petrópolis, RJ. Arara Azul, 2009. p. 394-406.

MONTEIRO, M. S. História dos movimentos dos surdos e o reconhecimento da Libras no Brasil. EDT - Educação Temática Digital, v. 7, p. 279-289, 2006.

Publicado em 09 de julho de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

SOUZA, José Clécio Silva de Souza; SANTOS, Mathéus Conceição. Libras na educação: limites e possibilidades. Revista Educação Pública, v. 19, nº 13, 9 de julho de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/13/libras-na-educacao-limites-e-possibilidades.

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