A formação de professores e a questão do letramento digital: imbricamentos entre teoria e práticas no espaço escolar

Eliza Adriana Sheuer Nantes

Doutora em Estudos da Linguagem, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Metodologias para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias (Unopar/Funadesp)

Okçana Battini

Doutora em Educação, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Metodologias para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias (Unopar/Funadesp)

Edenar Souza Monteiro

Doutora em Educação, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino da Universidade de Cuiabá (UNIC/Instituto Federal de Educação de Mato Grosso)

Cilene Maria Lima Antunes Maciel

Doutora em Educação, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino da Universidade de Cuiabá (UNIC/Instituto Federal de Educação de Mato Grosso)

 

A sociedade contemporânea tem passado por mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais que impactam o campo educacional, redimensionando, dentre outros elementos, o papel do professor, da gestão escolar, da organização curricular e do processo de ensino e aprendizagem.

Em virtude dessas mudanças, um dos principais elementos presentes nos estudos sobre novas formas de ensinar e aprender é a questão das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) e sua mediação no ato pedagógico.

Muitos são os recursos tecnológicos disponíveis para utilização em sala de aula. Há softwares multiuso, ambientes virtuais de aprendizagem (AVA), ferramentas colaborativas, vídeos, smartphones, celulares, tablets, notebooks, aplicativos em que professores e alunos podem se conectar, comunicar e trocar ideias, independente de distância. Essa mediação vem ao encontro da necessidade dos atores do processo pedagógico, dentre eles o professor, de buscar novas metodologias de ensino na tentativa de potencializar o conhecimento produzido dentro da escola.

Behrens (2009, p. 180) aponta para a importância da superação do paradigma tradicional docente presente no espaço escolar, em que o professor

concentra-se em mecanismos que levem a reproduzir o conhecimento historicamente acumulado e repassar informações como verdades absolutas e inquestionáveis. Focalizado na reprodução do conhecimento, busca atividades como a repetição e a memorização dos conteúdos pelos alunos (Behrens, 2009, p. 180).

Na busca pela superação desse paradigma tradicional, estudos de Behrens (1999), Morin (2000), Capra (1996), Moraes (1997) e Santos (1999) propõem pensar a escola e suas relações com base na perspectiva do paradigma emergente. Essa outra visão do processo pedagógico faz um deslocamento da centralidade na reprodução de informações, trazendo os atores do processo para a produção de conhecimentos fundado na participação ativa dos sujeitos (alunos e professores) nos processos de ensino e de aprendizagem. Sendo assim, torna-se “inquestionável uma nova forma de organização do trabalho das instituições escolares e dos processos de formação inicial e continuada, bem como um novo posicionamento de todos os que trabalham na educação” (Veiga, 2009, p. 15).

Nesse sentido, é necessário participar, problematizar e agir pedagogicamente de forma coletiva dentro do espaço escolar. Nóvoa (2009, p. 4) aponta que os “professores reaparecem, neste início do século XXI, como insubstituíveis não só na promoção da aprendizagem, mas [...] no desenvolvimento de métodos apropriados de utilização das novas tecnologias”.

Para Coscarelli (2007, p. 91 apud Reis, Nantes e Maciel, 2018, p. 251), “a tecnologia não pode estar dissociada da educação: ela é parte integrante do processo educativo e não deve ser tratada isoladamente”. Nessa esteira, as autoras levantam a existência de uma diversidade de ferramentas tecnológicas e que novos paradigmas passam a fazer parte da educação.

Para a realização de uma boa atividade pedagógica mediada pelas tecnologias da informação e comunicação, é necessário um “projeto de educação tecnológica” com respaldo teórico.  No entanto, quando se trata de literaturas que embasam a educação tecnológica, observa-se a necessidade de maior intersecção entre a teoria e a prática do professor (Reis; Nantes; Maciel, 2018, p. 252).

Atrelado a esse contexto, é urgente que o professor e seu processo de formação aponte para o entendimento sobre letramentos e multiletramentos. O debate sobre isso se justifica para a prática docente; é cada vez mais latente a inserção, na escola, das “recentes tecnologias da comunicação eletrônica – o computador, a rede (web), a internet” (Soares, 2002, p. 192). Ademais, acrescentem-se a isso as diversificadas e múltiplas linguagens, culturas e mídias que requerem de nós uma multiplicidade de letramentos, uma vez que estamos inseridos nessa diversidade.
Em estudos recentes, Soares (2014) pontua que, enquanto a alfabetização está no âmbito individual, sendo o domínio de um código linguístico e das respectivas habilidades necessárias para a escrita e leitura, capacitando os alunos para esses atos, o letramento centra-se no desenvolvimento das capacidades de o aluno interagir, na oralidade ou na escrita, dentro das diversificadas práticas sociais, sendo estas inseridas nas mais variadas esferas de atividade humana. Nos estudos de Street (1984, p. 1), vemos que se trata de “um termo síntese para resumir as práticas sociais e concepções de leitura e escrita”. Assim, os termos estão em conexão, o que não quer dizer que um preceda ao outro.

O letramento digital está chegando com maior eloquência à esfera escolar, por meio do revezamento de vozes presente na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017), cujo documento, prescritivo e direcionador dos novos rumos educacionais, solicita que a escola e, por conseguinte, o professor, contemple as novas tecnologias, bem como o surgimento de outras práticas sociais.

Em estudos anteriores, Kenski (2003) já destacava os pontos favoráveis do uso dos letramentos digitais, com destaque para o uso dos recursos tecnológicos como ferramentas para o ensino, solicitando que o professor trabalhe com “novas habilidades de aprendizagem, atitudes e valores pessoais e sociais” (p. 52), o que propicia ao professor e ao aluno constatar que o uso das novas tecnologias digitais impulsiona o desenvolvimento de novas capacidades, priorizando espaços coletivos:

A interação proporcionada por softwares especiais e pela internet, por exemplo, permite a articulação das redes pessoais de conhecimentos com objetos técnicos, instituições, pessoas e múltiplas realidades para a construção de espaços de inteligência pessoal e coletiva (Kenski, 2003, p. 51).

Uma possível resposta aos inúmeros questionamentos pode ser direcionada à formação do professor, sendo necessário, nesse contexto multifacetado, “um total repensar dos comportamentos e práticas pedagógicas, que não devem se limitar apenas à inserção dos dispositivos móveis ao ensino”. Assim, entende-se ser necessárias ações que promovam “mudanças no processo de ensino, nos projetos pedagógicos e na formação dos professores universitários”; os autores justificam tal asserção tendo em vista que a formação nas graduações “não caminha na mesma velocidade que os avanços tecnológicos” (Martins et al., 2018, p. 512).

Pensando na prática docente sustentada pelo letramento digital, é essencial que o professor tenha o seu planejamento pedagógico (plano de aula, conteúdo, avaliação, didática) balizado pelas TDIC. Essa articulação possibilita ao aluno maior autonomia no processo de aprendizagem, como a fácil e rápida visualização, pelos alunos, dos conteúdos propostos pelo professor, levando-os a pensar e relembrar os conteúdos estudados, sendo de fácil utilização e despertando o interesse do aluno na resolução dos problemas propostos, desburocratizando o processo formativo e auxiliando o aluno na tomada de decisões (Tavares, 2018).

É importante salientar que essa ruptura de paradigma é um desafio, visto que não se trata de usar a tecnologia como pretexto, e sim a necessidade de ter finalidade, ou seja, ser contextualizada dentro do processo educativo. Assim, a ação docente deve ser clara, tendo objetivo vinculado à aprendizagem autônoma e crítica, pois as TDIC não podem ser utilizadas como suporte para realizar metodologias tradicionais de ensino somente com outra roupagem.

Nesse sentido, Moran, Masetto e Behrens (2000, p. 144) fazem um alerta:

a tecnologia possui um valor relativo: ela somente terá importância se for adequada para facilitar o alcance dos objetivos e se for eficiente para tanto. As técnicas não se justificarão por si mesmas, mas pelos objetivos que se pretende que elas alcancem, que, no caso, serão de aprendizagem.

Pelo exposto, vemos que cada professor deve procurar a forma que mais o ajude na maneira de trabalhar com os alunos, que mais facilite sua comunicação e que dê melhores resultados para o aprendizado. Contudo, ensinar com as novas tecnologias só trará benefícios se estivermos dispostos a enfrentar os novos paradigmas convencionais do ensino, em que professor deixa de ser transmissor de conhecimentos e é mediador, motivador, orientador.

Não é somente uma visão por parte do docente e do espaço escolar de que é necessário ou importante o uso das tecnologias da informação e da comunicação em sala de aula. É essencial que o professor, ao selecionar os conteúdos e temáticas a serem trabalhados, tenha plena consciência dos limites e das possibilidades existentes quando resolve articular o seu plano de trabalho docente com as estratégias e ferramentas utilizadas. Nesse sentido, concordamos com Braga (2010) quando aponta que o

uso de tecnologias digitais (...) pode ser um primeiro passo para educadores progressistas conceberem formas de explorar as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias de modo a ampliar o escopo da participação social de todos os grupos e, em especial, a participação social das comunidades economicamente desfavorecidas. Essas podem usar tais recursos como uma forma de contornar barreiras historicamente sedimentadas e que impedem o acesso a bens culturais.

Não há dúvida de que estamos diante da necessidade de repensar a prática pedagógica, junto com as necessidades dos professores. Dentre algumas questões a serem pensadas nesse contexto, deparamo-nos com a inserção das tecnologias na escola, porém também enfrentamos o desafio de compreender como se dá a articulação dos recursos tecnológicos de forma crítica e reflexiva, inserida em um processo de ensino e de aprendizagem, no sentido de superar abordagens meramente tradicionais. Em outras palavras: o papel da escola é, justamente, possibilitar que o aluno domine os múltiplos letramentos que o capacitem a viver, conviver, interagir, ensinar e aprender na sociedade na qual ele está inserido.

Referências

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Publicado em 22 de janeiro de 2019

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