A pedagogia engajada e a práxis da transformação do mundo – um ensaio sobre a educação libertadora

Thalles Azevedo Ladeira

Mestrando em Ensino pelo Programa de Pós Graduação em Ensino (PPGEN/UFF)

Fernanda Fochi Nogueira Insfrán

Doutora em Psicologia (PPGP/UFRJ), professora adjunta (UFF)

Recentemente, fizemos a leitura do livro Ensinando a transgredir, de Bell Hooks, e a obra trouxe uma série de provocações acerca da educação e seu sentido transformador. Pensar a educação é pensar em um movimento de ruptura, de desconstrução, de um fazer-se e desfazer-se contínuo.

Assim como Bell Hooks, acreditamos e militamos por uma educação que seja ponte, que acolha as diferenças, que se posicione ao lado das minorias, que faça sentido para as pessoas, que assuma um caráter transformador e libertador.

E pensar essa educação como prática da liberdade é se apropriar de uma pedagogia engajada (Hooks, 2013), que se movimente no sentido de promover ações de liberdade, de desconstrução do velho, do cartesiano, da lógica binária, do certo ou errado, dos estigmas, dos rótulos, do “normal” e do “anormal”; enfim, uma pedagogia engajada é uma pedagogia da transformação, de abertura para o novo, para o vir a ser constante, para aquilo que não é, mas pode ser.

Hooks (2013, p. 26) traz em sua obra a necessidade de desafiar o sistema da “educação bancária”, por intermédio de engajamentos críticos. Pensamos que só será possível romper com a lógica bancária da educação e devolver o seu sentido catártico quando primeiro produzirmos uma revolução no pensamento.

Nesse sentido, é fundamental a qualquer educador se olhar no espelho e fazer a pergunta: a quem interessa a minha prática educativa? Ela serve para libertar ou para oprimir? Ela colabora com a manutenção das desigualdades sociais e privilégios ou ela se caracteriza como um tensionamento desse sistema?

Tais perguntas, que são fundamentais a qualquer um que esteja engajado no movimento da educação, vêm sendo provocadas desde Paulo Freire (1987), ao deixar claro que todo ato educativo é em si um ato político. Para Paulo Freire, uma pedagogia engajada é uma pedagogia “problematizadora”, que propõe não apenas uma visão crítica da realidade, mas um engajamento que se articule para a transformação dela.

E transformar a realidade é preciso. É nesse sentido que reivindicamos aqui a categoria de práxis, que, segundo a própria Hooks (2013), representa o “agir e refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo” (Hooks, 2013, p. 26).

Consideramos ser de extrema importância essa categoria de práxis, pois acreditamos que a educação não deve se limitar a pensar o mundo; urge a necessidade de transformá-lo, de articular os conhecimentos produzidos pela humanidade e dar um sentido a eles para que caminhem no propósito de produzir um mundo melhor, com menos injustiças e desigualdades. É por isso que a educação é tão importante nesse processo, pois ela é capaz de desvelar o pensamento, de promover uma revolução de valores, de pensamentos críticos, de nos fazer assumir uma nova postura diante da vida e da realidade objetivada.

Nesse sentido, apresentamos a ideia de práxis, trazida por Silva (2017, p. 69), ao apontar ser ela uma ação que consiste em uma série de movimentos advindos de um ser atuante que possa transformar a materialidade ao seu redor e a sua própria. Logo, práxis é transformação, é uma postura diante da vida que nos tira do lugar de conforto e nos faz assumir a posição de protagonistas da História, de agentes de transformação da humanidade, convidando-nos a assumir a responsabilidade pela transformação da realidade, caracterizada pelas desigualdades sociais resultado de uma sociedade onde os interesses de classe são antagônicos e latentes.

Por isso, a pedagogia engajada a que Hooks nos convida em seu livro é em si a pedagogia da práxis, que por sua vez é libertadora, nasce do concreto, da realidade objetiva das pessoas, de suas dificuldades cotidianas. Ela é importante, pois é em todo tempo um convite à transformação, um convite à cura, um convite à reinvenção da realidade e do olhar.

A própria autora revela que encontrou no conhecimento crítico um lugar de cura para suas questões individuais.

Essa experiência “vivida” de pensamento crítico, de reflexão e análise se tornou um lugar onde eu trabalhava para explicar a mágoa e fazê-la ir embora. Fundamentalmente essa experiência me ensinou que a teoria pode ser um lugar de cura (Hooks, 2013, p. 85).

Em outro momento, ela chega a afirmar que esse pensamento arrebatador e engajado que ela propaga vem sendo capaz de tirar as pessoas de um lugar adoecedor e de conformismo e de lhes oferecer uma nova perspectiva de pensamento, de cura, de liberdade:

Segurava as minhas mãos e repetia: “Tinha uma dor tão grande dentro de mim”. Agradeceu porque nosso encontro, nossa teorização (...) havia aliviado a sua dor. Testemunhou que sentiu a dor ir embora. Sentiu uma cura acontecendo dentro dela (Hooks, 2013, p. 102).

Acreditamos, então, que a educação, para ser engajada e emancipadora, deve caminhar na perspectiva de fazer sentido para as pessoas, de dialogar com o cotidiano delas, de expor as suas feridas e de curá-las, de desnudar seus sensos comuns, de atravessá-las e potencializá-las para a vida, para a luta.

No entanto, para isso, é necessário romper com velhas concepções de educação que ainda estão tão presentes nas escolas. É necessário nos posicionar frontalmente contra um modelo de educação que limita a visão de mundo, as possibilidades de vir a ser e de existir, que diminui a consciência crítica, que naturaliza os fenômenos sociais, que torna reduzidas as formas de aprender.

Não obstante, é fundamental confrontar, em nossas práticas como educadores, qualquer forma de cerceamento do corpo e da mente do outro, pois consideramos que o conhecimento é liberdade e não prisão. É ponte e não muro. Nesse sentido, Foucault (1987) é muito oportuno ao apontar em seu livro Vigiar e Punir as formas de controle que se dão nos espaços escolares sobre os indivíduos ali envolvidos.

É possível evidenciar, ao longo de todo o livro, como os espaços escolares, de forma histórica, mas ainda tão presente nos dias de hoje, vêm exercendo um controle manipulador sobre os seres ali presentes, por meio de uma educação tradicional, que limita o interesse pelo conhecimento. Nesse sentido, o professor vira o algoz dos alunos, a apropriação do conhecimento se torna um flagelo, os corpos se tornam dóceis (Foucault, 1987), as salas de aula se transformam em panópticos do controle de quem detém o poder.

Segundo essa perspectiva do controle, Foucault (1987, p. 164) considera que na escola

forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.

Além disso, Foucault (1987) usa a expressão “microfísica do poder” para se referir a esse poder exercido no cotidiano, de forma controladora, punitiva e opressora sobre os outros. Vale a pena ler o livro.

Sobre a questão aqui apontada, compreendemos que um dos grandes problemas envolvendo a educação tradicional é o fato de ela ter sido naturalizada por muitos. Tal perspectiva se entranhou nos espaços escolares, escamoteando seus reais interesses políticos e ideológicos, a ponto de ser hoje uma tarefa árdua, mas da ordem do dia, o seu rompimento. Nesse sentido, precisamos tirar a legitimidade de toda educação que se propõe a oprimir, controlar, cercear e tolher a emancipação humana.

Por isso consideramos mais do que uma tarefa pedagógica, também política, romper com os movimentos maquínicos presentes nas escolas, criando linhas de fuga (Deleuze; Guattari, 1995, p. 46) que sejam capazes de viabilizar uma educação de fato transformadora, que aumentem a potência de agir dos alunos (Spinoza, 2009, p. 99) e lhes possibilitem uma nova postura diante do mundo, que caminhem no sentido de emancipação da genericidade humana.

No entanto, o engajamento pedagógico defendido ao longo deste ensaio só é possível quando repensarmos o sentido da educação, tal como este trabalho se propõe a fazer. E repensar o sentido da educação é ter que necessariamente se posicionar em favor de uma práxis social e política produzida no Norte ou no Sul. Boaventura Sousa Santos usa essa metáfora para destacar as duas realidades de mundo diferentes que existem na sociedade e que atravessam a educação de modo intenso, “entendendo o Sul como uma metáfora do sofrimento humano produzido pelo capitalismo” (Santos, 2008, p. 17). A educação que se faz no Sul é a da resistência, da oposição ao sistema instituído, da lógica contra-hegemônica, da transformação e da luta, enquanto no Norte se compreende que a educação cuja perspectiva é a instituída e legitimada pelo sistema é a educação colonizadora, cerceadora dos corpos e das mentes, é a educação antiemancipatória.

Segundo Santos, há necessidade de se desfamiliarizar com o Norte imperial e instituído e aprender com o Sul (Santos, 2008, p. 26). Como afirmamos ao longo de todo este ensaio, há necessidade de transformação. No entanto, tal transformação só é possível a muitas mãos. Em coletividade e rumo a uma emancipação social.

Logo, precisamos nos comprometer com a luta anticapitalista e anticolonial (Santos, 2008, p. 26); precisamos romper com a naturalização da educação instituída e nos apropriar de uma pedagogia que seja verdadeiramente libertadora e de uma educação que, conforme aponta Freire (1987), deve ser constantemente refeita na práxis.

Além disso, conforme destaca Morin (2003, p. 39), precisamos nos apropriar de uma consciência humanística, isto é, uma consciência de pertencimento a espécie humana. Nas palavras dele, investir em uma “tomada de consciência da coletividade” (Morin, 2003, p.46). Isso deve nos tornar mais sensíveis às demandas comuns.

Conclusão

Finalizamos essa escrita tendo a clareza de que essa discussão é muito maior do que os limites impostos aqui, mas tendo a certeza de que nossa escrita caminha no sentido de uma contribuição para pensarmos juntos a educação, e mais do que isso; é também um convite à práxis, à tomada de decisão e de responsabilidade pela construção de uma educação emancipadora, intrínseca a um processo de emancipação social.

Portanto, é preciso nos engajar. Conforme aponta Santos (2008, p. 27), não há prioridade entre lutas econômicas, sociais, políticas, culturais e/ou educacionais. O que há é uma estrutura de poder hegemônico que precisa ser combatido. Removido. Superado. É preciso ter disposição para a mudança. E “milhares de professores e estudantes ainda não se entregaram. Há luta no front” (Evangelista; Shiroma; Garcia; Michels, 2017, p. 15).

Referências

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

EVANGELISTA, O.; SHIROMA, E. O.; GARCIA, R. M. C.; MICHELS, M. H. A tragédia docente e suas faces. In: EVANGELISTA, Olinda; SEKI, Allan Kenji (Orgs.). Formação de professores no Brasil: leituras a contrapelo, v. 1. Araraquara: Junqueira e Marin, 2017, p. 17-56.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2015.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e de outro. Revista de Ciências Sociais e Humanas, Coimbra, 2008.

SILVA, R. A. O conceito de práxis em Marx. Dissertação (mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2017.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

Publicado em 24 de setembro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

LADEIRA, Thalles Azevedo; INSFRÁN, Fernanda Fochi Nogueira. A pedagogia engajada e a práxis da transformação do mundo – um ensaio sobre a educação libertadora. Revista Educação Pública, v. 19, nº 22, 24 de setembro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/23/a-pedagogia-engajada-e-a-praxis-da-transformacao-do-mundo-r-um-ensaio-sobre-a-educacao-libertadora

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