Maconha: que planta é essa? Uma breve história do consumo e da disseminação no Brasil
Francisco José Figueiredo Coelho
Doutorando em Ensino em Biociências e Saúde (IOC/Fiocruz), mestre em Tecnologia Educacional para Saúde (Nutes/UFRJ), especialista em Educação de Jovens e Adultos para a Diversidade e Inclusão Social (NUEC/UFF) e docente da Educação Básica (Seeduc/RJ)
Maria de Lourdes da Silva
Professora adjunta (Departamento de Educação/UERJ), membro do GT Educação e Drogas e do Grupo Interdisciplinar de Educação, Eletroquímica, Saúde, Ambiente e Arte (Gieesaa)
Considerando que o ser humano está sempre em construção e apresenta inúmeras necessidades individuais e coletivas, não se pode descartar as diferentes formas de uso e abuso das drogas, que variam de cultura para cultura. Logo, sugerimos que os professores não vejam as drogas de maneira simplista, categorizando-as como compostos de funções boas ou más. Isso depende de diferentes fatores, como o tipo de substância, a concentração utilizada e até mesmo as condições de consumo.
Embora existam muitas substâncias que são consumidas de forma abusiva, historicamente muitas delas foram utilizadas com finalidade médica, econômica, ritualística etc. Obviamente, se analisarmos a questão com viés exclusivamente religioso ou partindo da ótica da abstenção para a saúde, deixaremos de enxergar a própria história das Ciências.
Em cada civilização, em cada nação, a droga psicoativa (aquela que atua no sistema nervoso central) envolve questões complexas e, por vezes, paradoxais. São questões éticas, morais, de socialização e até espirituais que se congregam para definir contextos de uso.
Diferentes produtos são utilizados pelos adolescentes e jovens brasileiros para relaxar e descontrair, com caráter recreativo. A maconha é apenas uma delas. E seu uso no país não deve ser visto como atrelado apenas a rebeldias, afrontamentos e resistências da juventude. Seu uso é anterior à chegada dos africanos no Brasil, pois os marinheiros portugueses já conheciam a planta e seus benefícios, utilizando-a para diversos fins (França, 2018), embora tenha sido entre os escravos e as populações menos favorecidas do país, sobretudo no interior e no Nordeste, que o uso tenha se disseminado com fins terapêuticos e recreativos.
Após ter sido tornada uma substância ilícita no país no início do século passado, seu uso passou às camadas jovens das classes mais abastadas no contexto da contracultura a partir dos anos 1960. Como aponta a Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (Pense) realizada em 2016 (Brasil, 2016), hoje ela é consumida por jovens de todas as classes sociais, nas áreas urbanas e rurais com finalidades diversas. Conhecer esses contextos de uso entre os jovens é fundamental para compreender as motivações do uso, os arranjos simbólicos que sedimentam sentidos e alicerçam identidades sociais e individuais.
Saber um pouco sobre a história e a disseminação desses produtos pode propiciar bons debates com os estudantes, estimulando-os a pensar nos aspectos culturais que influenciam suas escolhas e condutas para além do exercício da vontade. Afinal, entendemos que o jovem gosta de experimentar coisas novas e desafiar o estabelecido.
O caso da chegada da planta ao Brasil ilustra diferentes contextos e formas de uso. A planta não é nativa do nosso continente; é oriunda da Ásia – tanto da Índia quanto da China (França, 2018). Ela já circulava há muito tempo pelos continentes. Há, inclusive, registros egípcios que descrevem o uso medicinal da planta.
Figura 1: O papiro Ebers, do Antigo Egito, com prescrição para o uso de maconha em casos de inflamação
Fonte: https://tinyurl.com/y3gf4rks.
Ao chegar aos portos brasileiros, disseminou-se rapidamente entre os escravos. Antes de ser utilizada como entorpecente, o cânhamo (fibras da planta) já era usado para produzir as velas e cordas das embarcações. França (2018) registra que, em 1770, o vice-rei Marquês do Lavradio ordenou a plantação da Cannabis para tal fim. Suas folhas e flores eram usadas na medicina popular para combater inapetência, fraqueza, irritação, insônia, ansiedade.
A confecção de papéis, já bem desenvolvida na China, teve relativo sucesso devido ao fato de o cânhamo ser um papel mais resistente e barato, se comparado com outras plantas e com a produção de tecido.
No Brasil, em 1783, chegou-se a criar a Real Feitoria de Linho Cânhamo, a mais bem planejada tentativa de introduzir a cultura da planta em larga escala no período colonial (França, 2018). Popularizada entre os intelectuais franceses e médicos ingleses do Exército Imperial na Índia, o cânhamo passou a ser considerado em nosso meio um excelente medicamento para muitos males.
É curioso ressaltar que os chineses foram pioneiros em receitas à base de Cannabis, que datam de períodos anteriores a 2.000 a.C. França (2018) destaca que os registros escritos surgem apenas no século I antes de Cristo; ela era recomendada para combater diversos males: de dores reumáticas a desarranjos e problemas no sistema reprodutor feminino. Tônicos a base de vinho e cânhamo eram registrados por médicos em cirurgias como produto anestésico. Convém lembrar que apenas na década de 1960 as pesquisas médico-científicas ganharam visibilidade, sobretudo com a descoberta de canabinoides no sistema nervoso central, isto é, receptores preparados para reconhecer as substâncias psicoativas do cânhamo (França, 2018).
Figura 2: Fluido engarrafado de extrato de Cannabis indica utilizada no início do século XX
Fonte: https://tinyurl.com/yxqn5g83.
Autores como Hari (2018) e França (2018) lembram que a demonização no Brasil foi iniciada na década de 1920, seguindo as manifestações proibicionistas que se propagavam nos Estados Unidos. Nessa ocasião, sinaliza Hari (2018), houve inclusive estigmatização do jazz como música que estimularia o consumo da maconha, o que culminou com a perseguição a diferentes músicos e artistas, em sua maioria negros da periferia.
Todo esse contexto favoreceu a que, na II Conferência Internacional do Ópio (Genebra, 1924), o delegado brasileiro Dr. Pernambuco afirmasse para as delegações de 45 outros países que a maconha seria uma droga mais perigosa que o ópio. Apesar de tentativas anteriores no século XIX e princípio do século XX, a perseguição policial aos usuários de maconha se fez constante e enérgica somente a partir da década de 1930, certamente como resultante da decisão da II Conferência, o que significava que o Brasil reafirmava seu alinhamento às orientações internacionais sobre drogas sob o comando dos Estados Unidos, mas sobretudo porque a Cannabis somente foi incluída entre as substâncias proibidas na brasileira de 1932.
Que tal conversar sobre alguns desses assuntos com seus alunos? A história e a Ciência andam de mãos dadas. Esclarecer é o primeiro passo para atuar na minimização dos danos do uso abusivo, seja da maconha ou de outro produto.
Referências
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2015. Rio de Janeiro: IBGE, 2016.
FRANÇA, J. M. C. História da maconha no Brasil. São Paulo: Três Estrelas, 2018.
HARI, J. Na fissura: uma história do fracasso no combate às drogas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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Publicado em 01 de outubro de 2019
Como citar este artigo (ABNT)
COELHO, Francisco José Figueiredo; SILVA, Maria de Lourdes da. Maconha: que planta é essa? Uma breve história do consumo e da disseminação no Brasil. Revista Educação Pública, v. 19, nº 23, 1 de outubro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/23/maconha-que-planta-e-essa-uma-breve-historia-do-consumo-e-da-disseminacao-no-brasil
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