Impactos da biotecnologia - clonagem animal
Daniel Fábio Salvador
Professor associado da Fundação Cecierj
A biotecnologia tem caráter multidisciplinar, englobando conceitos relacionados às Ciências Biológicas e da Saúde, Engenharias e Química, dentre outras, e atua em três áreas principais: saúde humana, meio ambiente e agricultura. Um marco para a consolidação das biotecnologias foram os primeiros experimentos associados à clonagem animal.
Clonagem é uma palavra que vem do grego (κλων, lê-se klón) e significa broto de planta, que, quando arrancado, pode desenvolver uma nova planta. Ela é o processo de produção de indivíduos idênticos àquele original, acontecendo naturalmente ou através da manipulação humana. Isso significa dizer que a reprodução assexuada, presente na maioria dos organismos unicelulares e em muitos dos pluricelulares, se dá por clonagem. Apesar da clonagem da ovelha Dolly a partir de células adultas de outro animal ter sido um marco que inaugurou uma nova era da biotecnologia, atraindo grande interesse da população, é importante saber que clonagem é um processo que já acontece na natureza há milhões de anos.
Até mesmo na espécie humana podemos dizer que há clonagem. Os gêmeos idênticos (univitelinos) são clones, pois possuem o mesmo conjunto de genes. Mas o público em geral normalmente associa a clonagem a um processo artificial, como o que foi usado para fazer a Dolly, o primeiro mamífero clonado com sucesso a partir de uma célula adulta. Mesmo considerando dessa forma, a clonagem não é novidade, já com mais de 50 anos de estudos e pesquisas. Então vamos entender um pouco melhor como essa biotecnologia foi desenvolvida nas últimas décadas e como está sendo utilizada atualmente.
Como acontece a clonagem?
Artificialmente a clonagem pode ser produzida por bissecção ou bipartição de embriões nos estádios de mórula compacta e blastocisto ou ainda pela desagregação dos blastômeros nos primeiros estádios de desenvolvimento embrionário (Palhano, 2008). Porém essa técnica, apesar de eficiente, exige que haja uma fecundação anterior, que pode ser in vivo ou in vitro, o que muitas vezes não será possível caso não se possuam os gametas viáveis dos animais que se deseja clonar, além de produzir número limitado de clones. O vislumbre da produção de um número ilimitado de cópias (clones) em animais só foi possível com o desenvolvimento dos métodos de transplante nuclear, que vamos explicar a seguir.
O método de transplante nuclear (TN) é a transferência do núcleo de uma célula doadora (que pode ser embrionária, fetal ou adulta) que é realocada para uma outra célula alvo que deve o seu núcleo removido (enucleação). Essa técnica é utilizada por embriologistas do mundo todo para manipular o desenvolvimento dos organismos vivos; mais tarde ela veio a ser chamada de clonagem ou transferência nuclear de células somáticas.
Os primeiros trabalhos e ideias sobre TN datam do início do século passado; pesquisadores como Hans Spemann (por volta de 1930) realizaram a primeira transferência de núcleo de uma célula embrionária tardia (do final do estágio de mórula) para outra em estágio inicial. O resultado desse experimento provou a hipótese de que a informação genética não diminuiu em uma célula desenvolvida, pois o núcleo de uma célula mais velha foi capaz de promover o desenvolvimento de um organismo completo. Em meados do século XX, as técnicas de transferência nuclear foram aplicadas em um vertebrado (sapo adulto), considerado o primeiro experimento com transferência nuclear bem-sucedida com células somáticas adultas, porém sem conseguir que os embriões chegassem a nascer e sobreviver (Briggs; King, 1952). Somáticas são as células que se diferenciaram e constituem os tecidos do corpo. Outro tipo de célula é a célula embrionária, que ainda não sofreu processo de diferenciação, sendo por isso considerada totipotente, pois pode se tornar qualquer tipo celular do organismo. Por esse motivo, as clonagens a partir de células embrionárias são um procedimento mais usual e com melhores índices de sucesso nos experimentos de clonagem animal.
A técnica de transplante nuclear de células somáticas foi utilizada e aperfeiçoada mais tarde por John Gurdon, que conseguiu sucesso ao fazer clones adultos e com maturidade sexual (Gurdon et al., 1958; Gurdon, 2009). O conhecimento gerado nesses experimentos eventualmente levou à realização do primeiro clone de mamíferos, a ovelha Dolly, pela equipe de pesquisa do Dr. Ian Wilmut em 1996 (Cohmer, 2011). Esse mesmo grupo clonou uma outra ovelha (Polly), que era um animal transgênico com um gene humano que a tornava capaz de produzir uma proteína, ausente em hemofílicos, que funciona como fator de coagulação. Ou seja, além da clonagem, a equipe de pesquisas do Dr. Wilmut inaugurou uma nova fase de aplicação das biotecnologias, a produção de animais transgênicos, também em meio a muita controvérsia.
Mesmo que diversos cientistas tenham continuado a criar clones de diversas espécies e aperfeiçoar as técnicas propostas para clonagem da ovelha Dolly, o trabalho da equipe do Dr. Wilmut com a ovelha Dolly foi um marco científico de grande repercussão pública, atraindo a mídia e a sociedade para uma grande discussão ética sobre as barreiras da ciência. Então vamos detalhar um pouco mais como foram os bastidores dessa descoberta científica que impactou os rumos da biotecnologia como a conhecemos hoje.
A importância da ovelha Dolly
O processo para obtenção da ovelha Dolly como primeiro clone artificial de mamíferos a partir do uso de células somáticas não foi um caminho curto. Antes do seu nascimento foram realizadas 277 tentativas – todas fracassadas. Em cerca de 90% delas, não foi alcançado nem mesmo o estágio de blastocisto para o desenvolvimento embrionário. Até hoje, os estudos de clonagem com outros mamíferos têm demonstrado baixa eficiência de sucesso após fecundação; mesmo para os clones que chegam a conseguir gerar uma gestação viável, ainda é grande o número de abortos e fetos mal formados (Pereira; Freitas, 2009; Trecenti; Zappa, 2013).
Uma animação feita pela Fundação Cecierj sobre clonagem animal é um ótimo recurso didático para explicar o tema, incluindo os mecanismos biológicos envolvidos no processo.
De forma simplificada, podemos descrever o processo de clonagem realizado nos experimentos da equipe do Dr. Wilmut assim: para clonagem da ovelha Dolly foram utilizadas células das glândulas mamárias de uma ovelha da raça Finn Dorset de seis anos de idade. Essas células foram mantidas em meio de cultura, receberam nutrientes e se multiplicaram. Apesar de carregar as informações genéticas da “ovelha mãe”, essas células não apresentavam características que permitissem ou ativassem seus genes para começar a dar-lhes instruções. Somente uma célula apresenta essa condição: o óvulo não fecundado. Colocando as informações genéticas contidas nas células de glândulas mamárias em óvulos, poder-se-ia obter uma nova ovelha.
Os pesquisadores, então, coletaram óvulos de ovelhas da raça Scottish Blackface a partir da estimulação por injeção de hormônio liberador da gonadotrofina. Uma vez coletados, os núcleos dos óvulos foram retirados e substituídos por um núcleo da “ovelha mãe”, ou seja, de células das glândulas mamárias (Wilmut et al., 1997).
Para que os óvulos começassem a se desenvolver, eles receberam impulsos elétricos; esses impulsos foram o estímulo necessário para que as células modificadas entrassem no processo de clivagem. Clivagem é o processo no qual o zigoto se divide por mitose e inicia o desenvolvimento embrionário, originando um embrião multicelular. Posteriormente, os embriões em desenvolvimento foram colocados, por seis dias, nos ovidutos de outra ovelha. Após esse período, os que permaneceram vivos e apresentavam desenvolvimento satisfatório eram transferidos para o útero de uma ovelha Scottish Blackface (Wilmut et al., 1997).
Após a publicação dos resultados da equipe que criou a ovelha Dolly (Wilmut et al., 1997), muitas outras pesquisas foram realizadas na direção da manipulação genética de animais em diversas espécies. Porém é importante citar que ainda existem muitas questões a se resolver em relação às pesquisas sobre clonagem animal por transferência nuclear. Um fato importante foi que, em 1999, Dolly começou a apresentar problemas de saúde relacionados ao envelhecimento precoce. Como as ovelhas vivem em média doze anos, sua morte com sinais de envelhecimento aos seis anos foi considerada um indício de que as técnicas de clonagem não eram tão seguras como se imaginava.
A explicação foi que alguns clones de mamíferos, incluindo Dolly, têm encurtamento dos seus telômeros em uma idade mais precoce do que outros. De forma simplificada, os telômeros são pedaços do DNA que protegem a parte final dos cromossomos. Eles vão diminuindo dentro das células à medida que se dividem, sendo, portanto, considerados uma forma de mensurar a idade das células. É importante citar que não são todos os clones que apresentam esse problema. Entretanto, uma grande diversidade de efeitos das técnicas de reprodução assistida e de clonagem no desenvolvimento embrionário em várias espécies são relatados na literatura científica (Sakai et al., 2005). Isso reacendeu ainda mais as críticas da opinião publica sobre os aspectos éticos da clonagem animal e principalmente de humanos.
Em resumo, podemos dizer que o transplante nuclear para realização da clonagem evoluiu desde a publicação dos resultados com a ovelha Dolly para um processo atualmente viável e amplamente utilizado por cientistas nas últimas três décadas. O grande número de pesquisas e relatos na literatura atual demonstra que o núcleo de células somáticas diferenciadas de mamíferos pode ser reprogramado, apesar de nem sempre de forma completa, quando transferido a um ovócito enucleado.
Todavia, a clonagem de ovelha Dolly, dentre outros resultados com outras espécies, ainda preocupa muitos a respeito da aplicação das técnicas de clonagem no TN em humanos e quais são os limites morais dos avanços modernos da ciência. Existem grandes possibilidades de aplicação prática e uso comercial da biotecnologia de aplicação de técnicas de clonagem por transferência nuclear para animais de produção, porém ainda limitadas pela baixa eficácia na produção de clones saudáveis na idade adulta; esse é um foco atual das pesquisas na área (Pereira; Freitas, 2009).
Em relação à aplicação em seres humanos, o transplante nuclear também estimulou a discussão ética ainda inacabada sobre o valor da vida humana em todas as etapas do seu desenvolvimento. Muitos cientistas abandonaram os métodos envolvidos no transplante nuclear para trabalhar com experimentos envolvendo células-tronco pluripotentes induzidas (Cohmer, 2011).
Aplicação e uso das técnicas de clonagem animal no Brasil
No Brasil, as pesquisas com uso de clonagem animal tornaram-se famosas no início dos anos 2000, quando a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) se tornou uma das pioneiras nas pesquisas sobre clonagem animal na espécie bovina, com o intuito de aplicação comercial futura na pecuária. A Embrapa foi responsável pelo primeiro bovino clonado na América Latina, a bezerra Vitória, nascida em 2001. Ela foi clonada pela técnica de transferência nuclear a partir de células embrionárias e sempre mostrou bom desempenho em relação a crescimento e desenvolvimento, de acordo com os padrões de sua raça, inclusive do ponto de vista reprodutivo, gerando diversas crias.
Em 2002 foi realizado na Universidade de São Paulo (USP) o primeiro clone bovino a partir de célula diferenciada jovem, retirada do fibroblasto fetal bovino, que apresentou desenvolvimento normal. O primeiro clone bovino brasileiro a partir de célula diferenciada adulta foi chamado de Penta, nascido em 2002 também no Estado de São Paulo. O domínio da tecnologia levou a outros clones bovinos bem-sucedidos, como o animal Lenda, da raça holandesa, clonado a partir de células da granulosa (que circundam o óvulo) de uma fêmea bovina de elevado valor genético, morta por acidente. Em 2005, a Embrapa produziu o clone de uma bezerra da raça Junqueira, em estado crítico de extinção no Brasil, com menos de 100 animais em todo o país. A Embrapa também já conseguiu a fazer a clonagem por transferência nuclear de um animal clone, que foi o primeiro clone do clone da América Latina.
Em 2013 a bezerra Brasília foi outro marco, pois foi clonada pela técnica de transferência nuclear a partir a partir de células de tecido adiposo (gorduras); foi o primeiro nascimento de um animal saudável utilizando esse tipo celular como fonte de células-tronco (Lobato, 2015). Atualmente as pesquisas estão focadas em melhorar a produtividade da técnica, que ainda é baixa para viabilização de animais adultos saudáveis. Além das pesquisas e das produções de clones de bovinos feitas pela Embrapa, já existem empresas realizando a produção de clones para fins comerciais no Brasil (Rodrigues; Rodrigues, 2009; Braga; Franco, 2013).
Do ponto de vista da aplicação das técnicas de clonagem, podemos citar a multiplicação de animais de elevado valor genético, a contribuição para a conservação e o uso de raças de animais domésticos ameaçadas de extinção e o desenvolvimento em estudos de Biologia básica, Biomedicina e Transgenia que podem levar à obtenção de animais resistentes a doenças e parasitas e animais produtores de fármacos (Pallhano et al., 2008; Gonçalves et al., 2008).
Referências
BRIGGS, R.; KING, T. J. Transplantation of Living Nuclei from Blastula Cells into Enucleated Frogs Eggs. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v. 38, p. 455-463, 1952.
BRAGA, T. F.; FRANCO, M. M. Clonagem por transferência nuclear e genes relacionados à pluripotência celular. Revista Brasileira de Reprodução Animal, Belo Horizonte, v. 37, nº 4, p. 334-338, 2013.
COHMER, Sean. “Nuclear transplantation”. Embryo Project Encyclopedia. 2011. Disponível em: http://embryo.asu.edu/handle/10776/1758.
GONÇALVES, P. B. D.; FIGUEIREDO, J. R.; FIGUEIREDO FREITAS, V. J. Biotécnicas aplicadas à reprodução animal. São Paulo: Roca. 2008.
GURDON, J. B. Nuclear reprogramming in eggs. Nature Medicine, v. 15, p. 1.141-1.144, 2009.
GURDON, J. B.; ELSDALE, T. R.; FISCHBERG, M. Sexually mature individuals of xenopus-laevis from the transplantation of single somatic nuclei. Nature, v. 182, p. 64-65, 1958.
LOBATO, B. Bezerra Brasília é o novo clone da Embrapa. Disponível em: https://www.embrapa.br/cerrados/busca-de-noticias/-/noticia/1497024/bezerrabrasilia-e-o-novo-clone-da-embrapa. Acesso em: 08 nov. 2015.
PALHANO, H. B.; JESUS, V. L. T.; TRÉS, J. E.; JACOB, J. C. F.; MOREIRA ALVES, P. A. Reprodução em Bovinos – fisiopatologia, terapêutica, manejo e biotecnologia. 2ª ed. São Paulo: Roca, 2008.
PEREIRA, A. F.; FREITAS, V. J. F. Clonagem em ruminantes: progressos e perspectivas atuais. Revista Brasileira de Reprodução Animal, Belo Horizonte, v. 33(3), p. 118-128, 2009.
TRECENTI, A. D. S.; ZAPPA, V. Clonagem animal: revisão de literatura. Revista Eletrônica de Med. Vet. [online], nº 20, 2013.
RODRIGUES, J. L.; RODRIGUES, B. A. Evolução da biotecnologia da reprodução no Brasil e seu papel no melhoramento genético. Rev. Ceres, v. 56, nº 4, p. 428-436, 2009.
SAKAI, R. R.; TAMASHIRO, K. L.; YAMAZAKI, Y.; YANAGIMACHI, R. Cloning and assisted reproductive techniques: influence on early development and adult phenotype. Birth Defects Research Part C. Embryo Today: Reviews, v. 75(2), p. 151-162. 2005.
WILMUT, I.; SCHNIEKE, A. E.; MCWHIR, J.; KIND, A. J.; CAMPBELL, K. H. Viable offspring derived from fetal and adult mammalian cells. Nature, v. 385: p. 810-813, 1997.
Publicado em 08 de outubro de 2019
Como citar este artigo (ABNT)
SALVADOR, Daniel Fábio. Impactos da biotecnologia - clonagem animal. Revista Educação Pública, v. 19, nº 24, 8 de outubro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/24/impactos-da-biotecnologia-clonagem-animal
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