A professora que aprendeu a cantar

Kátia Silva Rocha Vilela

Era a escola dos sonhos, destas renomadas em que todos querem trabalhar. O processo seletivo foi cansativo e estressante, mas ela conseguiu. Estava ansiosa e passou o final de semana inteiro preparando suas aulas. Era o sexto ano, série de que particularmente gostava muito. Dizia que nessa faixa etária havia uma predisposição maior das crianças a ter afeto aos professores. Afeto desses que afetam mesmo, podendo ser para o bem ou para o mal. Mas ela gostava da transparência no sentimento delas.

Como seria sua primeira aula na turma, uma atividade diagnóstica lhe daria um norte para prosseguir em seu trabalho. Tinha o frescor do início da profissão, o coração batendo forte e um sorriso que não cessava. Tinha um sonho. O sonho de poder fazer a diferença na Educação.

Ela escolhera a profissão por amor. Sempre quis ser professora e, quando menina, amava o quadro que a mãe dera a ela e os gizes que trazia em secreto da escola. Ficava feliz quando sobrava um colorido no suporte da lousa da sua sala de aula, e ao recolhê-lo, quando todos já haviam saído, pensava na tarde que teria, enfeitando o quadro-negro com cores alegres, nos exercícios que prepararia para suas bonecas.

Nunca teve muitos amigos. Os livros eram, na maioria das vezes, toda a companhia que lhe bastava. Muitas vezes se negava a brincar com os irmãos para ficar entre os cadernos. E suas aulas na sala de estar, para a suas bonecas, eram silenciosas. Não falava. Todas as falas, interlocuções, diálogos, ficavam dentro da sua cabeça. A mãe observava apenas as expressões, sorrisos e tinha a verdadeira impressão de que assim ela era feliz.

E era.

Levantou-se cedo e foi trabalhar.

Ao chegar à sala de aula, estava encantada. Havia uma gratidão por, depois de tanto tempo aguardando, voltar àquele que era um ambiente tão aprazível, tão familiar, tão aconchegante. Apresentou-se e conversou um pouquinho com a turminha, ouviu com atenção alguns que pareciam ansiosos em falar e respeitou o silêncio dos demais.

Sua proposta de atividade era uma apreciação auditiva. Dessas tão comuns nas aulas de Português. Uma sequência didática em que havia uma letra de música, de uma dupla que fazia muito sucesso com a faixa etária, com palavras omitidas, em que as crianças deveriam completar a letra ao ouvir a canção e classificar morfologicamente as palavras.

– Uau! Que ideia! Parecia perfeito. Estimulante. Havia nela uma certeza de que daria tudo certo. As crianças certamente se empolgariam ao ver a escolha da música e fariam a atividade estimulados e felizes.

Instalou o som e, passeando por entre as fileiras, entregou as folhas impressas. Estava inebriada... Não se sabe se por falta de experiência, ela jamais cogitou que naquela sala, a primeira na tal escola dos sonhos, o ideal poderia não estar presente. Com pouca prática, pouca idade, queria apenas causar uma boa impressão. Unir o gosto dos alunos a uma atividade de Português.

Pensou nas aulas que levara para a universidade, à professora de Didática, e nas inúmeras vezes em que a elogiaram. Sempre diziam que tinha ótimas ideias.

Mas faltava-lhe a generosidade da experiência.

Ali, naquela sala, ela iria aprender algo que jamais havia sonhado, mesmo debruçada nos livros, empenhada nas aulas, dedicando-se academicamente. A experiência é um cimento necessário. Ergue. Estrutura. Ensina. E o melhor de tudo: a experiência é individual. Cada qual reage de um modo ímpar a cada experiência vivida.

Ao dar play na música, notou um desconforto na sala. Não estavam realizando a atividade. Foi quando Carlinhos pediu a palavra:

– Dá licença, professora! Antes de a senhora começar a aula, eu preciso te falar...
Imediatamente, ela desligou o rádio:

– Pois não, pode falar, querido.

– Meu nome é Carlos, a turma e os professores me chamam de Carlinhos. Então, professora, esse aluno que está sentado aqui na minha frente é o Du. Eduardo. Chamamos ele de Du. Ele senta aqui na fileira do meio porque precisa. Eu sento aqui atrás dele porque sou o melhor amigo dele. Eu o ajudo quando ele precisa. E ele sempre precisa. Sabe professora, ele é superinteligente, mas tem algumas dificuldades, sabe?

– Sim, querido. Do que ele precisa?

– Ele é surdo!

A professora ficou perplexa. Ninguém jamais havia mencionado tal informação durante o processo seletivo ou quando da sua contratação. E agora? E a música? E a aula?

Estava só, apavorada e sem saber lidar com a necessidade especial do aluno. Por que ninguém havia dito? Por que não havia perguntado? Que profissional era ela, que não previu tal situação? E todos os textos que lera? Toda a teoria fixa na memória para reproduzir nas provas solicitadas pela universidade? Ficou arrasada!

Aluno aplicado, Du estudava ali desde a Educação Infantil. Sua mãe contraiu rubéola na gestação, ocasionando sua surdez. Tinha duas irmãs gêmeas, ouvintes. Não sabia Libras. Era oralizado. Sua mãe acreditava que os sinais da Libras fariam com que todos o identificassem, de longe, como surdo. Não queria. Não aceitava. Temia o preconceito, então optou pela oralização. Ele pronunciava muitas palavras e fazia leitura labial.

A professora não fora informada de nada, em nenhum momento. Ninguém deu a ela essas informações. Estava ali, pela primeira vez sem nada saber da turma. Achou que a atividade proposta, que lhe tomou todo o final de semana anterior para ser construída, lhe daria todas as informações de que precisava. Além de todo o constrangimento, não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo.

Du notou a tristeza, a preocupação e a vergonha estampada no rosto da professora. Aquela professora nova na escola, tão constrangida, parecia não mais ser a mesma que havia entrado minutos antes naquela sala.

Ele começou a falar. Tinha a oralidade comprometida pela falta da audição, mas se fazia entender. Disse que conseguiria fazer a atividade, mas necessitava de ajuda, o que era cotidiano em sua rotina escolar.

Quando tudo parecia estar esclarecido, a turma pediu para que a professora desse play na música, para que todos voltassem a realizar a atividade.

A professora, ainda bastante perturbada, não conseguia entender de que maneira conseguiria conduzir a aula. Como tocar a música diante da surdez do aluno? Como prosseguir? Como adaptar sua atividade? O que fazer?

Du, então reiterou. Disse para a professora que ele iria fazer exatamente a mesma atividade.

Ele estava ali, diante dela, na fileira do meio, olhando em seus olhos e sorrindo. Parecia querer tranquilizá-la. Ela, olhando para ele, suplicava por seu perdão e pensava em sair correndo dali.

O sorriso daquele aluno jamais seria esquecido. Havia um significado diferente nele. Empatia. Humildade. Disposição. Vontade de vencer...

Foi então que, ela respirou fundo, olhou nos olhos do aluno e disse:

– Du, como você vai fazer a atividade, meu querido? É uma música. Você não vai conseguir...

Ele respondeu:

– Vou, sim!

– Como?

Sem nunca ter ouvido nada, aquele aluno acabou com a surdez que havia nela... A surdez que a impedia de ouvir o coração e as necessidades de seus alunos... A surdez que a impedia de ouvir a si mesma... A surdez que a impedia de ouvir sua intuição...

E se lembrou do silêncio das aulas que dava para suas bonecas, quando criança e de como, no silêncio, era capaz de ouvir.

E o aluno respondeu:

– Você canta pra mim!

Ela cantou e nunca mais deixou de ouvir.

Texto elaborado na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Sylvia Martin Pires, com a coordenação de estudos literários (Academia Estudantil de Letras Adélia Prado) da professora Kátia Vilela.

Publicado em 15 de outubro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

VILELA, Kátia Silva Rocha. A professora que aprendeu a cantar. Revista Educação Pública, v. 19, nº 25, 15 de novembro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/25/a-professora-que-aprendeu-a-cantar

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