Resenha do filme "Do outro lado do Atlântico"

Dimar Monteiro Sanca

Graduando de Sociologia e Bacharel em Humanidades (Unilab)

Numa perspectiva antropológica e sociológica, por meio das narrativas dos personagens, o filme possibilita ressaltar o estado anímico e mímico de processos identitários e culturais na contemporaneidade. A percepção sobre a dissolução de fronteiras culturais tem sido marcada pela transnacionalização de pessoas, lugares, culturas e sentimentos.

As novas performances caraterísticas de processos identitários ressaltam os desafios de construções culturais físicas e coletivas proporcionados pela mobilidade humana, processos típicos da globalização que geram suas teses, antíseses e sínteses sobre grupos sociais e raciais.

As narrativas dos personagens sustentam-se como ferramentas teórico-políticas para compreender a relação entre cultura, identidade e lugar no contexto das constantes transformações protagonizadas pela globalização, fator este que estabelece ou restabelece o debate sobre o permanente e o efêmero nas inter-relações sociais e raciais. No entanto, o filme sintetiza as culturas brasileira e caboverdiana apresentadas por meios representativos: narrativas, impactos e ações por meio de vivências e experiências visibilizadas pelas fronteiras étnico-raciais e geográficas.

A perspectiva de “abrir novos horizontes”, retratada na fala de Osnelly, especificou Brasil e Cabo Verde como espaços de cenários, impactos e de dramatizações sociais, culturais e raciais. As dramatizações presentes na construção de relações étnico-raciais no Brasil provocam mudanças, estranhamentos, divergências, adaptações e convergências identitárias. Pode-se falar de convergências baseando na narrativa de Shakil Ribeiro sobre o contexto assim avaliado: “Temos santomenses, moçambicanos, guineenses... mas temos aquela ligação: somos africanos”. O ponto convergente é africanidade, no entanto, no stricto sensu.

África é a delimitação de espaços culturalmente convergentes; por isso fala-se de África e suas africanidades. Contudo, não é menos verdade dizer que esse continente é culturalmente divergente por suas notáveis e caraterísticas diversidades que, de modo efetivo e sistemático, demarca-se da história única e estandardização cultural. Essa ideia se confere na constatação de Matilde: “Dentro de Cabo Verde, há muitos Cabos Verdes...”.

A construção de relações étnico-raciais no Brasil é um processo permanente; contudo, histórico. Essas relações associadas ao processo de mestiçagem proporcionam reflexões e construções imaginárias sobre o que há Do outro lado do Atlântico; todavia, improvável que sejam vistas de modo recíproco e proporcional ― África (Cabo Verde) e Brasil ― como se pode perceber no imaginário de Ronnie que considerava o Brasil “mulher bonita, alegre, praia, água de coco...”.

Entretanto, a mesma construção gera síntese de um processo efêmero da africanidade ou brasilidade que existe no africano ou brasileiro influenciado mormente por regionalismo e/ou nacionalismo tanto africano quanto brasileiro. De acordo com Costa (2001), “trata-se de uma visão de mundo que reinventa o país, na medida em que revela a possibilidade de convivência dos diferentes grupos socioculturais então residentes dentro das fronteiras político-geográficas brasileiras”.

Essa perspectiva construtivista está assente em fundamentalismos. De acordo com João Teixeira, “às vezes, o problema não é você ser negro, é você ser africano, donde você vem”. Essa avaliação converge com a tese de que, nas relações étnico-raciais, a tendência de o negro ser associado aos processos e/ou resquícios do escravagismo não sofre mudanças significativas datando de 1888 aos dias atuais. Entretanto, a fala de Teixeira se constitui como antítise para Guimarães (2016): “os africanos de ontem e de hoje foram e são em geral definidos negativa ou positivamente por características fisionômicas e fenotípicas, e não pela cultura ou nacionalidade de origem”.

É fato a desproporcionalidade no reconhecimento do africano ou afro-brasileiro no Brasil em relação ao “brasileiro padrão”. Explica-se, consideravelmente, que esse fato se analise em dois eixos: maior registro à Filosofia da Ancestralidade no imaginário do africano em detrimento do brasileiro e classe social e identidade no Brasil. Os significados identitários construídos e às vezes não reconhecidos entre ambas as partes proporciona a monotonia cultural nas relações étnico-raciais.

Tendo isso em vista, a africanização do Brasil é desproporcional à brasilização da África; isso traz à tona o debate sobre sincretismos culturais, uma vez que a “integração” se constitui como fim, não como meio. Até que ponto a coexistência dos “contrários” garante necessariamente sincretismo cultural? A quem serve a coexistência dos contrários? O que intermedeia as vivências e convivências entre esses atores sociais mediante a avaliação pejorativa do “outro”?

Consideravelmente a resposta assinala-se à luz de pensamento de Costa (2001):

Diversos trabalhos recentes operam a reconstrução do debate racial ocorrido no Brasil desde fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX de forma exaustiva e competente (cf. Schwarcz, 1993; Munanga, 1999; Hofbauer, 1995, entre outros). Ainda que distintos em suas ênfases e avaliações, tais trabalhos convergem ao caracterizar o debate racial da virada do século como expressão do ceticismo então dominante quanto às possibilidades de se construir uma nação progressista nos trópicos, uma vez que a população era constituída em grande medida de negros e mestiços.

O fato de o Brasil ser majoritariamente negro não sustenta, a priori, o princípio de igualdade ou reconhecimento mútuo. Vale ressaltar que a influência do regionalismo, concepções raciais e de classe e filiações políticas que sustentam as diversidades no Brasil suplanta os princípios de solidariedade entre grupos sociais.

É oportuno destacar abordagens do contexto capitalista sobre racismo, homofobia e xenofobia presentes nas relações étnico-raciais, entendidas como expressões ideológicas e políticas que segmentam as desigualdades sociais, culturais, políticas e econômicas. As narrativas abordam as referências históricas e culturais inerentes à negação de múltiplas diversidades e contextos civilizatórios. Percebe-se que o racismo é uma abordagem ou concepção subjetiva e construtiva de identidades, por mais pejorativo que possa ser.

Nessa perspectiva, faz-se necessário ressaltar que a diversidade é o “próprio” da identidade. A personalização da África e do Brasil que as narrativas trazem associada, a priori, aos processos imaginários recria, por mais implícito que seja, quadros culturais e etnográficos. Sendo assim, nas relações étnico-raciais dadas pelas diretrizes de um mundo globalizado, destaca-se a interdependência entre o lugar e a cultura ou processos identitários, pois a hibridização ou intercâmbio cultural não passa necessariamente pela partilha de espaços geográficos, baseando na consideração de que a identidade cultural é o mecanismo político de mobilização e dominação de raça e classes.

Segundo Costa (2001),

as estratégias de assimilação cultural associadas às políticas da mestiçagem puderam historicamente demonstrar sua eficácia. Em pouco mais de quatro décadas, praticamente todos os grupos populacionais que viviam nas fronteiras territoriais brasileiras foram “integrados” na comunidade nacional através do sistema escolar unificado e da língua portuguesa.

No contexto da globalização, a interdependência entre o idealismo e a cultura desencadeia a “necessária” ressignificação deste último conceito; contudo, isso pode fazer face à institucionalização da cultura, um dado importante para a permanência dela e da sua legitimação.

Na mesma perspectiva, Costa (2001, p. 153) destaca que

o conceito de hibridismo (com suas variações hibricidade, hibridação etc.) aparece cada vez mais recorrentemente na literatura que discute as consequências culturais da globalização. Quando o conceito é deslocado, contudo, do sentido epistemológico e político relevante que lhe conferem os estudos pós-coloniais e transportado para a sociologia perde sua eficácia analítica e normativa.

A legitimação cultural é fundamental no âmbito de “intercâmbio cultural”, de reconhecimento e de resistências. As narrativas dos personagens reiteram as necessárias resistências impactadas ora pela cor da pele ora por serem africanos. As dificuldades linguísticas, como destacou Marcos da Cruz, um dos personagens do filme, apresentam-se persistentemente, a exemplo de tetum, a língua falada no cotidiano dos timorenses. Isso faz com que o sotaque brasileiro seja uma das dificuldades que a comunidade timorense tenha encontrado na cidade de Redenção (Ceará), avaliada, de acordo com outro personagem do filme, como “uma cidade provinciana marcada pelo racismo”, porém, “aqui não tem muito negro. No Ceará não tem racismo por ser o primeiro estado no país a abolir a escravidão”, de acordo com a fala de Andy, outro personagem do filme.

Pela observação dos aspectos analisados, percebe-se que a noção de superioridade racial e cultural que a escravidão sustentou tem sido linear ao longo dos tempos, tem sustentado as relações étnico-raciais no Brasil, o que proporciona as necessárias resistências impactadas principalmente pela cor de pele. De forma inclusiva, de acordo com Ema, “A supremacia racial deixa muitos resquícios em África”.

À luz dessa ideia, Guimarães (2016, p. 170) considera:

Como os negros, também os descendentes dos japoneses que imigraram para as Américas continuam, de certo modo, a se diferenciar fenotipicamente dos demais americanos e brasileiros, a depender de seu grau de miscigenação. No entanto, eles também resistiram com relativo sucesso à racialização, atendo-se à referência nacional de sua origem, muito mais forte que a designação de raça amarela que se lhes quis impor a imaginação racista.

Ora, o equilíbrio no processo de trocas de significados culturais provavelmente constituiria, a priori, um dos mecanismos de combate ao racismo, à homofobia e à xenofobia. No entanto, esse desequilíbrio sustentado na luta pelo poder multiplica meios políticos para esse fim. A persistencia no interesse pelo domínio do “outro” induz a reprodução de estereótipos que sustentam racismo, homofobia e xenofobia.

É importante salientar que as narrativas retratam percepções e ideologias, não culturas em si, porque a cultura transgride os limites da personalização cultural. Até que ponto os personagens do filme podem retratar apenas determinados grupos sociais e raciais e não a cultura popular? Como se dá o retrato da cultura popular por meio de grupos sociais diferenciados?

Essas questões abordam ampla e profundamente as especificidades das relações étnico-raciais no Brasil. Receia-se a pseudouniversalização identitária ou estandardização cultural que pode revelar ausência de reconfigurações culturais dadas pelo tempo e espaço. Faz-se necessário considerar significativamente as desigualdades e estratificações sociais e raciais, pois falar das relações étnico-raciais no Brasil é falar, de certo modo, do pensamento social brasileiro.

Referências

COSTA, Sérgio. A mestiçagem e seus contrários: etnicidade e nacionalidade no Brasil contemporâneo. Tempo Social, S. Paulo, v. 13(1), p. 143-158, maio 2001.

DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO. Filme. Direção de Daniele Ellery e Márcio Câmara. Brasil, 2017.

GUIMARÃES, António Sérgio Alfredo. Formações nacionais de raça e classe. Tempo Social, São Paulo, v. 28, nº 2, ago. 2016.

Publicado em 15 de outubro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

SANCA, Dimar Monteiro. Resenha do filme "Do outro lado do Atlântico". Revista Educação Pública, v. 19, nº 25, 15 de outubro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/25/resenha-do-filme-do-outro-lado-do-atlantico

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