A docilização do corpo na Educação Infantil

Beatriz da Silva Carvalho

Graduanda de Pedagogia (UFRRJ - Nova Iguaçu)

Kimberli Rodrigues de Aguiar

Graduanda de Pedagogia (UFRRJ - Nova Iguaçu), agente de apoio à Inclusão na rede municipal de Duque de Caxias/RJ

Natasha Carolina Pereira da Costa

Graduanda de Pedagogia (UFRRJ - Nova Iguaçu), professora dos anos iniciais da rede municipal de Nova Iguaçu/RJ

Assim como descrito por Michel Foucault no capítulo "Corpos Dóceis", de Vigiar e punir, houve, na segunda metade do século XVIII, a necessidade de fabricar um soldado ideal; isso seria possível por um processo gradual, sutil e continuo de coação que visava corrigir posturas mediante o domínio corporal como um todo, moldando o corpo, condicionando-o, manipulando-o, viabilizando-lhe o automatismo de ações esperadas; essa submissão foi denominada por Foucault “corpos dóceis”; concretizava-se pela disciplina.

Transpondo para a Educação Infantil, objeto principal de estudo deste artigo, a prática docente nessa modalidade de ensino em suas metodologias, estratégias e sistema de avaliação visa “produzir” um tipo ideal de aluno, com comportamentos padronizados e aceitáveis socialmente, inviabilizando de certo modo a autonomia infantil, tornando-o submisso e comprometendo a criatividade, que é extremamente necessária para o aprendizado do aluno, criando um ambiente de controle e docilidade. Essa docilidade do corpo da criança não permite que se desenvolva na criança a busca ativa para solucionar problemas; pelo contrário, habitua a criança a não se posicionar em momentos em que deveria expressar seu posicionamento diante das situações, refletindo diretamente no futuro.

Este artigo visa sinalizar os problemas metodológicos existentes na prática pedagógica na Educação Infantil atualmente, propondo estratégias para que haja a desconstrução de práticas que limitam a autonomia, que condicionam e tornam a criança passiva diante de determinados desafios; essas estratégias devem contribuir para o exercício da autonomia infantil, da curiosidade, da criatividade e da capacidade de iniciativa.

A docilização do corpo da criança pequena

Em grande parte das instituições de ensino, sobretudo de Educação Infantil, é muitas vezes oferecida uma educação que visa moldar a criança. Segundo Michel Foucault, esse molde se dá pela aplicação da disciplina, que, ao invés de formar seres pensantes e autônomos, molda-os conforme a sociedade espera que as crianças sejam. É comum ver sinais da imposição de poder porque tal imposição tem ligação direta com a manipulação e o treinamento e visa à docilização do corpo da criança para exercer domínio e controle sobre ela.

No centro desses sinais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.

Visando atender uma expectativa social e até mesmo econômica, na escola, já desde a Educação Infantil, há a produção de corpos dóceis, transformando as crianças em seres submissos, moldados e minuciosamente controlados para que se adéquem ao que é esperado pela sociedade e para que se submetam por obediência às ordens dadas, não permanecendo a vontade própria e sim algo que lhe foi instruído fazer. Isso dá-se pela disciplina, que vai desde a forma como são levados a sentar até os combinados (regras) apresentados a elas desde o primeiro dia de aula.

Esse tipo de prática vai contra os princípios de autonomia, que filosoficamente se mistura com liberdade, pois tira da criança o direito de escolha; ela passa a acreditar no que dizem e a reproduzir o que lhe foi ensinado sem interpretação crítica, tendo uma visão reducionista da realidade na qual está inserida, visto que, como Foucault afirma, por meio da disciplina os mecanismos tornam o indivíduo tanto mais obediente quanto útil.

As crianças devem desenvolver, desde os anos escolares iniciais, sua autonomia responsável para a construção de uma personalidade sadia, mas para isso deve ter respeitadas suas individualidades; condicioná-las a um processo de docilização é fazer com que ela cresça sendo alguém submisso e limitado, disposto apenas a seguir ordens, algo que está muito longe de uma educação com liberdade e autonomia – que é o defendido por inúmeros estudiosos da Educação, inclusive pelo Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil, que fala a respeito da autonomia:

As crianças vão, gradualmente, percebendo-se e percebendo os outros como diferentes, permitindo que possam acionar seus próprios recursos, o que representa uma condição essencial para o desenvolvimento da autonomia. A autonomia, definida como a capacidade de se conduzir e tomar decisões por si próprio, levando em conta regras, valores, sua perspectiva pessoal, bem como a perspectiva do outro, é, nessa faixa etária, mais do que um objetivo a ser alcançado com as crianças, um princípio das ações educativas. Conceber uma educação em direção à autonomia significa considerar as crianças como seres com vontade própria, capazes e competentes para construir conhecimentos e, dentro de suas possibilidades, interferir no meio em que vivem. Exercitando o autogoverno em questões situadas no plano das ações concretas, poderão gradualmente fazê-lo no plano das ideias e dos valores.

Ao ignorar as individualidades das crianças, os professores, que muitas vezes não se autoavaliam quanto a suas práticas, reproduzem até mesmo o que lhes foi oferecido, porque os docentes também passam pelo processo de docilização, transformando o processo em um looping eterno, em que se reproduz aquilo que aprendeu sem ao menos problematizar as ações, os porquês e as consequências. Paulo Freire nomeia tais ações como "concepção bancária"; nela o educador tem o papel de depositar nas crianças o conhecimento já adquirido por ele. "Quanto mais se deixam docilmente ‘encher’, tanto melhores educandos serão".

O respeito como principal agente libertador

O objetivo principal é trabalhar com os pequenos da Educação Infantil com uma proposta que lhes ofereça autonomia e construção do pensamento crítico.

Para isso é necessário que o ambiente favoreça a cooperação da criança para seu desenvolvimento cognitivo. As estruturas do ambiente precisam estar ao alcance da criança e de forma segura também, para que seja permitido o acesso dela a todo local.

Nessa fase da vida, a criança leva dentro de si uma curiosidade sem tamanho, e é nesse momento que essa curiosidade deve ser estimulada ainda mais, deve-se atrair o interesse delas para algo que vá enchê-la de informações necessárias para seu crescimento como aluno atuante. Pedir a opinião, a colaboração e dar oportunidade para ela agir e interagir no seu ambiente irá presentear o raciocínio dessa criança, tornando-a livre de ser um corpo dócil.

É muito importante que durante esse processo o tempo da criança seja respeitado, tanto no que se refere ao momento do cumprimento da atividade – que na verdade não tem que ter um tempo estipulado, mas que seja permitido à criança viver aquilo enquanto lhe causa prazer, sem interferências – quanto no que diz respeito a esperar o tempo de reação de cada um, levando em consideração que cada um tem o seu tempo para aprender. Dar liberdade de escolher o ambiente em que deseja estar, seja na sala de leitura, seja na sala de vídeo ou no pátio. Permitir que aos poucos ela mesma crie seu momento de aprender; permitir que aprenda brincando. Fazer com que ela se sinta capaz de opinar e dar ideias.

Considerar suas escolhas quanto às brincadeiras; dar voz às crianças, reorganizando um lugar no qual prevalece a centralidade do professor e atentar aos pontos de vista dos pequenos representam à Pedagogia da Infância práticas vinculadas aos direitos das crianças e capazes de devolver-lhes as linguagens que lhes foram roubadas. Raramente isso encontra lugar no campo estudado, embora seja declarada a experiência lúdica como critério pedagógico e o movimento como expressão central das crianças.

Ouvir as crianças em suas múltiplas linguagens e respeitá-las em sua condição não significa eximir-se do trabalho de mediação pedagógica. Se a ludicidade é critério pedagógico e o corpo como território das paixões e dos desejos é controlado em nome da civilização, é preciso, para rivalizar com esse estado de coisas, organizar e planejar, mas também escutar as experiências corporais que propiciem a descoberta de novas portas de comunicação, tendo em vista a participação criativa das crianças – pelas quais somos responsáveis – no mundo. Interessa para a educação, no entanto, criticar a desmesurada dominação do corpo, que significa a anulação de si.

Descobrir outras linguagens, estabelecer formas não danificadas de interação com as crianças e recriar o tempo e o espaço dos ambientes educacionais são desafios postos para a educação dos pequenos (Richter; Vaz, 2005, p. 84).

A forma como é aplicada a didática nas instituições de ensino se assemelha a medidas que eram realizadas em conventos e exércitos, onde se deu início ao processo de docilização dos corpos a partir da segunda metade do século XVIII, sem a autonomia e com regras impostas; o que se reproduz são alunos passivos e obedientes, ao invés de ativos, formadores de opinião. Alunos com os corpos submissos, que têm que se enquadrar nas normas e reproduzir apenas o que lhe foi ensinado e imposto. O filósofo Michel Foucault, em seu texto “Os corpos dóceis”, de Vigiar e Punir, afirma que

muitos processos disciplinares, nos conventos, no exército ou nas oficinas, já faziam parte do cotidiano, porém no decorrer dos séculos XVII e XVIII as disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação, tornando submissos os corpos. Esse é o tempo disciplinar que se impõe aos poucos. E que torna possível a formação de “uma espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e obter um resultado específico”.

Freire reafirma a necessidade de os educadores criarem as condições para a construção do conhecimento pelos educandos como parte de um processo em que professor e aluno não se reduzam à condição de objeto um do outro, porque ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Segundo o autor, essa linha de raciocínio existe por sermos seres humanos e, dessa maneira, temos consciência de que somos inacabados; essa consciência é que nos instiga a pesquisar, perceber criticamente e modificar o que está condicionado, mas não determinado, passando então a sermos sujeitos e não apenas objetos da nossa história.

Todos devem ser respeitados em sua autonomia; portanto, a autoavaliação é excelente recurso para ser utilizado na prática pedagógica. Educadores e educandos necessitam de estímulos que despertem a curiosidade e, em decorrência disso, a busca para chegar ao conhecimento.

O bom senso requer que sejamos coerentes, diminuindo a distância entre o discurso e a prática, julgando se a sua autoridade na sala de aula é ou não autoritária, pois ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educandos e exige também a compreensão da realidade.

Ensinar requer a plena convicção de que a transformação é possível porque a história deve ser encarada como uma possibilidade e não como um determinismo moldado, pronto e inalterável. O educador não pode ver a prática educativa como algo sem importância; é preciso lutar e insistir em revoluções e mudanças.

O educador não deve barrar a curiosidade do aluno, pois é de fundamental relevância o incentivo à sua imaginação, intuição, senso investigativo, enfim, à sua capacidade de ir além.

A prática educativa é um constante exercício em favor da construção e do desenvolvimento da autonomia de professores e alunos, não obstante transmitindo saberes, mas dando significados, construindo e redescobrindo-os, pois fomos programados para aprender e, por consequência, para ensinar, intervir e conhecer.

Com isso, foi diagnosticada a importância de aprimorar as formas de o profissional da Educação exercer suas habilidades, viabilizando outros meios que priorizem o direito de a criança ter infância.

Considerações finais

Podemos concluir, mediante a análise do trecho da obra de Foucault, problematizando-a com a prática pedagógica na Educação Infantil, que a Educação, assim como outros ambientes sociais, desde o século XVIII vem sofrendo um processo de manipulação e controle, pela disciplina e pelos exercícios constantes, cujo objetivo é criar um tipo ideal, que no caso e nosso objeto de estudo é o aluno (criança) ideal, obtendo assim controle de seu corpo numa fusão do corpo analisável e manipulável, tornando-o totalmente treinável e passivo de aperfeiçoamento para determinado interesse social e até mesmo econômico, já que quanto mais obediente (dócil) for o corpo, mais útil ele será.

Sendo assim é necessária uma ruptura com o que Foucault chama de “Pedagogia Analítica” pela qual a decomposição dos elementos e a hierarquização dos graus e processos dão conta de uma minuciosidade que leva justamente à docilização, pleno controle das operações corporais, classificação de uma forma que transcende o individual, ou seja os métodos aplicados “docilizam” coletivamente, tornando mais eficiente essa dominação e alienação. Portanto, é necessária uma prática pedagógica libertadora que respeite as individualidades das crianças, seu tempo, conferindo-lhe a autonomia, o prazer em aprender, a convivência social saudável e o crescimento e desenvolvimento do corpo holisticamente, tornando a ludicidade e os princípios de liberdade o caminho para o desenvolvimento infantil, abandonando a necessidade de manipulação e controle, criando na criança seu pensamento crítico, estimulando sua curiosidade epistemológica e o pleno exercício de sua capacidade de iniciativa e criativa.

Referências

BRASIL. MEC. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998, vol. 2.

BRUNET, Orlando. Michel Foucault: os corpos dóceis. 2009. Disponível em: https://faceaovento.com/2009/12/21/michel-foucault-os-corpos-doceis/. Acesso em: 8 dez. 2017.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Disponível em: http://www.passeiweb.com/estudos/livros/pedagogia_da_autonomia. Acesso em: 8 dez. 2017.

RICHTER, Ana; VAZ, Alexandre. Corpos, saberes e infância: um inventário para estudos sobre a educação do corpo em ambientes educacionais de 0 a 6 anos. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 26, nº 3, p. 79-93, maio 2005.

VIVALDI, Flávia. Como desenvolver a autonomia das crianças na Educação Infantil? Disponível em: https://gestaoescolar.org.br/conteudo/1014/como-desenvolver-a-autonomia-das-criancas-na-educacao-infantil. Acesso em: 8 jul. 2018.

Publicado em 05 de novembro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

CARVALHO, Beatriz da Silva; AGUIAR, Kimberli Rodrigues de; COSTA, Natasha Carolina Pereira da. A docilização do corpo na Educação Infantil. Revista Educação Pública, v. 19, nº 28, 5 de novembro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/28/a-docilizacao-do-corpo-na-educacao-infantil

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