Febre terçã

Hugo Maddalena Junior

Graduando em Letras (UFF/Cederj), assistente técnico-administrativo do Ministério da Economia (DRF/Macaé)

Passava pouco das duas, e a tarde ensolarada via desfilar, preguiçosamente, o ônibus lento e abarrotado. O sol de quarenta graus, forte e impiedoso, castigando vigorosamente o velho e caquético veículo da linha Cosme Velho-Leblon, cozinhava e temperava com suor o bolo patético de carne humana.

Encolhido no último banco traseiro, revestido por remendados oleados azuis, ele se mantinha pensativo, emudecido, mesmo indiferente à turba ruidosa, que entrava e saía em jatos desgraciosos, acotovelando-se, disputando furiosa cada palmo do ônibus. Ao seu lado, tagarelando alto, duas jovens morenas arrumadas com exagero suburbano comentavam suas companhias da última alegre noite de sábado. De uma delas, cor de canela, ele pôde perceber, do alto dos saltos de babel, uns olhares frívolos e alguns poucos cochichos mal disfarçados. Ele desprezou-as, com força... com ódio... elas eram tão felizes...

O ruído incessante da máquina torpe irritava-o cada vez mais e o deixava cada vez mais quieto e cabisbaixo... cada vez mais, a cada instante...

Fechou os olhos e não pensou...

Só fechou os olhos.

E pouco depois tornou a abri-los, brusco, esbarrando seus braços trôpegos nos vizinhos surpresos, chamando a atenção de todos que, como ele, estavam ali, naquele forno híbrido. Todos, por um instante, viraram-se, censurando-o com seus olhos inquisidores. Todos... todos olharam para ele... os cruéis...

Todos, exceto aquele pequeno mulato atarracado e meio corcunda, de aparência simplória, submisso, enfiado numas calças gastas de tergal cinzento, sustentadas por um cinto preto de couro ordinário, parcialmente coberto pelo blusão discreto, amarelo bem claro, enfeitado com simplicidade por pequeninos nós brancos um tanto desbotados, impressos desuniformes no tecido amassado.

Todos, exceto aquele sujeito baixote, de cabelo encarapinhado cortado bem rente, bem ralo, cujos olhos humildes eram acima de tudo inexpressivos e cuja corcova miúda acentuava ainda mais a sua imagem débil e conformada; imagem controvertida de santo e de ignóbil.

E ele, contrariado, virou-se para aquele homem pequenino, examinando-o pelas frestas que surgiam entre os corpos dos outros passageiros, perscrutando-o de cima a baixo, minuciosamente, sem que este, sempre cabisbaixo e imóvel feito um animal escorraçado, sequer o percebesse.

Ele estava confuso... bastante confuso...

No ponto seguinte, num fluxo desordenado e mal articulado, mais pessoas adentraram o coletivo, engrossando a massa escaldante e turbulenta, e, aos trancos, trazendo aquele sujeitinho miúdo de tez escura para bem perto dele, restando imóvel bem à sua frente.

Eram agora duas e dezessete.

E foi só então que, desconcertado, ele percebeu o esforço que aquele pequenino homem realizava, tentando manter-se de pé, equilibrando-se entre choques e esbarrões, contendo a custo a maleta de ferramentas, cinzenta e suja de graxa e o embrulho rechonchudo de papel pardo ensebado, envolvido por finos barbantes de cordel, que cismavam em tentar escapar-lhe das mãozinhas miúdas e despencar pelo peito abaixo.

Bem no seu íntimo, ele tentou ajudar aquele sujeitinho miúdo, e, em vão, tentou erguer as mãos grandes e ossudas para segurar os seus pacotes teimosos, mas, refreado pelo seu mais inexprimível âmago, ele não conseguiu mover-se; seus braços não se ergueram, permanecendo como antes, apoiados sobre as pernas bamboleantes, intimidados.

Ele não podia mais sequer olhar para aquele sujeito pequenino... Ele, acovardado, abaixou a sua cabeça ferida pelo inesperado golpe e, mais uma vez, fechou os olhos e não pensou... Só fechou os olhos... De novo.

Aqueles olhos distantes dos seus uma galáxia ardiam, no seu foco amarelecido, ao simples contato visual; venais, como se aquelas íris desbotadas escondessem, mascaradas sob a simplicidade de uma criança ingênua, toda a mordacidade de poderosas garras e o veneno de temíveis serpentes... Ardiam, cruéis, em sua astúcia ferina e rebelde.

Aqueles olhinhos bobos feriam-no impiedosamente. Feriam a sua alma, a sua carne... Torturavam-no sem dó... aqueles olhinhos submissos castigavam a sua carne; aqueles olhinhos ocos... olhos de água-benta... água-benta nas chagas dos homens dói mais forte do que vinagre... os olhinhos de água-benta...

Com a cabeça baixa, enfiada entre as pernas, escondida pelos braços imbeles e fugidios, ele empalideceu, temendo que os outros passageiros percebessem o seu caos interior... Agora, alisando trêmulo a face delgada e imberbe, ele podia sentir gotas geladas percorrendo-a, ácidas no seu cáustico frescor, descendo até o pescoço... Suando frio, ele, encurralado no seu próprio mal-estar, despejando gotas e mais gotas de um suor gélido... ele lívido...

Ele não podia mais olhar para aquele sujeito pequenino... aqueles olhinhos bobos de água-benta... as íris desbotadas, inexpressivas... Não podia mais...

Seus olhos aparvalhados não podiam mais perceber a lenta progressão daquela caldeira trepidante pelas ruas congestionadas de Botafogo. Seus ouvidos mal podiam distinguir a origem dos sons que assolavam a sua mente árida, desprovida de sensibilidade, amarrotada pelos acontecimentos.

– Ei, você! Me dá aqui, deixa que eu carrego pra você!

A vozinha miúda da mocinha bronzeada mal pôde chegar ao seu destino: o homenzinho, esmagado pelo burburinho crescente à sua volta, não a ouviu. Porém foi percebida com surpreendente clareza por aqueles ouvidos sufocados de conturbação. Ele reergueu a face, incrédulo, procurando fitar a moça dos saltos de babel que, ignorando o seu desconsolo, oferecia ajuda àquele mulato atarracado.

Não. Ele não compreendia... ele não podia... era uma afronta... ela... o sujeitinho corcunda... desdenhavam dele... os cruéis... A vozinha penetrou bem fundo nos seus tímpanos, dilacerando-os, suprimindo por completo as suas últimas resistências. A vozinha fraca lhe pareceu forte e estridente, lancinante mesmo.

Ele, prostrado ali, com a alma distante, enfatuada, ardendo de vergonha, ergueu o seu olhar e encarou-a com uma tão disparatada intensidade que ela, vislumbrando-o ao esticar os braços depilados de menina para receber os embrulhos do homenzinho, teve súbita vontade de rir e mal conteve uma gargalhada, passando a mão discreta pelos lábios vermelhos de exagero.

A dor da vergonha o enlouquecia... ele quase espumava... ela desdenhava dele... era uma afronta... o mulato, também... desdenhavam dele...

A moça afastou bruscamente os olhos dele, pressentindo uma chama de inexplicável ódio que se acenderia no seu olhar, e, ao receber das mãos serenas do mulato baixote a maleta e o pacote pardo ensebado, corou levemente, percebendo que aquele olhar duro ainda a fustigava... aquele olhar vidrado...

– Muito agradecido!

O ronronar despretensioso do homenzinho simplório atraiu a sua atenção, aliviando-a da tensão insuportável que os seus olhos incandescentes irradiavam. Ele desviara o seu olhar da moça e agora fitava o homenzinho miúdo, que passou a maleta e o embrulho ensebado às mãos delicadas da menina esboçando um leve sorriso, ignorado por ela, que nem sequer o vira, ali postado ao seu lado. Ela acomodou os embrulhos no colo perfumado, bem em cima da sua bolsa acetinada, e, sentindo-se finalmente liberta do olhar terrivelmente incômodo daquele estranho, recomeçou a conversa com a amiga do ponto exato onde haviam parado. Esta, que procurava algo através do vidro embaçado da janela do ônibus, ouvia atentamente o seu cochichar feito de forma espaçada, evitando assim atrair novamente a atenção daqueles olhos tensos de cão raivoso. A moça desviou o seu olhar uma vez mais e, de esguelha, pôs-se a observar aquela fisionomia tão conturbada que há poucos instantes a havia condenado de forma tão áspera. Contudo, ele a surpreendeu ainda uma vez mais. A sua expressão agora era ainda mais cômica do que antes: a face lívida deixava transparecer uma inexprimível mudança: parecia um pouco envergonhado, mas os seus olhos, agora fixos no sujeitinho baixote, ainda ardiam feito brasas vivas.

Entre um riso preso e um sobressalto, ela deixou escapar um quase murmúrio para a amiga:

– Eu, hein!, ao que a outra indignada lhe perguntou:

– Por que esse espanto? Não gostou do vestido? Eu até que...

Voltando-se para a amiga, ela respondeu risonha:

– Não é isso, sua boba. Repare naquele cara aí do seu lado. Esquisito, né? Ele...

Às duas e vinte e cinco, o ônibus arrastava-se pesadamente pela Barata Ribeiro, unindo-se a um infinito número de outras fornalhas ambulantes que, assim como ele, amarrotavam gente às toneladas nos seus corredores tórridos.

Absorto, com o olhar cáustico fixo no homenzinho, ele se esquecera completamente que o seu ponto ficara para trás... Ele se esquecera completamente. Nem lembrava mais o porquê de estar ali...

Após a curta e lacônica, como ele, demonstração de gratidão, o homenzinho retornou à sua quietude cabisbaixa, contemplando o piso de ferro e guimbas de cigarro amassadas, certamente com o pensamento perdido em algum serviço mais trabalhoso que ele ainda teria de prestar, nesse mesmo dia. Nenhuma vez o seu olhar cruzou com aquele olhar insólito... Nenhuma vez as suas íris desbotadas se viram frente a frente com as centelhas disparadas pelo olhar do outro...

Ele, apalpando a face imberbe, pôde perceber que as gotas geladas de suor haviam se tornado quentes e lambuzavam a sua face, pegajosas, melosas. Doído, ele se entregou ao desvario que já ameaçara tomar conta dos seus atos desde o princípio. A sua mente entristecida de aridez, os seus pensamentos inteiramente confusos, ele obcecado, tomado pela causticidade e pela acidez... O homenzinho o irritava. Ele o incomodava. O sujeitinho judiava dele, ele o desprezava... nem o seu rancor fazia com que o homenzinho desaparecesse da sua frente... o homenzinho não se movia... o homenzinho não o via...

– Corno!

A monotonia da longa e penosa viagem viu-se alquebrada pelo inesperado grito. As pessoas voltavam as suas cabeças, curiosas, à procura do infeliz que havia dado aquele berro tão estapafúrdio, rouco, de cômica intensidade, que mais parecia um grito de dor.

E, pela primeira vez, os olhinhos de água-benta fixaram-se nos seus, mas de uma maneira absolutamente inexpressiva, apenas surpresos... Ele cravou o seu olhar incandescente no olhar neutro do homenzinho... o homenzinho... aqui, bem à sua frente... o mulato corcunda... aqui em frente... a água-benta... os olhos que ferem...

Ele se levantou do assento de forma violenta, deixando cair dos seus joelhos trêmulos o jornal amassado, surpreendendo as dezenas de expressões incrédulas que procuravam descobrir o que estava acontecendo. As faces curiosas observaram-no encrespar-se e, transfigurado, desferir um fervoroso murro bem nos lábios mudos do homenzinho, esmigalhando os seus dentes um pouco amarelos e atirando-o com violência em cima de alguns passageiros atônitos, sentados em um banco lateral, e então descer desesperado a escada da porta de entrada, empurrando da sua frente um enrugado velhote de uns sessenta anos e sua bengala.

Depois, fugiu feito um louco em pleno sol de dezembro.

Publicado em 12 de novembro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

MADDALENA Jr., Hugo. Febre terçã. Revista Educação Pública, v. 19, nº 29, 12 de novembro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/29/febre-terca

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