Deciframento, decodificação e Tradutore – a escrita e sua compreensão

Lívia Carvalho Teixeira Lins

Mestre em Linguística (Proling/UFPB)

Considerações iniciais

Compreender os vocábulos deciframento, decodificação e tradutore leva a descortinar as primeiras formas de registro feitas desde o barro ao papel, passando para os computadores e para todas as formas tecnológicas atuais que auxiliam a escrita, permitindo ao leitor a sensação de registrar, imortalizar e conhecer suas memórias. Buscaremos compreender a importância da escrita como fonte histórica, amparados por técnicas que irão nos direcionar nesse percurso, desde a origem da escrita, em que identificamos seus primeiros traços, até o deciframento/decodificação dos textos escritos em língua vernácula e estrangeira.

Ao adentrarmos a história da escrita, relevamos conforme Katia Pozzer (1998, p. 41) que “a ideia de escrita surgiu ainda na Pré-História, pois, desde o período neolítico e durante milênios, o homem praticou sistemas de contabilidade utilizando símbolos numéricos que serviam de auxilio na administração do templo e do palácio”.

Ainda sob esse aspecto, não poderemos deixar de mencionar a importância da escrita cuneiforme, criada pelos sumérios; é uma das mais antigas do mundo, aparecendo aproximadamente na época dos hieróglifos. A origem da palavra cuneiforme vem do latim cuneus, que significa canto; ou seja, escrita cuneiforme é a escrita em cantos. Conforme afirma Pozzer, a escrita cuneiforme

é o resultado da incisão de um estilete, impressa na argila mole, com três dimensões (altura, largura e profundidade). A escrita cuneiforme foi utilizada para gravar em paredes de rochedos, corpos de estátuas e grandes monumentos, sendo sempre as inscrições um decalque do texto escrito no tablete de argila. Lê-se um texto em escrita cuneiforme da esquerda para a direita e de cima para baixo, como em português. [...] O tablete de argila possui, em geral, 10cm (a dimensão da palma da mão), mas pode variar de 3cm a mais de 50cm (Pozzer, 1998, p. 41).

O sumério está nos registros como a língua mais antiga da Mesopotâmia, de acordo com Sirugi (s. d.), disponível em http://www.infoescola.com/civilizacoes-antigas/escrita-cuneiforme/: "os sumérios utilizavam a argila para escrever, e quando queriam que seus registros fossem permanentes, as tabuletas cuneiformes eram colocadas em um forno, ou poderiam ser reaproveitadas quando seus registros não fossem tão importantes que precisariam ser lembrados sempre".

A escrita cuneiforme possuía mais de 2.000 sinais; seu uso era de enorme dificuldade. Consta nos registros que seu principal uso foi na área da contabilidade e da administração, pois facilitava o registro de bens, marcação de propriedade, cálculos e transações comerciais.

Com o tempo, a escrita cuneiforme acabou sendo adotada por outros povos; houve época em que todos os Estados da Mesopotâmia utilizavam esse tipo de escrita para se comunicar, trabalhar e até mesmo gravar seus pensamentos.

Descrição: Escrita cuneiforme, de origem Suméria, encontrada no Iraque. Foto: Fedor Selivanov / Shutterstock.com
Figura 1: Escrita cuneiforme, de origem suméria, encontrada no Iraque
Fonte: Fedor Selivanov/Shutterstock.com. Disponível em: http://www.infoescola.com/civilizacoes-antigas/escrita-cuneiforme/.
Acesso: 10 maio 2016.

Análise tagmênica: técnica de decodificação/deciframento

A decodificação está presente desde a sociedade ancestral e se apresentou de forma mnemônica e imagética ao homem de Neanderthal e aos Homo sapiens sapiens que liam as pinturas rupestres e as fissuras que eram feitas nos ossos, os incas que liam os nós de quipo, os polinésios que decodificam informações pelos registros em cordas. Fisher (2006, p. 14) conceitua a escrita como “a sequência de símbolos padronizados (caracteres, sinais ou componentes de sinais) com a finalidade de reproduzir geralmente a fala e o pensamento humano”. Concluindo esse conceito, o autor diz que esta é uma definição limitada e apresenta três critérios que satisfazem esse conceito de escrita: ter a comunicação por propósito, fundamentar-se em sinais gráficos executados sobre espaço durável ou eletrônico e relacioná-lo “convencionalmente ao discurso articulado”.

Existem relatos das mais diversas formas de decodificação desde a Antiguidade clássica; no entanto, a escrita completa tardou a fixar-se. Os pictogramas (representações de objetos e conceitos traduzidos em uma forma gráfica simplificada) converteram-se em representações padronizadas; em seguida os escribas sumérios passaram a sistematizar sons e símbolos, indicando o nascimento de um sistema de escrita. Surgia a leitura, convencionada e intencional, a compreensão de um sinal pelo seu valor sonoro. A escrita não está mais restrita à indicação de um objeto por meio de uma palavra, mas a um seguimento lógico de sons.

Quando nos deparamos com línguas sobre as quais pouco ou nada se sabe, no que diz respeito ao vocabulário, à gramática ou a que família pertence, estamos diante de um mistério que precisa ser decifrado. Para a solução de problemas como esse, conheceremos uma técnica de análise, conhecida como Tagmênica, proposta na década de 1940 por Kenneth Pike com a finalidade de estudar as línguas ameríndias. Essa técnica postula que todas as línguas, inclusive aquelas que ainda não são conhecidas, têm características universais, como a presença de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas que obedecem a certas leis gerais.

A metodologia empregada nessa técnica funciona da seguinte forma: o primeiro passo é a gravação de amostras de fala; em seguida, analisa-se o material (nesse momento utiliza-se o recurso de softwares apropriados). Com a comparação, é possível identificar os fonemas e suas variantes (alofones). O passo seguinte é buscar a dedução da estrutura silábica da língua. Essa técnica aponta que existem dois tipos de classes de palavras que tendem a se repetir num ato de fala: as gramaticais, como artigos, pronomes, preposições etc., e as palavras tema.

O próximo passo é o reconhecimento das estruturas sintáticas, determinando o limite das frases e procurando descobrir como elas se combinam. Por fim, a semântica do texto; nesse momento os pesquisadores interagem de diversas formas com os informantes, normalmente apontando os elementos.

Descrição: http://images.clarin.com/rn/literatura/Voynich_CLAIMA20140307_0119_14.jpg
Fonte: Disponível em: http://www.revistaenie.clarin.com/literatura/Comienzan-descifrar-libro-misterioso_0_1097290545.html.

Relação sujeito-escritura

Neste ponto nos debruçaremos sobre a questão da identidade de um povo, de uma língua ou de uma cultura. A identidade está sendo vista, nos discursos midiáticos, sob um ideal de “pureza”, em discursos que relevam a importância da sua preservação e legitimação de suas diferenças locais. Em contrapartida, surgem discursos que enaltecem a globalização e a integração entre pessoas e países do mundo todo.

Nesse contexto antagônico, alguns escritores encontraram caminho para desenvolver seus escritos em outras línguas; é o caso de Jacques Derrida, que relata sua experiência em sua obra Le monolinguisme de l'autre (1996).

Judeu de origem árabe, franco-magrebino, tendo nascido e vivido na Argélia ainda colônia francesa, o francês terá sido para Derrida a língua (a única) do acontecimento da escritura, a língua que lhe permitira (ao interditar-lhe a língua árabe) confessar a si mesmo (e aos outros) sua paixão "estranha e tempestuosa", seu amor incondicional a "um idioma francês" (Derrida, 2004, p. 25).

Entram nesse questionamento, nessa relação sujeito-escritura, perguntas como: em que língua escrever? Na língua materna ou na língua que o acolheu?, pois a tentativa de dizer algo só aconteceria a partir do momento em que o outro recebesse a mensagem. Ou a tradução seria a melhor forma de comunicação?

Considerando o a pluralidade existente no interior de uma língua, entre outros aspectos (como a confusão entre dialetos/língua/idioma) que transcendem as fronteiras, não deixam o sujeito em situação confortável de traduzir o intraduzível. Partindo dessa relação, começamos a compreender que os aspectos que relacionam tradução/decodificação/deciframento vão além dos conhecimentos lexicais e de vocabulário.

Deciframento e decodificação – ensino das línguas estrangeiras no Brasil

A aprendizagem de uma língua estrangeira, juntamente com a língua materna, é um direito de todo cidadão, conforme expresso na Lei de Diretrizes e Bases e na Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, publicada pelo Centro Internacional Escarré para Minorias Étnicas e Nações (Ciemen) e pelo Pen Club Internacional (Brasil, 1998, p. 15).

Sempre ouvimos discursos do senso comum sobre a função do conhecimento da língua estrangeira; algumas pessoas afirmam que existe necessidade de se aprender a língua inglesa devido à globalização, por ser a língua vinculada à tecnologia, outros defendem que se deve aprender uma língua estrangeira para ter mais oportunidades no mercado de trabalho, entre tantos outros discursos relacionados. Nessas falas percebemos que há certa repetição de enunciados sobre as línguas que fazem perpetuar o sentido dessa massa de coisas ditas.

Até as primeiras décadas do século XX, tinha mais prestígio quem conhecia as línguas clássicas, como o latim, do que quem conhecia línguas estrangeiras. De acordo com Uphoff (2008, p. 2), nesse período “os alunos estudavam decorando regras gramaticais e listas de vocabulário, assim adquirindo conhecimentos teóricos sobre o sistema linguístico do inglês”.

Nesse período, que não se difere muito do que acontece nas salas de aula atualmente, os alunos aprendiam a língua estrangeira pela identificação e interpretação dos sinais linguísticos de uma escrita desconhecida, decodificando os sinais. Ainda segundo Uphoff (2008), as aulas de língua estrangeira eram dadas na língua materna e o enfoque estava direcionado à habilidade da escrita.

A metodologia utilizada no ensino da língua estrangeira já era alvo de crítica naquela época. Segundo Uphoff (2008, p. 2), “reivindicava-se uma reformulação total do ensino das línguas estrangeiras modernas, a começar pelo emprego imediato e direto do idioma-alvo em sala de aula, em vez de usar predominantemente a língua materno”.

No fim da década de 1970, jovens linguistas trouxeram para o Brasil o Método Comunicativo.

Como o nome já sugere, o método visa o desenvolvimento da competência comunicativa na língua estrangeira, ou seja, a capacidade do aluno de interagir em situações reais de comunicação, fazendo uso do idioma-alvo. Na sua fase inicial, o método enfatizava a comunicação oral em situações da vida cotidiana, que os alunos encenavam em sala de aula (Uphoff, 2008, p. 7).

Além da gramática e do léxico, existem outros elementos essenciais à compreensão de uma língua; é relevante mencionar que ela dispõe de outros recursos que são fundamentais para que a tradução correta seja eficiente.

O uso de termos mais ou menos abstratos não é função de capacidades intelectuais, mas de interesses desigualmente marcados e detalhados de cada sociedade particular, dentro da sociedade nacional (Lévi-Strauss, 1976, p. 20).

Com isso, começamos a compreender que para decodificar, decifrar, traduzir o sistema de signos linguísticos de uma língua estrangeira, devemos entender que existem outros elementos além da gramática e do léxico da língua. Ainda mencionando Lévi-Strauss (1976): “em todas as línguas, aliás, o discurso e a sintaxe fornecem os recursos indispensáveis para suprir as lacunas do vocabulário”. Para uma tradução completa e eficiente se faz necessária uma inserção na cultura da língua para apreensão desses sentidos “mais ou menos abstratos”.

Tradutore: como traduzir e compreender textos em língua vernácula e estrangeira?

Antes de concluirmos esta reflexão remetente à decodificação e ao deciframento, gostaria de expor o princípio de Bakhtin (2003, p. 11) de exotopia, em que ele diz que a consciência do outro dá acabamento à imagem externa da obra estética, deixando claro que o desfecho do personagem é externo à obra, faz parte de um processo de tradução/compreensão do leitor que completa o texto. Bakhtin apresenta a figura do autor-criador como integrante do objeto estético.

Longe de oferecer um método ou uma técnica que indique a forma “correta” de ensinar ou compreender a tradução, nossa proposta seria de pensar que tradutore não está exclusivamente vinculado ao entendimento de uma língua estrangeira, mas ao aprofundamento de todo e qualquer texto.

É importante que o sujeito/aprendiz da língua migre da condição de passivo para ativo e se torne autor do seu aprendizado. Nesse caso, a função do professor, como mediador desse conhecimento, será buscar formas para a emancipação do aluno. Formas que podem ser as mais variadas, como textos adicionais, matérias jornalísticas, com temas e assuntos que sejam de interesse dele, fugindo um pouco da proposta que o material didático propõe.

Muito se ouve que os professores de língua se limitam a ensinar apenas a gramática, colocam-na em um pedestal e acreditam que esse é o único caminho para um aprendizado eficiente da língua. Cecília Meireles escreveu uma crônica em que descreve sua ansiedade por aprender inglês para poder ler os poemas ingleses, mas entrou em um curso para aprender a língua e ficou decepcionada porque as aulas só eram relacionadas ao verbo to be.

Qualquer professor de língua (materna ou estrangeira) deve ter o cuidado de perceber que a língua é uma atividade interativa e supõe outros elementos além da gramática. Segundo Irandé Antunes (2007), “uma língua, além de uma gramática, tem também um léxico, quer dizer, um conjunto relativamente extenso de palavras, à disposição dos falantes, as quais constituem as unidades de base com que construímos o sentido de nossos enunciados”.

Referências

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BIZZOCCHI, Aldo. Desvendando a caixa-preta. Revista Língua, São Paulo, ano 9, nº 104, p. 18-19, jun. 2014.

CAMARA, Gabriela Cabezón. Comienzan a descifrar el libro más misterioso. Disponível em: http://www.revistaenie.clarin.com/literatura/Comienzan-descifrar-libro-misterioso_0_1097290545.html. Acesso em 31 maio 2016.

COSTA, Renata Dariva. A escrita além dos cuneiformes. Disponível em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador/cinco/1renata.pdf. Acesso em: 10 maio 2016.

DERRIDA, Jacques. Du mot à la vie: un dialogue entre Jacques Derrida et Hélène Cixous. Magazine Littéraire, n° 430, p. 22 -29, avril 2004.

FISCHER, Steven Roger. A testemunha imortal. In: FISCHER, Steven Roger. História da leitura. Trad. Cláudia Freire. São Paulo: Ed. UNESP, 2006. p. 9-40.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Trad. Maria Celeste da Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. 2ª ed. São Paulo: Nacional, 1976.

POZZER, Kátia Maria Paim. A escrita cuneiforme no antigo Oriente Próximo: origens e

desenvolvimento. In: BAKOS, Margaret; POZZER, Kátia Maria Paim (Orgs.). III jornada de estudos do Oriente Antigo: línguas, escritas e imaginários. Porto Alegre: Edipucrs, 1998. Disponível em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador/cinco/1renata.pdf. Acesso em: 10 maio 2016.

SELIVANOV, Fedor. Escrita cuneiforme. Disponível em: http://www.infoescola.com/civilizacoes-antigas/escrita-cuneiforme/. Acesso em: 10 maio 2016.

SIRUGI, Fernando. Escrita cuneiforme. Disponível em: http://www.infoescola.com/civilizacoes-antigas/escrita-cuneiforme/. Acesso em 10 maio 2016.

UPHOFF, Dörthe. A história dos métodos de ensino de Inglês no Brasil. In: BOLOGNINI, Carmen Zink. A língua inglesa na escola. Discurso e ensino. Campinas: Mercado de Letras, 2008, p. 9-15. Disponível em http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/143910/mod_resource/content/1/Uphoff%202008.pdf. Acesso em 10 maio 2016.

Publicado em 05 de fevereiro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

LINS, Lívia Carvalho Teixeira. Deciframento, decodificação e Tradutore – a escrita e sua compreensão. Revista Educação Pública, v. 19, nº 3, 5 de fevereiro de 2019.

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