Educação para liberdade: a utopia de uma sociedade humanizada

Marcela Eringe Mafort

Mestre em Ensino (UFF), professora da rede pública estadual de Minas Gerais

Aníbal da Silva Cantalice

Mestrando em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPI)

Jacqueline de Souza Gomes

Professora universitária (DCH/UFF)

Durante a evolução humana e a criação de grandes sociedades, o homem criou isolamento artificial em relação a outras espécies e ao ambiente que o circunda. Esse pensamento foi capaz de criar pequenas revoluções locais que acabaram por modificar o ambiente ao seu redor; dessas revoluções, a mais conhecida foi a Revolução Industrial, por ter sido capaz de automatizar diversas atividades e gerar insumos com maior velocidade (Sousa; Barbosa; Costa, 2015). Essa revolução é tida como um marco social do avanço industrial, contudo representa também o ponto de partida para o uso desenfreado de recursos naturais.

A visão de subserviência do ambiente e dos seus recursos naturais diante do consumo humano ainda existe em diversas sociedades e grupos espalhados pelo globo, muitas vezes intuídas pelo discurso capitalista, acaba por impactar severamente a biodiversidade local (Oliveira, 2015), levando a uma percepção de que os recursos naturais são ilimitados ou existentes apenas para atender as demandas humanas. Atualmente esse pensamento vem sendo desconstruído (Ferreira et al., 2012) por problemas ambientais (aquecimento global, aumento de pragas, desaparecimento de espécies de uso comercial entre outros) que acabaram por disseminar um novo conceito, o de crise ambiental. A crise ambiental emerge em meados do século XX, demonstrando a possibilidade efetiva da destruição das condições de vida, uma vez que a extração de recursos ou a geração de dejetos é maior do que a capacidade do ecossistema para reduzi-los ou reciclá-los, causando uma sobrecapacidade de carga no planeta (Foladori, 2001).

A crise ambiental é oriunda da segregação instituída durante séculos pelo homem ao ambiente e agravada pelo advento do capitalismo. Atualmente os recursos naturais em sua maioria são extraídos, beneficiados e geram lucros a uma pequena parcela da população; os efeitos são distribuídos a todos da sociedade, levando aqueles que não têm aporte financeiro adequado a sofrer mais com os aspectos da crise ambiental (Deluiz e Novicki, 2004). Na atual conjuntura de criação de uma sociedade mais “justa”, questionamentos sobre existência e manutenção do estilo de vida atual vêm sendo postos em xeque por pesquisadores, estudiosos ambientais e sociais.

Separar os avanços tecnológicos, econômicos e sociais dos avanços ambientais é continuar insistindo em um meio de produção fadado ao fracasso. Sendo assim, precisamos explicitar, compreender e questionar a postura atual da sociedade a fim de construir pontes para um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente adequado. Para isso, entender o conceito de desigualdade ambiental é de suma importância; ele deriva das diferentes formas de exposição dos grupos humanos aos fatores ambientais (comotipos de solo, água, áreas verdes etc.) e as situações de risco (inundações, desmoronamentos, poluição, contaminações etc.) provenientes das relações de poder que proporcionam a desigualdade social (Freitas, 2014; Layrargues, 2009). O termo “desigualdade ambiental”, segundo Layrargues (2009), cunhou-se em paralelo ao conceito de justiça social, com a definição de exposição diferenciada de grupos sociais a amenidades e situações de risco ambiental. Existindo uma relação direta entre baixa condição socioeconômica e alta exposição ao risco ambiental.

Desigualdades sociais podem ser abordadas e repensadas por meio das relações de poder e formas de controle social discutidas por Foucault em Vigiar e Punir (2001). A institucionalização de penalização como meio de coerção, suplício e disciplina teve início com punições físicas brutais que se transformaram ao longo do tempo em encarceramento devido ao clamor social. Os encarceramentos ou prisões funcionam como forma de moldar os corpos dos sujeitos; percebemos que essa disciplina ultrapassa os muros desses sistemas prisionais, alcançando toda a sociedade, tornando homens corpos domáveis e dóceis, submissos às regras e condutas das classes dominadoras.

Não são estranhas a existência e a relação dos corpos dóceis estudados por Foucault, construídos e manipulados com o poder do Estado, ainda serem atuais; afinal, as classes dominantes a cada geração dão continuidade ao processo de submissão e opressão das demais classes sociais. A única saída para limitar o limbo que envolve esses dois mundos é a criação de indivíduos críticos que “entendam” que as desigualdades sociais e ambientais estão intimamente ligadas e que a resolução desse cenário requer uma abordagem socioambiental.

A educação como instrumento de crítica e reflexão

O equilíbrio socioeconômico e ambiental é o grande desafio da sociedade moderna. O modelo econômico, educacional, social, entre outros, vai depender exclusivamente das “transgressões” das relações de poder e da criação de um sujeito crítico e ativo. Questionar o sistema e suas atitudes perante o meio faz com que a domesticação dos corpos, pensamentos e ações liberem as amarras sociais do pensar, desconstruindo a ideologia de classe dominante na busca de soluções socioambientais e econômicas.

Ideologia seria o conjunto das ideias produzidas pela classe social dominante, ideias essas que são disseminadas socialmente como expressões da realidade social completa e abrangente, e não mutilada por um ponto de vista parcial. Mas como o interesse básico dessa classe é manter sua posição de domínio, essas ideias são apresentadas de modo a passar uma visão de mundo que mostre a divisão de classes como um fato natural e necessário, sendo que as funções de coordenação do processo de produção podem ser exercidas por qualquer um: toda pessoa pode ser ou vir a ser dona dos meios de produção, bastando apenas que trabalhe para alcançar tal posição. Essa visão mascara o fato de que o operário, apesar de teoricamente poder chegar a ser patrão, na prática jamais passará de operário (Gallo, 2009, p. 23).

Uma das maneiras de libertar o homem e permitir que ele seja dono de si é por meio da educação. Quando falamos em educação não nos referimos ao mero ato de transmitir o conhecimento, mas da educação como um olhar individualizado, possibilitando ao sujeito a capacidade de ser crítico. Em Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade,de Bell Hooks (2013), a educação é retratada como método de libertação e prática social humanista, que se opõe a modelos que menosprezam a comunidade “negra” local, por meio de experiência discente e docente da autora nos Estados Unidos da América.

Mesmo em um ambiente limitado, é retrato da sala de aula na atualidade. A sala de aula ainda se apresenta como um lugar rico em possibilidades para tornar o discente um cidadão crítico capaz de encarar a realidade vivenciada (Hooks, 2013). A transformação do corpo dócil de Foucault em um ser pensante, crítico e reflexivo requer mudanças dentro do ambiente escolar, valorizando a presença de cada discente e reconhecendo as várias formas de ensinar por meio de exemplos e experiências que reflitam o ambiente que o circunda, levantando os conhecimentos culturais e suas aplicações como instrumento de ação social e políticas públicas.

Para começar, o professor precisa valorizar de verdade a presença de cada um. Precisa reconhecer permanentemente que todos influenciam a dinâmica da sala de aula, que todos contribuem. Essas contribuições são recursos. Usadas de modo construtivo, elas promovem a capacidade de qualquer turma de criar uma comunidade aberta de aprendizado (Hooks, 2013, p. 18).

O ambiente escolar dever ser a “junção” de conteúdos teóricos e práticos focados em ações transformadoras, recuperando saberes locais e culturais, valorizando práticas socioambientais saudáveis (Filho et al., 2012; Kindel, 2012), tendo o professor como o início da transformação desse saber, tornando a educação libertadora, um catalisador das reflexões e ações transformadoras dos discentes (Hooks, 2013; Bonatto et al., 2012). A educação é um instrumento que, quando corretamente aplicada, abre as fronteiras do pensamento capaz de reagir ao sistema de políticas do Estado. O sujeito deve conhecer seus direitos e deveres, sabendo resistir, reivindicar e lutar por ações que visem à melhoria da sociedade e do ambiente como um todo.

A confluência de saberes para uma sociedade humanizada

O processo de ensino-aprendizado está diretamente relacionado ao estímulo e à curiosidade do discente (Pirrelli, 2008). Dentro do ambiente escolar, as aulas baseadas em repetições e memorizações são quase unânimes (Bonatto et al., 2012), tornando a aprendizagem mecanizada e monótona e não permitindo aos discentes a reflexão e a construção de suas visões de mundo e realidade, influenciando diretamente sua formação cidadã.

Em outras palavras, a criança, em sua formação, recebe toda uma carga cultural já pronta, estruturada, na qual ela deve se inserir. A criança não é levada a construir o mundo, a perceber-se como sujeito do processo, mas sim a se adaptar a um mundo já construído, a se aprofundar em um ideário estruturado que tudo explica, não deixando margem à dúvida e à curiosidade. Para uma criança que não tem contato com outras ideias, tal ideário aparece como a ideia, como a verdade sobre o mundo e sobre a sociedade, não dando margem a críticas nem a recusas. Desse modo, a grande maioria das pessoas é levada a participar de uma ideologia, a comungar com ela, sem, no entanto, ter parte alguma com sua criação (Gallo, 2009, p. 33).

Na contramão das aulas rígidas e engessadas, a utilização de ambientes não formais de ensino é observada como meio de fuga ao sistema tradicional de ensino. Praças, quintais e regiões próximas às escolas passam a ser utilizados como lugares passíveis de compreensão dos alunos ao ambiente que os circunda. A obra A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, de Morin (2014), destaca que a educação, além de favorecer o estímulo da inteligência geral, deve exercitar a dúvida, a fim de promover indivíduos que repensem a sociedade e as relações com o mundo. Além da falta de aporte financeiro das instituições governamentais – de acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), somente 6,2% do Produto Interno Bruto (PIB) são revertidos para a educação (Machado et al., 2018) –, a forma atual de ensino apresenta excessiva fragmentação dos conteúdos, que são subdivididos entre as grandes áreas, além de professores que promovem apenas a transmissão do saber.

A fragmentação mostrou-se tão intensa que, segundo Tozoni-Reis (2012), o conhecimento semeado nas escolas torna o sujeito um objeto de ação parcial, transformando-o em um homem dividido, alienado e desumanizado. Isso evidencia a necessidade da desconstrução desse modelo de ensino e a necessidade de formas de superar a fragmentação do saber. Diversas abordagens foram propostas ao longo dos tempos, como a multidisciplinar, a transdisciplinar e a interdisciplinar (Lopes et al., 2017). Dada a importância do papel do professor na educação voltada para a responsabilidade social, a mudança e a qualidade do ensino perpassam o investimento na formação inicial e continuada. A eclosão dessas novas demandas, que implicam uma postura dinâmica, responsável, crítica e reflexiva por parte dos professores, exige deles uma (re)estruturação de seus conhecimentos, devendo sua formação ir além de técnicas de transmissão de conteúdos, buscando a inserção de sua identidade como sujeito capaz de articular saberes e promover atitudes problematizadoras pautadas em críticas e reflexões no ambiente escolar.

Toda essa mudança é necessária para “construir” uma aprendizagem que englobe as individualidades de cada interlocutor na sociedade, sendo assim capaz de criar condições de preservar a diversidade de conhecimentos, culturas e peculiaridades de cada região. A utilização do ambiente escolar como espaço que promova o pensamento libertador se torna uma estratégia para que os discentes possam refletir sobre suas ações (Miranda; Silva, 2016). A melhor forma de transgredir as “amarras” sociais é por meio de um pensamento reflexivo e crítico, possibilitando humanizar o saber.

O ambiente de ensino se mostra um lugar ideal para trocas de experiências e diálogos dos conhecimentos adquiridos por vivência se materializando em conjuntos de saberes, regras, valores, proibições, crenças e ideias que permitam aos indivíduos serem cientes quanto à diversidade cultural na qual estão inseridos, fazendo com que ela flua junto com o conhecimento acadêmico, melhorando o estilo de vida local (Batista, 2015). Essa união de saberes é tida como uma das melhores maneiras de evitar que a população seja vítima da educação tradicional e do poder econômico que gera desigualdades sociais e ambientais, uma vez que a metodologia de ensino atual já se mostrou frágil e ultrapassada na resolução desse problema.

Propostas pedagógicas centradas no diálogo entre os diversos saberes devem ser criadas em cada unidade escolar de forma individual e voltadas para a realidade local. Quando propomos essa criação individual, não almejamos que todo o conteúdo escolar seja aplicado dentro dessa metodologia; por mais que seja o ideal, esse conceito ainda é utópico para a realidade brasileira de ensino. Contudo, utilizar ambientes locais para desenvolver projetos escolares de preservação de matas ciliares, cuidados de contaminação de doenças provenientes da má adequação de resíduos sólidos ou falta de saneamento básico nas comunidades são estratégias que visam à formação do cidadão crítico, capaz de formular ações para a melhoria do local onde vive.

Quando educamos sujeitos capazes de criticar a realidade de forma racional e embasada em conhecimento adquirido dentro e fora do ambiente escolar, damos a oportunidade ao discente de auxiliar no desenvolvimento local (Batista, 2015), demonstrando à sociedade o verdadeiro papel do conhecimento, sendo usado dentro do ambiente social, de forma não acumulativa e com finalidade de aplicá-lo à comunidade. Além de gerar benefícios para a sociedade, tal conduta corrobora a necessidade de manter e incentivar os discentes a permanecer “agregados” dentro dessa estrutura escolar reflexiva e dinâmica e motivados a cobrar melhorias do ambiente escolar às instituições governamentais, pois se sentem confiantes e reconhecem que aprender é algo que ultrapassa os muros e barreiras da escola.

Aprender não significa somente fixar na memória nem dar expressão verbal e própria ao que se fixou na memória. Desde que a escola e a vida não mais se distinguem, aprender importará sempre em uma modificação da conduta humana, na aquisição de alguma coisa que reaja sobre a vida e, de algum modo, lhe enriqueça e aperfeiçoe o sentido (Teixeira, 2000, p. 60).

Uma sociedade que transforma o conceito de aprender e conhecimento em sapiência enxerga o mundo por uma postura crítica e reflexiva, permitindo que a sociedade perceba que a mudança começa de dentro para fora, da sua casa para o seu bairro e assim sucessivamente. Com sapiência e pensamento libertador, podemos transgredir as relações de poder e reivindicar uma sociedade mais justa e humanitária (Barbosa; Batista, 2017), com menos desigualdades socioambientais. Podemos pensar em um desenvolvimento sustentável e equitativamente justo em que nosso ambiente seja preservado e o conhecimento seja livre e libertador a todas as classes.

Sintetizando palavras...

Por mais que pareça dificultoso conciliar todos os afazeres didáticos obrigatórios indicados pelas diretrizes de ensino, precisamos aos poucos ir agregando experiências de diálogo e inclusão das vivências sociais no âmago das unidades escolares. Em um país onde majoritariamente a população se encontra à mercê da classe dominante, a educação e a postura crítica são maneiras de retirar a venda imposta pelos grandes e lutar por uma sociedade justa, desconstruindo o homem/corpo dócil e construindo o homem pensante e transformador.

A educação libertadora permite ultrapassar essa ideologia de classe e mudar a forma como a sociedade se relaciona com o mundo. Humaniza o saber, dando espaço ao diálogo, e transforma o acúmulo de conhecimentos em sapiência. Forma cidadãos críticos e reflexivos, capazes de opinar e decidir o destino humano, assim como promover a diminuição das desigualdades sociais e ambientais.

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Publicado em 03 de dezembro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

MAFORT, Marcela Eringe; CANTALICE, Aníbal da Silva; GOMES, Jacqueline de Souza. Educação para liberdade: a utopia de uma sociedade humanizada. Revista Educação Pública, v. 19, nº 32, 3 de dezembro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/32/educacao-para-liberdade-a-utopia-de-uma-sociedade-humanizada

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