Um lugar para as muitas coisas de Clarice

Hugo Maddalena Junior

Graduando em Letras (UFF/Cederj)

Vamos criar um lugar onde se possa guardar as muitas coisas de Clarice.

Vamos inventar uma paragem, um destino final de percurso imaginário, no qual possamos pernoitar, refazendo-nos do nosso afã de alcançar o significado derradeiro de cada coisa.

Vamos povoá-lo com os muitos bichos, jardins, máquinas e coisas retiradas do seu discurso.

Vamos voltar o nosso olhar para dentro de nós mesmos, sem, contudo, retirá-lo das coisas que nos cercam e sem, contudo, deixarmos escapar a vitalidade do instante-já, que emerge a cada curva do caminho.

Vamos povoar o universo do nosso discurso com as nossas dúvidas e múltiplas indagações, ao invés de nos propormos respostas prontas para tudo aquilo que desconhecemos.

Vamos admitir a nossa própria falta de zelo diante do próprio destino, a nossa própria falta de rumo que jaz nas entrelinhas de um discurso jamais escrito ou concatenado, que circula por entre as consciências acesas.

Vamos criar um lugar para Clarice nos nossos corações, onde o amor que nutrimos por algo seja o amor que nutrimos por alguém cuja existência desfraldada em uma poética de ruptura desconstruiu a própria dor.

Vamos perseguir o instante que é agora e que nos conduz incontinente à revelação consagradora de tudo aquilo que importa.

Vamos despertar entre os fachos de luz da própria consciência revigorada pelo jorro incessante de vida, que finalmente tomou as rédeas do discurso e impregnou tudo com o seu sopro.

Vamos regenerar todos os nossos tecidos, através da contemplação dos próprios esforços para alcançar a fugacidade do instante que encerra verdades mis em seu íntimo.

Vamos construir uma estética de ruptura com a morte que seja digna de seguir os passos de Clarice pelo mundo e que inscreva o nosso discurso em uma dimensão inteiramente nova, que é pura estratégia de confronto.

Vamos construir uma estética de ruptura com a dor e com o penar que transbordam as nossas existências, para enfim podermos olhar nos olhos das coisas que estão diante de nós.

Vamos desconstruir o Olimpo para lá situarmos Clarice, na sua alvíssima condição de rainha desse tabuleiro que é a nossa própria literatura.

Vamos nos conceder enfim as meritórias alvíssaras, por termos finalmente redescoberto a trilha que precisa ser seguida para que se alcance a refulgência do ser em toda a sua magnitude.

Vamos chegar ao silêncio de uma revelação através do jorro incontido de palavras que fazem do seu discurso um meio de se chegar a algo que se situa depois da sensação.

Vamos traçar um esboço desse percurso rumo à própria felicidade que a beleza encerrada na sua prosa tão fluida nos proporciona.

Vamos ler cada página devorando todas as suas palavras, na ânsia tão impreterivelmente sôfrega que nos move e compele no sentido de alcançar desde sempre a magnitude do instante-já.

Vamos prestar reverência à musa inspiradora dos nossos tímidos passos, cuja inspiração fecunda e copiosa nos arrebatou das trevas dos próprios conteúdos inconscientes, no interior dos quais submergíamos as próprias esperanças de uma alforria.

Vamos construir uma paisagem repleta de vida a partir do seu retrato, dotando o nosso discurso de uma vida pulsante que reconduz a ideia aos seus propósitos originais.

Vamos mergulhar no próprio âmago, desvencilhando-nos das amarras que tolhem os nossos movimentos e os circunscrevem ao âmbito de golpes desgraciosos e patadas.

Vamos desenhar um lugar qualquer no universo das nossas conjecturas, que confira ao discurso clariciano pertinência à dimensão espaço-tempo.

Vamos nos aprofundar na busca de nós mesmos, lançando-nos em um itinerário vertiginoso para dentro dessa quarta dimensão clariciana que é a palavra.

Vamos manifestar vitalidade regeneradora nas imagens tecidas pelo nosso discurso, revestindo-o daquele vigor metafísico fundamental que é incontrovertível, irrefreável, inenarrável.

Vamos chegar ao clímax do nosso discurso, libertando-nos das próprias palavras que, em vão, arrumávamos como se fossem pérolas ou joias.

Vamos reconduzir as palavras à sua dimensão mais restrita de coisas empregadas pelo discurso para transportar o sujeito-leitor rumo à epifania.

Vamos assignar a Clarice o lugar de uma estrela de brilho maior e quase solitária na constelação de ícones que compõem o firmamento da nossa literatura.

Vamos libertar o indivíduo do jugo terrível que lhe é infligido de forma dura e impiedosa pela sociedade fundada na exploração do homem pelo homem.

Vamos desconstruir a opressão, que está presente na base de todos os relacionamentos mantidos em sociedade.

Vamos destituir a desordem analfabética do “senhor de engenho” e das suas plantations, que subtraem o indivíduo de sua própria e inalienável liberdade, lançando-o em servidão permanente da qual não consegue se apartar.

Vamos construir uma outra história, que não seja esta, feita de opressão e de violência, que nos é imposta pelas armas de fogo dos exércitos perfilados, prontos para disparar.

Vamos construir uma estética libertária, que, à medida que transporta o nosso olhar pela infinidade de coisas que compõem o mundo, a nós permita de forma simultânea vir a conhecer o âmago do próprio ser.

Publicado em 10 de dezembro de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

MADDALENA Jr., Hugo. Um lugar para as muitas coisas de Clarice. Revista Educação Pública, v. 19, nº 33, 10 de dezembro de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/33/um-lugar-para-as-muitas-coisas-de-clarice

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