Arte-educação como ferramenta de conscientização patrimonial

Mara Lopes Côrtes

Graduanda em Arquitetura, Bolsista Iniciação Científica Funadesp (UNIC)

José Serafim Bertoloto

Doutor em Comunicação e Semiótica (Programa de Pós-Graduação em Ensino - UNIC/IFMT)

Ana Graciela Mendes F. da Fonseca Voltolini

Doutora em Comunicação (Programa de Pós-Graduação em Ensino - UNIC/IFMT)

Quando se trata da questão patrimonial, o Estado de Mato Grosso é um importante reduto de manifestações culturais, bens históricos e paisagens naturais com valor inestimável, que o caracteriza culturalmente e assegura a sua singularidade nos cenários nacional e mundial.

Entre os bens nacionais tombados figura o Centro Histórico de Cuiabá; é tombado o traçado urbano, que ainda guarda características originais do período colonial, e cerca de 400 edificações com grande relevância histórica. Cuiabá assumiu desde sua fundação grande relevância para o desenrolar da história da territorialidade e para a construção de uma identidade cultural local.

O processo de manutenção e salvaguarda patrimonial que a legislação de tombamento deveria garantir ao Centro de Histórico de Cuiabá, ao que parece, está longe de ser concretizada. Em uma pesquisa rápida, encontramos notícias sobre desabamentos ocorridos em períodos chuvosos, principalmente nos últimos quatro anos, sendo o mais emblemático o desabamento do casarão de “Bem-Bem”, em dezembro de 2017. Ao fazer um breve passeio pelas imediações da área tombada, é possível observar diversos casarões em processo de deterioração e, em alguns casos, em completo abandono.

As principais causas desse descaso e abandono com o Centro Histórico são, em grande parte, o distanciamento da população em relação â questão patrimonial e o pouco conhecimento acerca da temática. Falta consciência coletiva sobre a importância que esse bem tem para a cultura e a história da cidade.

Este artigo identifica a visão da população, a importância que esse espaço tem para a cidade e como ela se relaciona com esses bens, além de discutir o papel da arte-educação como ferramenta de construção de uma consciência patrimonial.

Material e métodos

O desenvolvimento deste trabalho se deu a partir de pesquisa bibliográfica referente a: história da cidade de Cuiabá, patrimônio cultural, arte-educação. Os dados foram obtidos em pesquisa de campo, em parceria com o grupo Cuiabá para Pessoas, na ocasião do trabalho de conclusão do curso de Arquitetura. As entrevistas permitiram obter informações de todos aqueles que usufruem do Centro Histórico de Cuiabá.

A pesquisa centrou-se em ouvir quatro grupos específicos: moradores, comerciantes, usuários diurnos e noturnos (público que frequenta a Praça da Mandioca). A primeira rodada de entrevistas, que ouviu moradores, comerciantes e os usuários diurnos, ocorreu entre julho e agosto de 2017; a segunda, com usuários noturnos, em fevereiro de 2018.

A construção legal do Centro Histórico como patrimônio

O tombamento é uma importante medida jurídica de preservação do patrimônio histórico material e imaterial, sendo definido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como “instrumento de reconhecimento e proteção do patrimônio cultural” (Iphan, s. d.). Conte ressalta que

o tombamento não traz apenas restrições aos proprietários de imóveis e usuários das cidades, como ás vezes se costuma pensar. O tombamento traz, também, benefícios econômicos, sociais e financeiros, contribuindo inclusive para o desenvolvimento das cidades (2005, p. 39).

Cuiabá tem origem no início do século XVIII, durante o processo de construção das novas vilas portuguesas, e ainda hoje mantém no seu Centro Histórico características de sua fundação. O processo de homologação de seu tombamento pelo Ministério da Cultura ocorreu em 4 de novembro de 1992. O processo havia sido iniciado no dia 1 de outubro de 1987, com o tombamento provisório.

A solicitação do tombamento foi a medida encontrada para frear a demolição das edificações históricas, intensificada a partir da década de 1950, desencadeada pelo processo de modernização da cidade. Acreditava-se que Cuiabá poderia ser considerada atrasada por não ter uma arquitetura condizente com a das cidades que estavam sendo construídas nas demais regiões do país.

O discurso do progresso engoliu praças, alguns edifícios públicos, residências e comércios, dando lugar a espaços modernos. Contudo, a derrocada da antiga arquitetura da Igreja Matriz, em 1968, provocou mobilização na sociedade intelectual de Cuiabá pela busca do tombamento das edificações que ainda não haviam sido destruídas.

O tombamento provisório abarcava a área do Centro até o Porto, incluindo o entorno da Igreja Nossa Senhora da Boa Morte. Entretanto, o corpo técnico enviado para avaliar o conjunto excluiu o entorno da igreja e a região do Porto, que posteriormente foi tombado pelo Estado.

A forma como ocorreu o processo de tombamento não proporcionou a participação e o envolvimento popular das diversas camadas sociais da cidade, cabendo a poucos – na maioria técnicos ou membros intelectuais da sociedade – tomar essa decisão. A falta de envolvimento popular e principalmente a falta de “tato” para lidar com uma população desprovida de conhecimento sobre o processo e sua finalidade, por parte dos responsáveis pelo tombamento, gerou distorção das finalidades e distanciamento da população em relação ao patrimônio histórico. O tombamento, que deveria ter caráter social e humano, tornou-se uma ação meramente legalista, abrindo um abismo gigantesco entre a população e os bens patrimoniais.

Resultados e discussão

Desde os tempos mais remotos, o homem utiliza a arte seja para comunicar, expressar e manifestar ou até mesmo ensinar. Rita Demarchi afirma que a “arte, em si mesma, é um conteúdo e também é uma ‘ferramenta’, um meio de aproximar e valorizar diferentes indivíduos, grupos e culturas” (2010, p. 3), assumindo um importante papel, seja na cultura como na educação. Devemos ressaltar que a “Arte-Educação contribui para a formação humana, podendo abrir caminhos e diferentes possibilidades ao ser humano” (Anjos; Tosta, 2010, p. 90) nos mais diversos campos do conhecimento.

As expressões artísticas são “bens patrimoniais que expressam e valorizam a identidade cultural dos indivíduos e grupos sociais” (Demarchi, 2010, p. 1). A sua utilização no processo de formação e o bom emprego fomentam “ações como o resgate das experiências, das raízes culturais e da memória, bem como o seu estudo e divulgação” (idem, p. 2). Com os esforços corretos, podem “ressignificar a própria experiência” do indivíduo “e a do outro” (idem, p. 3), tornando-se uma excelente ferramenta para a valorização da cultura e do patrimônio de uma cidade. Por possuir “caráter interdisciplinar, permite criar relações entre diferentes linguagens artísticas e também entre essas linguagens e tantas outras áreas” (idem, p. 3), inclusive tecer um diálogo harmônico com a Educação Patrimonial.

A arte-educação pode ser uma das chaves para a construção de uma consciência patrimonial e cultural, pois possibilita ao indivíduo “acessar, de maneira sensível, uma compreensão mais aprofundada do mundo, do outro e de nós mesmos” (Demarchi, 2010, p. 4), além da possibilidade de desenvolver uma maior percepção do significado e historicidade existente nos bens patrimoniais e no Centro Histórico. 

Em Cuiabá, o processo do tombamento ocorreu de forma arbitrária; não houve participação das diversas camadas da sociedade e as escolhas foram decididas apenas entre os técnicos da prefeitura e do Iphan (engenheiros, arquitetos), alguns membros da política e intelectuais.

Durante as entrevistas com os grupos específicos, procurou-se saber o que pensavam do tombamento, buscando identificar pontos que evidenciassem essa falta de informação e estabelecer possíveis medidas para a correção desse distanciamento.

Foi feita a seguinte pergunta aos entrevistados: “o que você pensa do tombamento e da preservação das edificações?”. Pelas respostas pode-se ver que grande parte dos entrevistados não está familiarizada com o assunto, havendo confusão com o termo tombamento. Alguns entrevistados traziam em seus discursos a ideia de retrocesso ou de empecilho. É espantoso que algumas pessoas citaram que não gostariam que houvesse o tombamento, existindo ainda aqueles preferem que tudo seja derrubado e reconstruído. Entretanto, a maior parte das respostas é positiva e mostra que, mesmo não tendo clareza sobre o que é realmente o tombamento, eles veem um lado bom da preservação.

Na pesquisa foram ouvidas pessoas de diversas classes sociais e níveis de escolaridade, o que deixa evidente que o problema pode estar na falta de Educação Patrimonial.

Quando a abordagem da pesquisa ocorreu com os moradores do Centro Histórico, alcançou-se outra dimensão na relação com o patrimônio. O diálogo possibilitou a identificação da amplitude do sentimento de pertencimento e identidade que essas pessoas possuem com o Centro. É muito mais que um local de residência; é um lar para eles. As relações humanas e sociais que a espacialidade possibilita é elemento fundamental nessa construção, indo ao encontro do que Raquel Rolnik afirma:

As relações que os indivíduos estabelecem entre si configuram-se espacialmente. São processos de subjetivação individual e coletiva, e não relações funcionais do tipo uso ou relações de uso: aqui lugar de morar; aqui lugar de trabalhar; aqui lugar de circular [...]. Para além delas existe todo o processo de significação, de percepção e construção dessa territorialidade (2015, p. 28).

O processo de educação deve partir da construção de um diálogo com a população que mostre a cada indivíduo a relação de pertencimento que cada um possui com a espacialidade, pelo resgate das memórias pessoais e coletiva. Somente após a conclusão dessa etapa é que seguirá o processo de educação patrimonial tradicional, pautado na importância histórico-cultural das edificações, bem como do lugar em sua totalidade.

Diante desse quadro, percebemos que a arte-educação pode ser uma ferramenta utilizada com possibilidade de sucesso e com impacto no processo de Educação Patrimonial, visto que as expressões artísticas são bens patrimoniais que expressam e valorizam a identidade cultural (Demarchi, 2010).

Considerações finais

É recorrente vermos notícias de edificações tombadas que desabaram parcial ou totalmente em Cuiabá, principalmente no período de chuva, assim como a violência e o abandono de casarões no Centro Histórico. Isso provoca o questionamento: ainda estamos distantes da real preservação patrimonial? E como preservar, se parte da população é levada a ver o processo de tombamento com algo burocrático e restritivo?

A principal resposta a essa investigação seria pensar em preservação patrimonial sem passar primeiro pela Educação Patrimonial e que a arte-educação pode ser a ferramenta chave nesse processo. 

A educação, a arte e a arte-educação podem ser chaves para a construção de consciência patrimonial e cultural, pois possibilitam que o indivíduo acesse o mundo de modo interconectado e sensível, vislumbrando as possibilidades criativas e críticas, além da possibilidade de desenvolver maior percepção do significado e da historicidade existentes nos bens patrimoniais e no Centro Histórico.

Referências

ANJOS, Cláudia Regina dos; TOSTA, Sandra Pereira. O ensino de arte: contextos contemporâneos, 2010. Disponível em:  http://www.fumec.br/revistas/paideia/article/view/1293. Acesso em: 20 dez. 2017.

CONTE, Claudio Quote; FREIRE, Marcus Vinícius De Lamonica (Orgs.). Centro Histórico de Cuiabá: patrimônio do Brasil. Cuiabá: Entrelinhas, 2005.

DEMARCHI, Rita de Cássia. Arte como conhecimento, patrimônio e identidade cultural, 2010. Disponível em: http://www.artedespertar.org.br/20anos/. Acesso em: 14 mar. 2018.

IPHAN. Bens Tombados. 2014. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126. Acesso em: 17 abr. 2018.

ROLNIK, Raquel. História urbana: história na cidade? Seminário de História Urbana. Salvador. Anais... Salvador: UFBA, 1990. p. 27-29.

Publicado em 09 de abril de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

CÔRTES, Mara Lopes; BERTOLOTO, José Serafim; VOLTOLINI, Ana Graciela Mendes F. da Fonseca. Arte-educação como ferramenta de conscientização patrimonial. Revista Educação Pública, v. 19, nº 7, 9 de abril de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/7/arte-educacao-como-ferramenta-de-conscientizacao-patrimonial

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