Onde está a interdisciplinaridade?

Raphael de Andrade Ribeiro

Mestrando no Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino (UFF)

Wendel Mattos Pompilho

Doutor em Bioquímica Agrícola UFV; docente do Departamento de Ciências Exatas, Biológicas e da Terra e do Programa de Pós-Graduação em Ensino (UFF)

Emiliana Torteloti Freitas

Mestra em Letras (UFJF)

Fernanda Rangel de Azevedo de Paula

Mestra em Geotecnia (UENF); coordenadora e docente em Engenharia Civil (UniRedentor)

Muriel Batista de Oliveira

Mestre em Engenharia Civil (UFRJ), coordenadora e docente em Engenharia Civil (UniRedentor)

Inicio este ensaio fazendo um convite para que se sente. Quero ter uma conversa com você sobre um assunto importante para ambos. Com este texto, pretendo deixá-lo inquieto, atordoado! Serei até arrogante em alguns momentos – peço desculpas antecipadamente, caso lhe ofenda; também vou dramatizar ao máximo e exaurir todas as possibilidades que tenho para que possamos refletir sobre a ausência da interdisciplinaridade no currículo escolar, na formação dos professores e na atuação dos docentes nas salas de aula. Esclareço antecipadamente que os pareceres aqui explanados são entendidos e sentidos em minha pele, talvez pela mesma situação que levou Jorge Larrossa (2003) a ensaiar O ensaio e a escrita acadêmica. Não há como não compreender as inquietações que fizeram com que o autor se manifestasse.

Usarei essa “escrita ensaiada” como pretexto para discutir esse tema. Por isso, enfatizo novamente, sente-se, pois nossa comunicação será intensa. Misturei algumas palavras para lhe provocar. Tudo que será dito aqui é consequência direta das minhas anotações para poder te levar a refletir sobre as experiências das salas de aula, principalmente das escolas públicas, brasileiras. Assim sendo, quero que saiba que tudo que aqui será exposto é de caráter intencional.

Peço licença a Tommy Wirkola, diretor do filme Onde está segunda?, para parafrasear seu título; afinal a pergunta para que busco resposta é “Onde está a Interdisciplinaridade?”. Não me considero um crítico da alta classe educacional ou acadêmica para fazer a transgressão das questões que estão ligadas a essa pergunta. Contudo, estando inserido em uma sala de aula, vejo que minha escrita possui relevância para poder desconstruir alguns – ou pretensiosamente, todos – os pensamentos que as pessoas ligadas à Educação consideram conceitos verdadeiros no que tange à prática da interdisciplinaridade.

Para causar a transgressão almejada, utilizarei três obras da literatura acadêmica a fim de organizar e estruturar os pensamentos expostos: Vigiar e Punir, escrita por Foucault (1987); A cabeça bem-feita, de Morin (2003), e a obra da autora Fazenda (1979), Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro. Esses textos serão parafraseados, comentados, citados de forma não convencional do ponto de vista acadêmico. A escrita deste ensaio é livre justamente para que a defesa do que considero verdade seja respeitada e te leve a repensar os argumentos que tecerei ao longo deste diálogo.

A ideia de interdisciplinaridade é vinculada às definições que estão além do que existe como autenticidade em termos de prática educacional. Essas definições são impostas como verídicas por percepções de pesquisadores que me atrevo a perguntar se lecionam ou já lecionaram em uma sala de aula da Educação Básica pública no Brasil. Esse segmento pode até ser entendido como uma repetição crítica que atravessa a Educação durante anos. Porém é preciso evidenciar que nossa ideia não é ensaiar um contexto histórico, mas defender nesta produção híbrida que a Interdisciplinaridade não existe de fato na nossa prática docente, pelo menos não como deveria, sobretudo quando observamos as ações dos professores na Educação Básica e em algumas situações, até na graduação; tais ações são semelhantes (para não dizer análogas) às práticas que Foucault descreve.

Para entender a ausência da interdisciplinaridade é preciso dialogar sobre ela. Por isso, Fazenda (1979) diz que a interdisciplinaridade seria uma representação que busca entrelaçar saberes de forma compartilhada. Gostaria de deixar claro que a autora explica o conceito de Interdisciplinaridade ancorada na visão de três autores. Essas definições são distintas e muito bem escritas, com termos acadêmicos que trazem grandeza àquilo que eles consideram verdade. Neste ponto do ensaio, trago a seguinte indagação: como pode a interdisciplinaridade receber diversas definições, se na prática ela não existe como deveria? Também é preciso esclarecer que me oponho à liberdade que Fazenda (1979) dá a terceiros para conceituar o que é e como é a Interdisciplinaridade (não entenda esta colocação como prepotência de minha parte, é apenas um ponto de vista que quis deixar em evidência). O que quero explanar é que a teoria está muito além das práticas docentes. Não serei exagerado a ponto de afirmar que a interdisciplinaridade é totalmente inexistente no campo educacional. Isso jamais! Mas defendo arduamente a ausência da interdisciplinaridade como realidade prática que coabita o campo em que atuo e convivo: as salas de aula.

Como já evidenciado, a autora citada traz em sua obra algumas vinculações de terceiros descrevendo a função da Interdisciplinaridade no campo da Educação, e a partir dessa visão tais autores a rotulam de forma soberba. Não existe esta ou aquela Interdisciplinaridade. Caso exista, é uma só! Como abordei acima, mediante o que teorizaram terceiros, Fazenda (1979) tenta afirmar qual a verdadeira função da Interdisciplinaridade e ainda associa-a a definições, afirmando que existe um ponto de partida para a existência da Interdisciplinaridade. Ponto de partida? Por isso, questiono-me novamente: será que os autores sobre os quais ela se debruçou já lecionaram em uma escola pública? Sinceramente, eu creio que não! Eles (os autores) falam de algo sem talvez tê-lo experimentado, vivenciado; parece que nunca sentiram na pele o que é lecionar em uma escola pública. E falam com arrogância, pois afirmam que o que dizem é uma verdade científica.

Falei em tantos momentos sobre as vinculações que Fazenda (1979) permitiu em sua obra que é preciso agora mostrar quais são. Afinal, ensaiar um tema e durante o ensaio parar não é o que será visto aqui. De antemão, digo que a citação é um pouco extensa, mas dá credibilidade para o que eu defendo como verdade.

Disciplina — Conjunto específico de conhecimentos com suas próprias características sobre o plano do ensino, da formação dos mecanismos, dos métodos, das matérias.

Multidisciplina — Justaposição de disciplinas diversas, desprovidas de relação aparente entre elas. Exemplo: Música + Matemática + História.

Pluridisciplina — Justaposição de disciplinas mais ou menos vizinhas nos domínios do conhecimento. Exemplo no domínio científico: Matemática + Física.

Interdisciplina — Interação existente entre duas ou mais disciplinas. Essa interação pode ir da simples comunicação de ideias à integração mútua dos conceitos diretores da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização referentes ao ensino e à pesquisa. Um grupo interdisciplinar compõe-se de pessoas que receberam sua formação em diferentes domínios do conhecimento (disciplinas) com seus métodos, conceitos, dados e termos próprios.

Transdisciplina — Resultado de uma axiomática comum a um conjunto de disciplinas (ex. Antropologia, considerada “a ciência do homem e de suas obras”, segundo a definição de Linton) (Fazenda, 1979, p. 54).

São tantas definições teóricas para um só conceito que chegam a entrelaçar nossos pensamentos. E, associado a essa questão de vínculos que se ligam à interdisciplinaridade, como é citado por Fazenda (1979), contrariamente vemos um abismo crescente que separa os alunos e os professores da prática interdisciplinar. Esse abismo é entendido quando Foucault (1987) fala sobre “o panoptismo”.

Para que seja possível entender a associação feita, vamos dar continuidade à escrita, mas agora pensando no modelo estrutural das unidades escolares contemporâneas. Elas são divididas lateralmente. É notório que essa ideia tem como base o conceito de sempre manter a ordem, pois fica fácil vigiar o aluno que sai mais vezes da sala de aula, que está no corredor; a sala da direção quase sempre é perto dos portões para saber quem entra, quando entra e quem sai e quando sai. Interessante não é? Não sei o porquê, mas me vejo descrevendo um presídio e não uma escola, um ambiente inserido na “Sociedade do Conhecimento”. Esse modelo contemporâneo “carcerário” – perdoem-me, quero dizer esse modelo contemporâneo escolar – evita a comunicação entre os alunos e ainda dá poder ao professor para controlá-los. E justamente nesse contexto eu novamente pergunto: onde está a interdisciplinaridade?

Vamos citar um modelo antigo de controle que existe nos dias atuais? Nos dias de avaliação, como as carteiras ficam? Enfileiradas. Os alunos se sentam sem poder olhar para o lado para coçar o pescoço ou relaxar a tensão da prova. O professor oportunamente se aproveita dessa aceitação dos alunos e diz com tom de voz alto e forte: “quem olhar para o lado vai tirar zero na prova!”. É possível haver alguma prática interdisciplinar em uma escola que adota esse método de controle? É claro que, ao ensaiarmos a forma de controle sobre os alunos, estamos abordando um controle tão subjetivo que passa despercebido aos olhos dos que são atingidos por ele.

Estrategicamente, a maioria das edificações escolares do território brasileiro (pelo menos as que eu pude ver até o dia de hoje) é alicerçada no modelo panóptico. Para entender esse modelo arquitetônico que me proponho a criticar, peço que Foucault conte-nos, mediante dois relatos o que é este modelo e qual sua verdadeira finalidade.

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente (Foucault, 1987, p. 223-224).

O efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores (Foucault, 1987, p. 224-225).

Peço desculpas mais uma vez por introduzir citações longas, mas elas precisam ser expostas para que todos entendam que não estou sendo dramático ou exagerado ao constatar que o modelo arquitetônico da escola contemporânea não visa a troca de conhecimento, o contato humano ou a troca de palavras (comunicação). Ele quer separar, disciplinar e punir caso alguém não se enquadre no modelo disciplinar. E aí lhes pergunto e me pergunto: onde está a interdisciplinaridade? Não se sabe onde ela está, mas certamente nesse modelo escolar com a ideia de separação e punição a Interdisciplinaridade nunca estará. Essa é minha certeza!

De fato, é impossível haver práticas Interdisciplinares em um sistema que tem todo o perfil para disciplinar o aluno. Gostaria de enfatizar as sansões normalizadoras descritas por Foucault que são reproduzidas nas escolas com o objetivo de promover punições por parte do professor contra o aluno ou então de alguém acima do professor contra o aluno ou contra o próprio professor, mostrando que a hierarquia existe para ser respeitada e os que a transgridem são oprimidos, violados e punidos.

Ensaiamos até agora num contexto que certamente causou inquietação. Não há dúvida disso. De um lado, o campo teórico afirma que as práticas interdisciplinares podem ser classificadas em diversas formas, possibilitando o entendimento de que há esbanjamento de práticas interdisciplinares nas escolas brasileiras. Mas, de forma contrária, a realidade desconstrói tais verdades ou teorias – eu já nem sei que nomes as definem –, mostrando a existência de um modelo que disciplina o aluno. Partindo desse entendimento, me atrevo a dizer que esse modelo o torna alienado, simplesmente voltado para ser mão de obra, destituído de qualquer senso de criticidade e de cidadania, praticamente um ser oco, ou melhor se encaixaria eu dizer fantoches dos que estão no topo da hierarquia. Ensaiamos, ensaiamos e eu gostaria de saber: onde está a interdisciplinaridade?

Chegamos agora a um ponto que deve ser ensaiado com precisão e muita cautela: a formação do professor que atua nas salas de aula da escola panóptica. De forma exagerada, me atrevo a ensaiar a generalização dos docentes que se graduaram mediante um currículo que não aborda a interdisciplinaridade. Pelo contrário, a grade curricular dos cursos de licenciatura é elaborada para que os acadêmicos entendam que o seu curso, a sua graduação é superior à dos outros. Por acaso você já viu a apresentação de um trabalho acadêmico? Posso dizer que é a reprodução do que é visto na Educação Básica. O aluno 1 diz sua parte, o aluno 2 fala a sua e, se o aluno 3 faltar, ninguém sabe explicar o conteúdo que lhe foi destinado. Acontece igualmente em algumas academias. Se não existe interdisciplinaridade entre os graduandos de um mesmo curso, será que eles quando se formarem serão capazes de promover ações que transgridem o modelo disciplinar? Tenha como verdade que, antes de debruçar sobre os conceitos de multidisciplinaridade e transdisciplinaridade mencionados por Morin (2003), devemos procurar tomar atitudes agressivas e começar a pensar onde esta a Interdisciplinaridade em nossas ações como educadores. Sair da zona de conforto e deixar de produzir o “mais do mesmo” não é fácil, mas é necessário e muito válido. Entende agora por que eu pedi para que se sentasse?! Não é fácil essa discussão. Estamos cansados, mas estamos quase no fim.

Em virtude dessa problemática, para considerar que um docente possa ser um praticante da interdisciplinaridade é preciso repensar sua formação para além do que é visto, praticado e sentido. É preciso que ele se imponha e desobedeça ao que é tido/reconhecido no campo teórico como necessário para ensinar o discente. É preciso que o docente aproprie-se de si mesmo, de sua personalidade que está ligada ao seu profissionalismo; assim, ele não se tornará um corpo pronto para receber a punição e reproduzi-la em outrem. Por esse viés, acredito que ele começará a pensar em uma resposta para o questionamento que foi abordado ao longo de todo o ensaio, que é a procura das ações interdisciplinares no meio educacional.

Então termino este ensaio crítico acreditando que a interdisciplinaridade será encontrada quando as atitudes epistemológicas que fogem ao conceito do tradicionalismo forem transgredidas e efetivadas na formação docente – e quando digo tradicional não é no sentido de serem antigas, mas no sentido de que “é mais do mesmo”.  

Referências

FAZENDA, I. C. A. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia? São Paulo: Loyola, 1979.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

LARROSA, J. O ensaio e a escrita acadêmica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 28, nº 2, p. 101-105, jul./dez. 2003. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/download/25643/14981. Acesso em: 2 jan. 2019.

MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

WIRKOLA, Tommy. Onde está segunda? (Whar happened to monday?). Produção de Philippe Rousselet e Raffaella de Laurentiis. Roteiro de Max Botkin. Bélgica, Estados Unidos, França e Reino Unido. Lançamento: 18 ago. 2017.

Publicado em 30 de abril de 2019

Como citar este artigo (ABNT)

RIBEIRO, Raphael de Andrade; POMPILHO, Wendel Mattos; FREITAS, Emiliana Tortelotti; PAULA, Fernanda Rangel de Azevedo; OLIVEIRA, Muriel Batista de. Onde está a interdisciplinaridade? Revista Educação Pública, v. 19, nº 8, 30 de abril de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/8/onde-esta-a-interdisciplinaridade

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