Levou-s’a Velida: considerações de Helder Macedo sobre a lírica trovadoresca na cantiga de D. Dinis
João Paulo da Silva Nascimento
Licenciando em Letras: Português-Literaturas (UFRJ)
Em “Uma cantiga de D. Dinis” (1996), o escritor português Helder Macedo inicia seu texto instituindo uma máxima que serve de base não somente à poesia portuguesa da Idade Média, mas também a outras instâncias da história literária. Em suas palavras, “A escrita de qualquer obra depende, em larga medida, do contexto social e cultural (...). Escrita e leitura têm, portanto, como referentes implícitos, códigos socioculturais”. Nesse sentido, na medida em que retoma pontos essenciais do texto publicado em Do cancioneiro de amigo (1996), em uma abordagem que reflete a teorização proposta por Macedo a respeito da cantiga Levou-s’a Velida, de D. Dinis, a presente proposta pretende não só estabelecer uma resenha do material como também enviesar uma perspectiva crítico-analítica.
Em um primeiro momento, convém ressaltar que Helder Macedo chama a atenção para o aspecto vitalício da literatura medieval portuguesa ao considerá-la uma literatura sempre em busca de designar o concreto para significar o abstrato. Tal característica, por sinal, propõe um limite à vasta comparação entre as cantigas trovadorescas e a poesia brasileira concretista do final do século XX, dado o fato de as cantigas veicularem uma leitura pautada em um sincretismo do tempo real e do intemporal, embora se assemelhem à expressão concretista pela abolição do tempo lógico-linear do discurso (Macedo, 1996). Ainda assim, o autor destaca que a poesia trovadoresca, sobretudo as cantigas de amigo, não deve ser lida equivocadamente do ponto de vista das descrições factuais, uma vez que sua significação depende de um caráter tão simbólico quanto metalinguístico pressentido pela ressignificação de signos cotidianos de uma sociedade que se considerava expressão de uma realidade metafísica.
Além disso, Helder Macedo destaca a rara existência de progressão semântica nas cantigas de amigo, que eram escritas por homens, mas sempre em voz feminina. Para exemplificar isso como expressão da maneira de pensar medieval, o autor analisa a cantiga de amigo Levou-s’a Velida, de D. Dinis, e a destaca como poema paralelístico, em que o sentido de cada estrofe é altamente modular e reforçado pela técnica do leixa-pren (perceptível pela reprodução do último verso variável de um grupo estrófico no primeiro verso do grupo seguinte) e pela adesão da 1ª estrofe como núcleo de que parte todo o poema. Com base nisso, percebe-se que a progressão da cantiga não se dá linearmente, mas em círculos, em que o refrão, trabalhando tanto a favor da manutenção da musicalidade quanto da esfera do significado, funciona como mecanismo remissivo em relação ao núcleo semântico.
Ao analisar a cantiga, são consideradas suas características simbólicas por detrás do episódio de uma simples lavadeira medieval que se levanta de madrugada para exercer seu ofício enquanto o vento a importuna. Assim, além de tecer uma interpretação respeitosa ao fato de o discurso acontecer em um tempo ambíguo instaurado pela cantiga, a visão de Helder Macedo é capaz de demonstrar, na prática, o porquê da ineficácia de uma leitura ingênua da cantiga de amigo de D. Dinis, já que esta reporta grandiosa plurissignificação ao retratar um episódio erótico de primeira experiência sexual valendo-se da simultaneidade instaurada pela interseção dos nódulos semânticos e formais do poema. Nesse sentido, faz-se oportuna a proposição de chaves simbólicas que o ensaísta aborda em seu texto para designar a atuação elementar e fundamentada dos termos “alva” e “vento”, posto que ambas as palavras conduzem o leitor da cantiga a sentidos que não podem ser concebidos somente no plano da leitura rasa.
Isso posto, observa-se que “alva”, no contexto da cantiga, sugere a noção de pureza – o que é corroborado, também, pela presença da madrugada, pelo ato de lavar (tornar algo limpo) e pelo fato de se tratar de uma camponesa jovial e, portanto, virgem. Além disso, não somente esses elementos representam pontos que remetem à pureza; as camisas e o vento possuem cada qual seu valor para a leitura poética. Afinal, as camisas representam o contato com o corpo nu, ao passo que o vento que as leva, a presença masculina reforçada pela aproximação metonímica entre sua característica essencial de transportar o pólen e o papel masculino na relação sexual. Feitas essas considerações, Helder Macedo considera que o poema mostra-se sugestivo à ilustração da camponesa como figura reclamante, mas também arrolada e envolvida na relação amorosa, pois ela se submetera ao lugar abastado e alto da nascente – onde se encontrava à mercê do vento – colocando-se à prova, numa relação conjugada pelo subconsciente balanceado entre desejo e receio, o que, por si só, é emblemático do instante da primeira relação sexual.
Desse modo, entende-se o porquê da ira da camponesa ao ter suas vestes levadas pelo vento. Ao perdê-las, perde também a sua virtude e sua alva virgindade, representadas simbolicamente. Do ponto de vista filosófico, há ainda uma questão de dualidade que pode ser depreendida com a ajuda da análise estilística da forma da cantiga, pois a disposição e a transliteração da palavra “alva” remete ao movimento contíguo do vento e isso não parece ter sido pensado unicamente para fins de musicalidade. Em face da estadia da mulher ao local de suscetibilidade e de sua ira de prontidão após a intervenção do vento, o chamamento pelo vento precisamente favorecido pelo efeito da transliteração indicia o que Helder Macedo aponta como uma relação em que a iniciação erótica é “implicitamente rejeitada ao nível de sua vontade, mas simbolicamente requerida pela sua condição biológica e social de núbil” (p. 68).
Também não se deve esquecer que a cantiga de D. Dinis estabelece uma relação intertextual com outra cantiga chamada Levou-s’a Louçãa, produzida anteriormente pelo trovador Pero Môogo. No entanto, Helder Macedo diz que
a cantiga de Dom Dinis é, simultaneamente, mais abstrata no seu significado simbólico e mais concreta no uso de seus significantes linguísticos – o que a coloca surpreendentemente próxima, ao mesmo tempo, da experimentação concretista dos nossos dias e da expressão simbolista do fim do século XIX (p. 69).
Isso ressalta o caráter transcendental da poesia portuguesa trovadoresca, que influenciou e continua influenciando outras instâncias poéticas em língua portuguesa, como a própria transparência de características de cantigas satíricas na obra de Gregório de Matos no Barroco brasileiro. Dessa forma, faz-se compreensível o zelo por sua abordagem como fonte de história, cultura e inspiração poética que serve como matriz às expressões literárias de outros tempos que lhe são posteriores.
No caso da cantiga de D. Dinis em questão e de outras cantigas de amigo no geral, percebe-se que um de seus maiores valores está, como aponta Helder Macedo, na capacidade de transformar uma narrativa factual e cotidiana em um episódio mítico (p. 70). Dessa forma, a mímese dessa cantiga de amigo consiste justamente nessa conjugação entre mito e realidade, vista por meio da contemplação da via simbólica que o poema apresenta, pois, afinal, o episódio em torno do qual gira Lavou-s’a Velida não deixa de ser compreendido em seu sentido literal. Isto é, o poema e sua metalinguagem simbólica articulam aspectos da sociedade não idealizada pelas vantagens poéticas aos aspectos metafísicos que, por vezes, justificam significantes advindos de concepções sociais, representando-os artisticamente.
Em síntese, o texto de Helder Macedo oferece uma contextualização de pontos relevantes das cantigas de amigo da Idade Média, partindo da análise crítica de uma famosa cantiga do trovador D. Dinis. A leitura do escritor português gira em torno das relevâncias formais e semânticas da cantiga de amigo Lavou-s’a Velida, contemplando-a em seu contexto histórico e refletindo suas extensões metafóricas, na medida em que a elege como emblema da força notória da poesia trovadoresca no contexto de estudos literários comparatistas.
MACEDO, Helder. Uma cantiga de D. Dinis. In: RECKERT, Stephen; MACEDO, Helder. Do Cancioneiro de Amigo. 3ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.
Publicado em 14 de maio de 2019
Como citar este artigo (ABNT)
NASCIMENTO, João Paulo da Silva. Levou-s’a Velida: considerações de Helder Macedo sobre a lírica trovadoresca na cantiga de D. Dinis. Revista Educação Pública, v. 19, nº 9, 14 de maio de 2019. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/9/levou-sra-velida-consideracoes-de-helder-macedo-sobre-a-lirica-trovadoresca-na-cantiga-de-d-dinis
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