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Caranguejo, camarão e eternidade

Pablo Capistrano

Escritor e professor de filosofia

Um feriado é uma ilha. As ilhas são lindas em suas solidões. Mas lindo ainda é um feriado pousado no meio de um oceano de dias banais. No último feriado, saí com a família atrás de comer caranguejo pelas praias do litoral de nosso estado.

Tinha a volúpia dos bárbaros, a ansiedade dos pervertidos, o desejo incontido dos assassinos seriais. Queria quebrar a cabeça dos caranguejos, arrancar suas patas, sugar a pouca carne que têm e comer seu cérebro primitivo com farinha. De preferência com uma cerveja, na beira do mar, olhando o céu sem fim e a água morna que entorpece a consciência com sua luz.

Foram três dias de peregrinações dolorosas. Baía Formosa, Sagi, Pipa, Tibau do Sul e nada. Nem um caranguejo. "Tem camarão", respondiam. Comecei a suspeitar que algo estava errado. Até que, no encerrar das luzes do feriadão, diante de um rio Cunhaú cheio de barcos, achei um lugar que, a despeito de se chamar "O Camarão", tinha caranguejo. "Na verdade só tem goiamum", o sujeito disse.

Quando os bichos chegaram, eu me senti enjoado. Não eram os velhos e grandes caranguejos de minha infância. Eram azulados, pequenos, raquíticos, quebradiços. Senti-me um infanticida, comendo os restos de um massacre sem sentido. "Não tem mais caranguejo?", perguntei ao garçom. "Está se acabando", ele disse lacônico, "derrubaram todo o mangue para fazer viveiros de camarão e agora está difícil de conseguir caranguejo".

As palavras do garçom ainda ecoam na minha cabeça. Seriam aqueles os últimos goiamuns que comeria em minha vida, ou ainda sobrariam alguns para mais uns três ou quatro feriados? Poderia ter comido com a volúpia dos desesperados, com a ansiedade dos alcoólatras diante do último copo, da última lata de cerveja no carnaval. Mas o almoço foi sinistro. Estaria contemplando o apagar das luzes de uma espécie ancestral ou seria apenas uma baixa na produção da mãe natureza?

O sinistro do extermínio e da extinção é que eles apontam sempre para um detalhe radicalmente cruel: todas as criaturas têm um tempo. Até aí, tudo bem, temos o futuro, eu posso morrer, mas meus livros ficarão, meu nome será lembrado, meus genes, com suas virtudes e torpezas, permanecerão no corpo de meus filhos, nos ossos de meus netos, no sangue de meus descendentes. Mas, quando a espécie acabar, quem lerá meus livros? Quem lembrará meu nome? Quem carregará minhas torpezas genéticas?

Nós nos acostumamos a pensar que a eternidade tem uma forma. Que ela pode ser tocada, vista, cheirada. Pensamos ser possível ouvir a eternidade, ler as palavras de um discurso ancestral, cristalizadas para sempre em símbolos gráficos. Mas essa não é a eternidade. Essa é a fantasia de uma imortalidade muito mais humana do que podemos supor. A imortalidade tem o tempo do homem. O esquecimento, seus limites, suas fronteiras.

Olhando o goiamum azulado na panela, penso no dia em que as peregrinações serão atrás dos últimos homens, escondidos na selva de um futuro estranho e impensado. Chegaremos ávidos, ansiosos, esgotados, à beira do rio Cunhaú, e perguntaremos ao último garçom do último bar: "Tem mais algum ser humano aqui?". E ele vai responder, lacônico: "Não, só tem camarão".

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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