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Iraque: tempo da colheita

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia

Há um ano atrás a estátua de Saddam Hussein caía em Bagdá. Houve gente que comparou a imagem veiculada pelas redes de TV do mundo com a queda do muro de Berlim. Mas haviam  diferenças substanciais entre os dois acontecimentos. Primeiro a quantidade de pessoas. Em Bagdá foram algumas centenas, em Berlim foram milhares. Em Bagdá vivia-se uma invasão estrangeira, em Berlim a unificação de um país dividido em dois por quase quarenta anos. Em Bagdá a pressão pela derrubada do regime de Saddam veio de fora para dentro, em Berlim a unificação começou de dentro para fora.

Tenho pena dos jovens americanos que morrem no Iraque (na verdade eu sempre tenho pena dos soldados que vão para a guerra). Se eles acreditam que estão lá para implantar a democracia vão sentir uma profunda decepção, ao acordar de seu sono dogmático. Uma democracia liberal não se implanta com a força das baionetas de um país estrangeiro. Esse é um equívoco semelhante à ideia de ser possível instalar o socialismo num país invadido. Do mesmo modo que um socialismo imposto, como o que apareceu em alguns países do leste europeu depois da Segunda Guerra, não é viável, uma democracia imposta também não é viável. Tanto a democracia liberal quanto o socialismo são produtos de uma mesma matriz política e filosófica: a ideia de revolução. O modelo é o da revolução de 1789 na França e a justificativa filosófica é o iluminismo europeu do século XVIII. Se as mudanças não vêm de dentro para fora, se os regimes não caem de podres, não há legitimidade política. Ninguém vai conseguir convencer o povo iraquiano que o que aconteceu ao seu país foi algo diverso de uma invasão estrangeira, de uma ocupação militar.

Talvez os jovens soldados da coalizão chefiada pelos Estados Unidos não consigam compreender isso. Talvez os republicanos não consigam compreender isso. Mas o povo iraquiano tem consciência do que ocorre dentro de suas fronteiras. Por isso, nada mais natural, nada mais óbvio e previsível do que a união entre xiitas e sunitas. A Deutsche Welle (TV alemã) exibiu na Sexta-Feira Santa uma reportagem sobre a aproximação dos xiitas do sul do Iraque com os xiitas iranianos. Perguntava-se se já haviam esquecido a guerra Irã-Iraque, se as diferenças nacionais poderiam ofuscar o sentimento de pertencimento a um só povo e a uma só religião. O fato é que diante de um inimigo externo as diferenças momentaneamente se anulam e os cálculos políticos dos estrategistas militares, sentados em seus gabinetes, sem um conhecimento profundo sobre as peculiaridades culturais e religiosas dos povos que buscam dominar, caem por terra.

Em março de 423 a.C., Nícias, legislador ateniense, buscava assinar uma trégua com os espartanos para pôr fim à guerra do Peloponeso. O povo das duas cidades, cansado da guerra, da fome e das pestes, queria paz. Nícias fez um apelo histórico sintetizado numa frase basilar: "Deixemos que as aranhas teçam as suas teias em volta de nossas lanças". Há o tempo da semeadura e o tempo da colheita. Um ano atrás, os exércitos da coalizão internacional plantaram as sementes de uma guerra longa e sangrenta. Hoje eu me pergunto se realmente eles estavam esperando, um ano depois, colher verdadeiramente os frutos da paz. Vai demorar ainda um bom tempo, até que a frase de Nícias possa ser repetida, como uma apelo, um projeto político, na superfície de nosso planeta.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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