Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Memórias do Riacho Ipiranga

Karla Hansen

Jornalista

Um dia, estava eu a correr livre e alegremente, sendo apenas um riacho, um afluente da margem esquerda do rio Tamanduateí - que na língua tupi-guarani significa muitos tamanduás -, quando ouvi um brado retumbante à beira de minhas margens plácidas.

Isso foi há muito tempo, num dia 7 de setembro, e o sol brilhava no céu com seu brilho intenso. Era um grupo de cavaleiros que passava apressado, vindo de minha terra, São Paulo, com destino ao Rio de Janeiro. Um mensageiro chegou e entregou uma carta ao chefe deles, o mais garboso, que depois de ler a mensagem tirou a espada da bainha e gritou: "Independência ou morte!". Ou coisa assim, já faz tanto tempo, minha memória anda falhando. O fato é que depois desse dia, minhas águas, minhas margens, enfim, minha vida nunca mais foi a mesma.

Poucos meses depois daquele 7 de setembro, comecei a ouvir dizer que iam construir um monumento à Independência do Brasil, no próprio local onde ela havia sido proclamada, quer dizer, bem aqui, nas minhas margens.

Mas foi só em 1895 que resolveram construir o Museu do Ipiranga, um majestoso edifício de estilo neoclássico renascentista. O museu fica no fundo de um parque, o Parque da Independência, que tem um jardim igualzinho aos jardins do Palácio de Versalhes, na França. Foi uma cópia mesmo. Com a construção do museu, meu curso foi canalizado e minhas águas passaram a correr no meio de um canal de cimento que passava em frente ao Monumento e ao Parque da Independência, um dos pontos turísticos mais importantes da cidade de São Paulo, depois seguiam pelo canteiro central da Avenida Thereza Christina e finalmente desaguavam no rio Tamanduateí.

Foi o começo do meu fim. E, antes que eu me esqueça, meu nome, i-piranga, quer dizer "rio vermelho" em tupi-guarani, o povo que habitava essa região antes dos brancos chegarem. Também já fui chamado de Piranga, Guarapiranga e Ireripiranga.

Minhas águas passaram a receber esgoto de várias partes da cidade, do Zoológico e outras instituições que funcionam no Parque. Fiquei completamente poluído, quase toda vida que habitava o meu meio já tinha morrido. Ninguém me ouvia. "Moribundo, ele corre perdido em meio a um matagal imundo. Convertido em depósito de lixo, ele é agredido a cada passo por esgotos domésticos e resíduos industriais", disseram a meu respeito num panfleto que circulou por aqui no início dos anos 90. Foi, aliás, por essa época que um grupo de moradores do bairro começou a me ver com outros olhos, olhos de espanto e de indignação. Ah, finalmente alguém me ouviu!

De novo num dia 7 de setembro, esse grupo de homens e mulheres decidiu criar o Movimento de Recuperação do Riacho do Ipiranga, o "Morri". Nesse dia, eles distribuíram um panfleto que falava em salvar o Riacho do Ipiranga, e que isso significaria "resgatar um monumento histórico e, assim, tirar do abandono o Parque do Estado, que poderia ser transformado em grande centro de lazer, cultura e educação ambiental". Os componentes do Morri apuraram várias irregularidades no Parque das Fontes do Ipiranga: falta de proteção de nascentes, riscos de erosão, nascente poluída com esgoto doméstico, aterros, lixões, terrenos baldios e água parada, área de mananciais invadida por favela, barracos de favelas ameaçados por desmoronamento, cercas derrubadas, invasões, desmatamento e falta de espaço para lazer para crianças e jovens. Ou seja, tudo o que eu já conhecia faz tempo.

O pessoal do Instituto de Botânica fez um estudo para descobrir a quantidade de poluição que eu sofria, e fiquei sabendo que o Parque Estadual em que estão minhas nascentes é a terceira maior reserva de mata nativa do município de São Paulo! Confesso que fiquei orgulhoso. Foram cinco anos de estudo: era um tal de coleta de água, de amostras da terra e da vegetação, de medirem os lagos, onde estão os 20 olhos d'água (quatro morreram) que me dão origem. Depois, esse estudo virou livro que, se não me falha a memória, se chama "O Parque Estadual das Fontes do Ipiranga (PEFI): unidade de conservação ameaçada pela urbanização de São Paulo".

Movimento pela recuperação, pelo tombamento histórico, estudo, livro, cobranças ao governo, proposta de revitalização do Parque, tudo isso eu vi acontecer, mas pouca coisa foi feita. Há poucos dias, esteve aqui um grupo de crianças e professoras de educação ambiental. As crianças foram até as minhas nascentes, tiraram fotografias e viram que elas continuam vivas, porque estão dentro do Jardim Botânico, numa área protegida. Foram seguindo o meu curso e tirando fotos na parte em que eu já não tenho proteção e os detritos começam a tomar conta da água. Por último, os alunos fotografaram a região final em que já não há mais vida. Daqui a alguns dias, vão comemorar o 7 de setembro e se lembrar outra vez de mim.

Me disseram que o Hino Nacional começa com uma referência a mim. Agradeço a homenagem, apesar de nada ter feito para entrar para a História, a não ser o dever de todo rio: levar a vida a homens, animais e vegetação. Para continuar cumprindo minha missão, abriria mão de toda a fama. Gostaria de ficar para a posteridade como rio mesmo, não como letra de música ou quadro na parede. Esses humanos arrumam formas estranhas de enaltecer suas conquistas: louvam a cópia e se esquecem do original...

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.